"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/01/2021

Jurisprudência 2020 (131)


Direito à indemnização;
pagamentos parcelares; prescrição


I. O sumário de STJ 19/5/2020 (2445/16.5T8LRA.C1.S1é o seguinte:

1. No caso de sucessão de pagamentos parcelares da indemnização pela seguradora, o início da contagem do prazo de prescrição, previsto no art. 498º, nº 2, do CC, fixa-se, por regra, na data do último pagamento efectuado.

2. Tratando-se de indemnização de danos autónomos e consolidados e de natureza claramente diferenciada, deve atender-se ao último pagamento de cada um desses núcleos indemnizatórios autónomos de danos.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No anterior Acórdão do Supremo de 03.07.2018, proferido neste processo, por este mesmo Colectivo, concluiu-se que o prazo de prescrição do direito de reembolso exercido pela autora era de três anos, a contar do cumprimento, por aplicação analógica do art. 498º, nº 2, do CC.

De seguida, tomou-se posição sobre a questão, agora colocada neste recurso, do início da contagem desse prazo de três anos nas situações em que, para ressarcir os danos resultantes de um mesmo acidente de trabalho, ocorre uma sucessão de actos de pagamento efectuados pela seguradora.

Sobre esta questão, lê-se na fundamentação do referido Acórdão:

"Concorda-se que, nestes casos de fraccionamento do pagamento da indemnização, se deva atender, por regra, ao último pagamento efectuado.

Este critério foi, aliás, já expressamente consagrado no citado art. 54º, nº 6, do DL 291/2007, em relação ao Fundo de Garantia Automóvel, havendo quem defenda que o mesmo deve ser estendido a situações semelhantes (Garção Soares e Maria José Rangel de Mesquita, Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Anotado e Comentado, 239; Acórdão do STJ de 21.09.2017 (P. 900/15), acessível em www.dgsi.pt, como todos os adiante citados sem outra menção).

Admite-se, contudo, que, se ocorrer uma objectiva autonomização das indemnizações, relativas a danos claramente diferenciados, se possa temperar a referida regra, tendo em conta alguns inconvenientes que lhe têm sido associados. (…)

Esta questão do funcionamento da prescrição, no caso de fraccionamento do pagamento da indemnização, foi doutamente apreciada no Acórdão do STJ de 07.04.2011, aí se chegando a um critério que tem merecido significativa adesão da jurisprudência do Supremo (Cfr. Acórdãos de 19.05.2016 (P. 645/12), de 07.02.2017 (P. 3115/13) e de 19.01.2018 (P. 1195/08).»

Ponderando cada uma das aludidas soluções, escreveu-se nesse Acórdão:

«Não sendo a letra da lei - ao reportar-se apenas ao «cumprimento», como momento inicial do curso da prescrição – suficiente para resolver, em termos cabais, esta questão jurídica, será indispensável proceder a um balanceamento ou ponderação dos interesses envolvidos: assim, importa reconhecer que a opção pela tese que, de um ponto de vista parcelar e atomístico, autonomiza, para efeitos de prescrição, cada um dos pagamentos parcelares efectuados ao longo do tempo pela seguradora acaba por reportar o funcionamento da prescrição, não propriamente à «obrigação de indemnizar», tal como está prevista e regulada na lei civil (arts. 562º e segs.) mas a cada recibo ou factura apresentada pela seguradora no âmbito da acção de regresso, conduzindo a um – dificilmente compreensível – desdobramento, pulverização e proliferação das acções de regresso, no caso de pagamentos parcelares faseados ao longo de períodos temporais significativamente alongados.

Pelo contrário, a opção pela tese oposta – conduzindo a que apenas se inicie a prescrição do direito de regresso quando tudo estiver pago ao lesado - poderá consentir num excessivo retardamento no exercício da acção de regresso pela seguradora, manifestamente inconveniente para os interesses do demandado, que poderá ver-se obrigado a discutir as causas do acidente, de modo a apurar se o estado de alcoolemia verificado contribuiu ou não para o sinistro, muito tempo para além do prazo-regra dos 3 anos a que alude o nº1 do art. 498º do CC (…)».

