"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/01/2021

Jurisprudência 2020 (122)


Acção de divisão de coisa comum;
benfeitorias; reconvenção*


I. O sumário de RL 25/6/2020 (329/18.T8FNC-A.L-8) é o seguinte:

1. Em acção especial de divisão de coisa comum, em que foi proferida decisão sumária relativa à indivisibilidade do imóvel e determinado o prosseguimento dos autos nos termos do artº 926º, nº 2 e 929, nº 2 do C.P.C., não é admissível pedido reconvencional relativo a realização de benfeitorias. 

2. A fase subsequente do processo especial de divisão de coisa comum (fase de natureza executiva) e a forma de processo comum que o conhecimento do pedido reconvencional imporia são formas de processo que comportam tramitação absolutamente distintas e manifestamente incompatíveis (artº 37º do C.P.C.), não susceptíveis de adequação, pois só depois da tramitação própria do processo comum quanto ao pedido reconvencional, com instrução da prova, decisão de facto e de direito, eventual recurso, se retomaria a fase executiva própria da acção especial de divisão de coisa comum, para adjudicação ou venda do imóvel. 

3. Tal corresponde a duas tramitações autónomas e sequenciais, constituindo o conhecimento do pedido reconvencional uma fase declarativa a “enxertar” à tramitação regular do processo especial, assim provocando a paragem deste até à decisão daquele.

4. É nesta circunstância que radica a manifesta incompatibilidade, insusceptível de adaptação formal, adaptação que terá de significar, de algum modo, aproximação, conciliação de duas formas processuais distintas, seja através de concatenação de actos, de supressão de outros, etc. – e não apenas “cumulação” de actos próprios de uma forma processual e de outra.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A R. e marido apresentaram contestação e deduziram pedido reconvencional. Na contestação aceitaram expressamente a compropriedade e a indivisibilidade do imóvel. Por via da reconvenção pretende a R., em caso de adjudicação do imóvel ao A. ou a terceiro, receber para além do valor equivalente à sua metade na compropriedade, o montante despendido nas benfeitorias que construiu no valor total de € 38.431,09.

A ação de divisão de coisa comum destina-se a pôr termo à contitularidade de direitos reais (artºs 925º do C.P.C. e 1412.º do Código Civil) e comporta duas fases distintas, declarativa (artºs 925º a 928º do C.P.C.) e executiva (artº 929º do C.P.C.).

A fase declarativa processa-se de acordo com as regras aplicáveis aos incidentes da instância (artº 926º, nº 2 do C.P.C.), exceto se o Juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, caso em que é determinado que se sigam os termos do processo comum (artº 926º, nº 3 do C.P.C.).

É nesta fase declarativa que se apreciam as questões relativas à natureza comum da coisa e das suas características materiais, dos quinhões e da divisibilidade material e jurídica da coisa dividenda.

Decididas as referidas questões passa-se à fase executiva que se destina essencialmente à adjudicação ou venda.

A decisão recorrida fundou a rejeição da reconvenção na circunstância de ter transitado a decisão proferida nos termos do artigo 926.°, n.° 2, do CPC e na inerente incompatibilidade de formas de processo relativas ao pedido do A. (processo especial) e ao pedido da R. (processo comum), com suporte no artº 266º, nº 3 do C.P.C.. A questão da admissibilidade da reconvenção nas ações de divisão de coisa comum tem dividido a jurisprudência (veja-se o elenco de decisões constantes do acórdão do S.T.J. de 01/10/2019, in www.dgsi.pt, citado pela recorrente), assentando as divergências sobretudo na incompatibilidade processual do pedido de divisão e do pedido reconvencional (artº 266º, nº 3 do C.P.C.), que nuns casos se considera ultrapassável, nos termos do disposto no artº 37º, nºs 2 e 3, ex vi do artº 266º, nº 3 do C.P.C. e, noutros, por absolutamente incompatíveis, impõem a rejeição do pedido reconvencional, mormente se as questões relativas à divisão são resolvidas de forma sumária, isto é, sem necessidade de recurso às regras do processo comum, e na medida em que a apreciação das questões suscitadas na reconvenção impõem a adoção de tal forma processual. 

