"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/01/2021

Jurisprudência 2020 (125)


Restituição provisória da posse;
inversão do contencioso


1. O sumário de RP 18/6/2020 (2142/19.0T8VFR.P1) é o seguinte:

I - São pressupostos de facto da providência de restituição provisória da posse, a demonstração da posse do requerente, a sua perda por esbulho e a violência no desapossamento.

II - A violência prevista na lei é aquela a que também alude o n.º 2 do art.º 1261.º do Código Civil, nos termos do qual a posse considera-se violenta quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física ou de coacção moral, nos termos do art.º 255.º do mesmo diploma legal.

III - Na providência cautelar de restituição provisória de posse, quando a actuação do esbulhador sobre a coisa esbulhada é de molde a, na realidade, tornar impossível a continuação da posse, seja através de obstáculos físicos ao acesso à coisa, seja através de meios que impedem a utilização pelo possuidor da coisa esbulhada, estaremos perante um caso de esbulho violento.

IV - Quando a matéria adquirida no procedimento cautelar permite formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio, não há razões para que não se resolva a causa de modo definitivo (evitando-se a “duplicação da prova”), ficando o requerente dispensado do ónus de propor a acção principal.

V - No que respeita às providências especificadas é a própria lei que determina aquelas onde pode ser requerida a inversão do contencioso (cf. art.º 376º, n.º 4 do CPC).

VII - A inversão do contencioso só é admissível se a tutela cautelar puder substituir a definitiva e apenas se a providência cautelar requerida (nominada ou inominada) não tiver um sentido manifestamente conservatório.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"De acordo com o disposto no art.º 377º do Código de Processo Civil, no âmbito dos procedimentos cautelares especificados, “no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência”.

Já segundo o previsto no art.º 378º, “se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordenará a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador”.

No art.º 1276º do Código Civil dispõe-se que, se o possuidor tiver justo receio de ser perturbado ou esbulhado por outrem, será o autor da ameaça, a requerimento do ameaçado, intimado para se abster de lhe fazer agravo, sob pena de multa e responsabilidade pelo prejuízo que causar.

Nos termos do art.º 1279º do mesmo código, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.

Sabemos todos que a restituição provisória da posse, com características antecipatórias, apreciada e decidida de forma acelerada e sem prévia audição do requerido, está reservada para situações em que a ilicitude da conduta é mais grave.

Tal providência visa conferir tutela provisória ao possuidor o qual, por esta via, obtém a reconstituição da situação possessória anterior ao esbulho violento.

Assim, são pressupostos da restituição provisória da posse os seguintes:

- A existência de posse (na concepção objectiva, bastando por isso que, por qualquer dos meios admitidos pela lei do processo, o juiz fique convencido do exercício de poderes materiais não casuais sobre uma coisa e não exista disposição legal que imponha mera detenção);

- Seguida de esbulho;

- Com violência. (Neste sentido cf. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, volume II, pág. 833). [...]

Improcede assim, nesta parte, o recurso aqui interposto.

Mas o mesmo ocorre no que toca ao segmento da decisão no qual foi decidido manter a inversão do contencioso tal como o antes decidido.

Vejamos:

Mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da acção principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio (cf. o art.º 369º, n.º 1, sob a epígrafe “inversão do contencioso”).

O regime de inversão do contencioso é aplicável, com as devidas adaptações, à restituição provisória da posse, à suspensão de deliberações sociais, aos alimentos provisórios, ao embargo de obra nova, bem como às demais providências previstas em legislação avulsa cuja natureza permita realizar a composição definitiva do litígio (art.º 376º, n.º 4, sob a epígrafe “Aplicação subsidiária aos procedimentos nominados”).

A possibilidade de inversão do contencioso leva a que o procedimento cautelar deixe de ser necessariamente instrumental e provisório, porquanto permite que se forme convicção sobre a existência do direito apta a resolver de modo definitivo o litígio, verificados os pressupostos legalmente previstos.

Entende-se, pois, que nos casos em que no procedimento cautelar é produzida prova suficiente para que se forme convicção segura sobre a existência do direito acautelado - (prova stricto sensu do direito que se pretende tutelar) - e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio, não haverá razões para que não se resolva a causa de modo definitivo (evitando-se a “duplicação da prova”), ficando o requerente dispensado do ónus de propor a acção principal; aquela prova stricto sensu do fundamento dessa providência determina, necessariamente, uma inversão do contencioso.

O requerido poderá obstar à consolidação daquela tutela como tutela definitiva através de uma acção de impugnação (cf. os artigos 369º, n.º 1 e 371º, n.º 1).

Segundo este último normativo, “sem prejuízo das regras sobre a distribuição do ónus da prova, logo que transite em julgado a decisão que haja decretado a providência cautelar e invertido o contencioso, é o requerido notificado, com a advertência de que, querendo, deve intentar a acção destinada a impugnar a existência do direito acautelado nos 30 dias subsequentes à notificação, sob pena de a providência decretada se consolidar como composição definitiva do litígio”.

No que toca ás providências especificadas e como já vimos é a própria lei que determina aquelas onde pode ser requerida a inversão do contencioso (cf. art.º 376º, n.º 4).

É, pois, de concluir que a inversão se revela possível e ajustada quando a providência cautelar requerida, de carácter nominado ou inominado, não tiver um sentido manifestamente conservatório (cf. sobre este ponto, entre outros, Carlos Lopes do Rego, Os princípios orientadores da Reforma do Processo Civil, Revista Julgar, nº16, págs. 109 e seguintes).

A inversão do contencioso, prevista no artigo 369.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, só é admissível se a tutela cautelar puder substituir a definitiva.

Ou seja, para que o requerente seja dispensado do ónus de propor a acção principal, terão de estar verificados dois pressupostos cumulativos:

a) -que a matéria adquirida no procedimento permita ao juiz formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado; e

b) -que a natureza da providência decretada seja adequada a realizar a composição definitiva do litígio.

Ora nestes autos, não existe discrepância entre a providência requerida (restituição dos requerentes provisoriamente na posse da parcela ocupada pelos requeridos) e a acção a propor, de reconhecimento do direito de propriedade dos requerentes, nas suas várias dimensões, sobre a aludida parcela de terreno ilicitamente ocupada pelos requeridos.

Ora a prova documental e testemunhal inicialmente produzida pelos requerentes relativamente à propriedade do prédio rústico, sito em …, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 2518 da freguesia de …, concelho de Santa Maria da Feira, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira, ultrapassou, claramente, o simples indício, constituindo sim prova bastante da existência do direito ameaçado.

Por outro lado, na oposição que deduziram e na prova que com estas produzira, os requeridos não lograram provar que a parcela em discussão lhes pertence.

Mais, a natureza da presente providência, no que diz respeito à propriedade da parcela a restituir, mostra-se adequada à composição definitiva do litígio.

Em suma, estão verificados os pressupostos de facto e de direito para que fosse antes decretado e agora mantida a inversão do contencioso, nos termos do disposto no artigo 369º, nº1 do CPC."

[MTS]