"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/01/2021

Jurisprudência 2020 (130)

Revista excepcional;
requisitos


I. O sumário de STJ 6/5/2020 (1261/17.1T8VCT.G1.S1) é o seguinte:

1 - O pressuposto de admissão da revista excecional previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil concretiza-se, para além do mais, nas questões que motivam debate doutrinário e jurisprudencial e que tenham uma dimensão paradigmática para casos futuros, onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa ser utilizada como um referente.

2 – A simples natureza laboral de um litígio emergente de acidente lhe trabalho não confere características que o permitam considerar de particular relevância social, nos termos da alínea b) do n.º1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1 - O pressuposto da admissão da revista excecional previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil tem sido frequentemente abordado na jurisprudência da formação respetiva, estabilizando-se a orientação no sentido de que «I - O conceito genérico da referida al. a) do n.º 1 do art. 721.º-A do CPC implica que a questão sub judice surja como especialmente complexa e difícil, seja em razão de inovações no quadro legal, do uso de conceitos indeterminados, de remissões condicionadas à adaptabilidade a outra matéria das soluções da norma que funciona como supletiva e, em geral, quando o quadro legal suscite dúvidas profundas na doutrina e na jurisprudência, a ponto de ser de presumir que gere com probabilidade decisões divergentes» (Acórdão de 16 de fevereiro de 2012, proferido no processo n.º 1875/09.3TBBRG-A.C1.S1, cujo sumário está disponível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/revistaexcecional/revistaexce-cional2012.pdf).

Pronunciando-se sobre este fundamento da revista excecional, refere ABRANTES GERALDES que «em geral, surge a exigência de que a questão jurídica em causa tenha um caráter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, assumindo relevância autónoma e independente em relação às partes envolvidas» e prossegue referindo que «as expressões adverbiais empregues na formulação normativa (“excecionalmente” e “claramente necessária” não consentem que se invoque como fundamento da revista excecional a mera discordância quanto ao decidido pela Relação. Tão pouco bastará a verificação de uma qualquer divergência interpretativa, sob pena de vulgarização do referido recurso em situações que não estiveram no espetro do legislador) (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2014, 2.ª Edição, Almedina, p. 314).

E ainda a propósito daquele dispositivo, refere o mesmo autor que «constituindo um instrumento processual em que fundamentalmente se pretendem tutelar interesses ligados à “melhor aplicação do direito”, a intervenção do Supremo apenas se justifica em face de uma questão cujo relevo jurídico seja indiscutível, o que pode decorrer, por exemplo, da existência de legislação nova cuja interpretação seja passível de sérias divergências, tendo em vista atalhar decisões contraditórias (efeito preventivo), ou do facto de as instâncias terem decidido a questão ao arrepio do entendimento uniforme da jurisprudência ou da doutrina (efeito reparador)»[Ibidem.].

Importa finalmente que se tenha presente que, tal como se extrai dos fundamentos específicos da revista excecional, este meio de impugnação das decisões judiciais não visa, em primeira linha, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos das partes, mas antes a tutela jurisdicional efetiva do interesse geral na boa aplicação do Direito, e, por outro lado, a questão a analisar há de ter relevância jurídica, no sentido de que a sua dilucidação seja reclamada para uma melhor aplicação do Direito, o que só se justifica face a uma questão de Direito com caráter paradigmático.

2 - Analisada a motivação apresentada pelo requerente suscetível de ser enquadrada na alínea a) do n.º 2 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, atento o invocado pressuposto da alínea a) do n.º1 do mesmo artigo, ou seja, de integrar «as razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito», contata-se que o recorrente se limita a invocar os motivos de discordância que tem relativamente ao sentido da decisão de que pretende recorrer.

Daquele requerimento não decorrem concretamente quaisquer razões objetivas que permitam afirmar que as questões em causa – descaracterização do acidente in itinere - e ónus da prova dessa descaracterização – integram o fundamento da admissão da revista excecional previsto na referida alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.

Com efeito, não invoca o requerente a existência de qualquer debate atual sobre essas questões, a nível doutrinário, ou a existência de um qualquer conflito jurisprudencial, razões estas que possam motivar a intervenção deste Tribunal no sentido da melhoria da aplicação do Direito.

Importa que se tenha presente que o Tribunal da Relação não conheceu do recurso de apelação no que se refere à impugnação da matéria de facto, vindo o recorrente agora em sede de revista pôr em causa esse facto e a conformação da factualidade relevante para efeito da decisão que do mesmo emerge.

As questões da descaracterização do acidente de trabalho in itinere por culpa grosseira do sinistrado e o ónus da prova desta são matérias sobre a qual existe jurisprudência estabilizada que pode apoiar o interprete na aplicação do Direito, não evidenciando o requerente qualquer alteração desse cenário.

Acresce que essas matérias foram objeto de uma abordagem doutrinária, do qual o aplicador do Direito se pode socorrer na busca do sentido da Justiça do caso.

Por outro lado, o caso dos autos não tem características que o particularizem e que permitam apontá-lo no futuro como um caso paradigmático na atividade judiciária.

3 - O requerente invoca igualmente o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil como fundamento da admissão do recurso.

Há muito que esta formação estabilizou jurisprudência no sentido de que a mera natureza laboral de um litígio não lhe confere relevo que permita afirmar que no mesmo estejam em causa «interesses de particular relevância social».

No fundamento desta alínea encontram-se situações em que a decisão de que se pretende recorrer ofende sentimentos coletivos de estabilidade e crença no normal funcionamento das instituições, justificando-se, nestes casos, a intervenção deste Tribunal em ordem a dar satisfação a esses sentimentos.

No caso dos autos o litígio não ultrapassa a dimensão das relações entre as partes, não se demonstrando que o decidido possa de qualquer forma pôr em causa os interesses tutelados por aquela norma.

Importa finalmente que se tenha presente que a admissão do recurso de revista com fundamento nas situações discriminadas no n.º1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil não tem em primeira linha como objetivo a solução do litígio entre as partes, mas sim a salvaguarda do sistema jurídico e a normalidade de funcionamento das instituições judiciárias, no fundo, a melhoria do processo de aplicação do Direito.

O requerente não demonstrou pois que se mostrem preenchidos os pressupostos estabelecidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil para a admissão da revista."

[MTS]