Estas posições centram-se, assim, na interpretação dos preceitos referidos, maxime dos artºs 266º, nº 3, 37º, nºs 2 e 3 e 926º do C.P.C..

Nos termos do disposto no artº 266º, nº 3 do C.P.C. “não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações”, nos quais se estabelece que:

“2. Quando aos pedidos correspondam formas de processo que, embora diversas, não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, pode o juiz autorizar a cumulação, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio.
3 - Incumbe ao juiz, na situação prevista no número anterior, adaptar o processado à cumulação autorizada.

 Em 23/04/2019 foi proferida decisão, transitada em julgado, com o seguinte teor:

“Ambas as partes concordam que o prédio não é suscetível de ser dividido em substância, pelo que os autos seguirão com esse pressuposto, o que se determina à luz do artigo 926.°, n.° 2, do CPC, assim se assim decidindo sumariamente a questão da indivisibilidade do bem, desnecessário se tornando, assim, a respeito, diligências probatórias, designadamente ouvir as testemunhas indicadas.

O bem comum será dividido, conforme a finalidade da ação (vide artigo 925.° do CPC) e sendo a coisa indivisível, há que proceder à sua adjudicação ou venda, havendo para tanto que designar data para a realização de conferência de interessados (artigo 929.°, n.° 2, do CPC).”

O pedido objeto da petição inicial circunscreve-se à divisão do prédio. Com o pedido reconvencional pretende a R. efetivar um direito de crédito, traduzido em benfeitorias realizadas sobre o imóvel em causa, o qual, impugnado pelo A., não é passível de ser objeto de decisão sumária, a implicar produção de prova e a tramitação dos autos sob a forma comum. 

Assim, aos pedidos formulados pelo A. e pela R. correspondem, respetivamente, a forma de processo especial e a forma declarativa comum. 

E se em abstrato é possível deduzir reconvenção no caso de apresentação de contestação em ação de divisão de coisa comum, verificados os requisitos substanciais e processuais, como decorre dos preceitos citados, certo é que no caso que nos ocupa, e relativamente ao pedido de divisão, já foi determinado que os autos prosseguem nos termos do disposto no artº 926º, nº 2 e 929º, nº 2 do C.P.C., o que equivale a afirmar que a sua tramitação se circunscreve à “fase de natureza executiva”.

Do preceituado nos artº 925º e ss. do C.P.C. resulta que o legislador pretendeu instituir um processo célere, de que é exemplo na fase declarativa, não se aplicar, como regra, o processo comum, mas as regras dos incidentes da instância.

A fase executiva do processo especial de divisão de coisa comum e a forma de processo comum que o conhecimento do pedido reconvencional imporia são formas de processo que comportam tramitação absolutamente distintas e manifestamente incompatíveis (artº 37º do C.P.C.), não suscetíveis de adequação.

Com efeito, a admissibilidade do pedido reconvencional determinaria o prosseguimento dos autos sob a forma comum para apreciação deste pedido (com instrução da prova, decisão de facto e de direito, eventual recurso) e só depois de proferida a respetiva decisão, se retomaria a fase executiva própria da ação especial de divisão de coisa comum, para adjudicação ou venda do imóvel. 

Ou seja, não há aqui qualquer adaptação de diferentes formas de processo, mas sim duas tramitações autónomas e sequenciais, constituindo o conhecimento do pedido reconvencional uma fase declarativa a “enxertar” na tramitação regular do processo especial, assim provocando a paragem deste até à decisão daquele.

Não vislumbramos aqui qualquer adaptação formal que o Juiz possa determinar – que não fazer correr sequencialmente as duas formas de processo, como referido.