Por outro lado, acrescenta-se, «a ideia base da unidade da «obrigação de indemnizar» poderá ser temperada pela possível autonomização das indemnizações que correspondam ao ressarcimento de tipos de danos normativamente diferenciados, consoante esteja em causa, nomeadamente:

- a indemnização de danos patrimoniais e não patrimoniais, sendo estes ressarcidos fundamentalmente através de um juízo de equidade, e não da aplicação da referida teoria da diferença;

- a indemnização de danos que correspondam à lesão de bens ou direitos claramente diferenciados ou cindíveis de um ponto de vista normativo, desde logo os que correspondam à lesão da integridade física ou de bens da personalidade e os que decorram da lesão do direito de propriedade sobre coisas.

E tal autonomização ou diferenciação, operada funcionalmente em razão da natureza dos bens lesados, poderá tornar razoável uma consequencial autonomização do início dos prazos de prescrição do direito de regresso: assim, por exemplo, não vemos razão bastante para que, - tendo a seguradora assumido inteiramente perante o lesado o ressarcimento de todos os danos decorrentes da destruição e privação do uso da viatura sinistrada – possa diferir o exercício do direito de regresso quanto a essa parcela autonomizável e integralmente satisfeita da indemnização apenas pela circunstância de, tendo o acidente provocado também lesões físicas determinantes de graves sequelas, ainda não inteiramente avaliadas e consolidadas, estar pendente o apuramento e a liquidação da indemnização pelos danos exclusivamente ligados à violação de bens da personalidade do lesado».

Concluiu-se, então, no aludido Acórdão:

«Em suma: se não parece aceitável a autonomização do início de prazos prescricionais, aplicáveis ao direito de regresso da seguradora, em função de circunstâncias puramente aleatórias, ligadas apenas ao momento em que foi adiantada determinada verba pela seguradora, já poderá ser justificável tal autonomização quando ela tenha subjacente um critério funcional, ligado à natureza da indemnização e ao tipo de bens jurídicos lesados, com o consequente ónus de a seguradora exercitar o direito de regresso referentemente a cada núcleo indemnizatório autónomo e juridicamente diferenciado, de modo a não diferir excessivamente o contraditório com o demandado, relativamente à causalidade e dinâmica do acidente, em função da pendência do apuramento e liquidação de outros núcleos indemnizatórios, claramente cindíveis do primeiro.

E, nesta perspectiva, incumbirá ao R. que suscita a prescrição o ónus de alegar e demonstrar que o conjunto de recibos ou facturas pagas pela seguradora até ao limite do período temporal de 3 anos que precederam a citação na acção de regresso corresponderam a um núcleo indemnizatório, autónomo e bem diferenciado, relativamente aos restantes valores indemnizatórios peticionados na causa – não lhe bastando, consequentemente, alegar, como fundamento da prescrição que invoca, a data constante desses documentos.

Ora, no caso dos autos, para além de tal alegação não ter sido feita (limitando-se, na contestação, o R. a invocar que uma série de facturas, juntas aos autos pela A., datam – e foram pagas – para além do referido período temporal), é manifesto, pela análise dos documentos, que está em causa apenas o ressarcimento antecipado de danos ligados às lesões físicas sofridas pelo sinistrado – reparação dos períodos de incapacidade temporária, despesas médicas e de tratamentos clínicos, custo das deslocações para o estabelecimento em que tais tratamentos se verificavam – pelo que obviamente tais pagamentos parcelares são insusceptíveis de integrar um núcleo indemnizatório, autónomo e juridicamente diferenciado, relativamente ao qual pudesse iniciar-se e correr, de modo também autónomo, um prazo de prescrição do direito de regresso da seguradora/A.».

Adere-se a este entendimento, reiterando-se que a autonomização de núcleos da indemnização, para este efeito de contagem do prazo de prescrição, será admissível apenas em relação a danos autónomos e consolidados, de natureza claramente diferenciada e inteiramente ressarcidos, como é evidenciado pelos exemplos utilizados nos excertos reproduzidos do Acórdão.

Essa autonomização não pode, como por vezes se vê, cindir danos da mesma natureza, relativos a um mesmo lesado, em função do que parecer razoável ao julgador, sob pena de cairmos numa situação de inaceitável incerteza, absolutamente contrária a uma das razões – a certeza e segurança jurídicas – que está na base da prescrição."

[MTS]