A ser este o sentido dos artºs 266º, nº 3 e 37º, nº 2 e 3 do C.P.C. estaria esvaziado de conteúdo o seu objeto, pois, no limite, todos os pedidos seriam cumuláveis, independentemente da forma do processo, para tanto bastando respeitar a tramitação própria de cada um, de forma sequencial. 

Entendemos, pois, que é nesta circunstância que radica a manifesta incompatibilidade, insuscetível de adaptação formal, adaptação que terá de ter o significado de algum modo, aproximar duas formas processuais distintas, seja através de concatenação de atos de uma e outra, de supressão de outros, etc. – e não apenas “cumulação” de atos próprios de uma forma processual e de outra. 

Como se refere no Ac. R.L. de 13-09-2018, disponível em www.dgsi.pt “manifesta incompatibilidade, que não se confunde com impossibilidade de adaptação. Esta, bem ou mal, de forma mais ou menos forçada, é quase sempre possível, o que não quer dizer que a tramitação dos processos em causa seja compatível.” 

Entendemos, pois, que a manifesta incompatibilidade não deve ser interpretada de forma restritiva no sentido de nela apenas se abranger atos processuais contraditórios ou inconciliáveis. 

Seguimos, pois, a corrente de que é exemplo o Ac.R.L. de 04/03/2010, disponível na base de dados citada:

“Com efeito, se para conhecer do pedido reconvencional se mostrar necessário proceder a instrução e respeitar o contraditório, tal exige uma tramitação que se não compagina com a do processo especial. Daí que o n.º 3 do artigo 274º do Código de Processo Civil levante esse obstáculo à admissibilidade da reconvenção – não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponda ao pedido do autor. Por isso, terá que, primeiramente, analisar-se da necessidade ou não de enxertar uma fase declaratória comum, na sequência e por força da contestação. Neste caso, se tiver sido deduzido pedido reconvencional este só pode ser conhecido em duas circunstâncias: se for ordenada a tramitação comum posterior à contestação (enxerto da ação comum); ou se for possível conhecer da reconvenção sem necessidade de instrução, isto é, sumariamente, na fase do saneador, se aí também forem conhecidas as questões que a contestação opõe é petição inicial. (…)

Se, no entanto, as questões deduzidas na contestação, no confronto com o pedido inicial, forem decididas sumariamente sem que haja de prosseguir a causa nos termos do processo comum, a reconvenção só é admissível se também dessa forma puder ser decidida.”

Em suma, face à tramitação concreta dos presentes autos de processo de divisão de coisa comum a reconvenção deduzida não é admissível.

Ainda que fosse possível adequar as duas formas de processo, sempre seria de manter a decisão recorrida, por não se verificarem os pressupostos substantivos.

Os requisitos substantivos de admissibilidade da reconvenção encontram-se taxativamente elencados no nº 2 do artº 266º do C.P.C., nos seguintes termos:

a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;
b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;
d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.

A reconvenção corresponde a uma ação proposta pelo réu (reconvinte) contra o autor (reconvindo), fundando-se num pedido conexo com o do autor. A reconvenção constitui uma contra-ação ou uma ação cruzada.

“Todos os pedidos reconvencionais devem ser conexos com o pedido do autor, porque seria inadmissível que ao réu fosse lícito enxertar na ação pendente uma outra que com ela não tivesse conexão alguma.” – cfr. Alberto dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. III, pág. 99.

O pressuposto de admissibilidade do pedido reconvencional exige mais do que uma simples conexão entre as duas causas de pedir (da ação e da reconvenção), devendo estas serem idênticas, pois é essa identidade que fundamenta o regime excecional de admissibilidade da reconvenção – Ac.R.L de 08/10/2019, in www.dgsi.pt.

O pedido reconvencional não se enquadra em nenhuma das situações previstas nas alíneas a) a d) do citado preceito legal, uma vez que:

- se trata de pedido absolutamente autónomo, sem conexão com o pedido do A., que se funda num direito de crédito, completamente alheio à causa de pedir por aquele alegada (direito real), nem assenta em fundamentos obstativos da procedência daquele. Com efeito, a R. não contestou a contitularidade do direito real, a proporção, nem a indivisibilidade. Isto é, a R. não invocou qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo da pretensão formulada pelo A. (alínea a);

- embora a R. se proponha tornar efetivo o direito a benfeitorias, não estamos no âmbito de ação em que lhe seja pedida a entrega da coisa objeto daquelas (alínea b);

- não se pretende o reconhecimento de crédito para obter a compensação ou o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor. Com efeito, não obstante a R. pretender o reconhecimento de um crédito sobre o A., não está em causa na ação um contra crédito reclamado pelo A. (alínea c). [...]

- o efeito jurídico do pedido do A. é pôr termo à contitularidade do direito real, enquanto que o direito que a R. pretende efetivar é o valor das benfeitorias que realizou na coisa (alínea d).

No sentido exposto cfr. Ac.R.C. de 12/03/2013 e Ac.R.E. de 22/03/2018, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

Assim, em conclusão, não se mostram verificados os requisitos de ordem processual e substantiva da admissibilidade da reconvenção, pelo que a decisão de primeira instância se deve quedar inalterada.

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida."

*III. [Comentário] a) O problema decidido pela RL não tem uma solução linear, mas, salvo o devido respeito, propende-se para uma orientação diferente.

Ao contrário do entendimento da RL, não parece impossível aplicar, numa acção de divisão de coisa comum, o disposto, quanto ao pedido reconvencional relativo a benfeitorias, no art. 266.º, n.º 2, al. b), CPC. No fundo, o que o autor dessa acção pretende é a entrega da parcela que tem na coisa indivisa, pelo que não é impossível entender que, se a parte demandada tiver direito a benfeitorias por obras que realizou na coisa indivisa, possa fazer valer esse direito na acção pendente. Portanto, o requisito da conexão objectiva entre os pedidos encontra-se preenchido.

Sendo assim, o que importa analisar é se permanecem outros obstáculos à admissibilidade do pedido reconvencional relativo a benfeitorias na acção de divisão de coisa comum.

A alternativa à inadmissibilidade da dedução do pedido reconvencional relativo a benfeitorias é, naturalmente, a necessidade de fazer valer esse direito numa acção autónoma. Por isso, o que, em termos de exercício dos poderes de gestão processual, tem de ser ponderado é se é justificado "complicar" a acção de divisão de coisa comum para permitir a resolução definitiva da situação das partes e evitar uma acção autónoma. É claro que a acção de divisão se "complica"; mas o que tem de ser ponderado é se essa "complicação" evita outras "complicações".

Atendendo especialmente ao disposto no art. 929.º, n.º 2, CPC (aplicável no caso sub iudice pela circunstância de a coisa ser indivisível), era desejável que, no acerto de contas entre as partes, pudesse tomar-se em consideração o eventual direito a benfeitorias da parte demandada.

Pelo exposto, nada impediria que, através da aplicação dos poderes de gestão processual (art. 6.º, n.º 1, e 547.º CPC), o pedido reconvencional relativo às benfeitorias fosse considerado admissível. Note-se que o exercício desses poderes pode ir para além do disposto nos n.º 2 e 3 do art. 37.º CPC, para o qual remete o art. 266.º, n.º 3, CPC. 

b) Num outro plano, pode ainda perguntar-se se, na hipótese de o direito a benfeitorias pertencer à parte demandante, seria impensável admitir que esse direito pudesse ser feito valer na acção de divisão de coisa comum. Se não se descortinam razões para considerar inadmissível essa cumulação de pedidos pela parte demandante, então, por imposição do princípio da igualdade das partes, também a dedução de um idêntico pedido pela parte demandada não pode ser inadmissível.  

MTS