"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/01/2021

Jurisprudência 2020 (121)


Caso julgado; âmbito subjectivo;
direito de retenção*


1. O sumário de RP 19/5/2020 (6903/13.5TBVNG-B.P1) é o seguinte:

I - Não é oponível ao credor hipotecário a sentença que, embora com trânsito em julgado, haja declarado, em ação na qual este não foi parte, a existência de direito de retenção alheio sobre o imóvel hipotecado, neste caso a favor do respetivo promitente-comprador.

II - Com efeito, o credor hipotecário, com o reconhecimento de um crédito garantido por direito de retenção, não sofre só um prejuízo económico; sofre também um efetivo prejuízo jurídico, uma vez que a declaração de existência daquele direito de retenção coloca o credor que dele beneficia numa posição de preferência, na ordem de pagamento, relativamente ao credor hipotecário.

III - Por isso, sendo o credor hipotecário terceiro juridicamente interessado, e não tendo sido condenado na sentença em que foi reconhecido o direito de retenção, não pode considerar-se vinculado à sua observância.

IV - Este entendimento é hoje amplamente maioritário nos nossos tribunais superiores.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"I. 1. No despacho proferido em 29.4.2019, para os efeitos do art. 791º do Cód. de Proc. Civil, o crédito reclamado por C… foi julgado verificado pela quantia de 67.000,00€, acrescida de juros de mora civis, vencidos e vincendos, reconhecendo-se ainda ao reclamante direito de retenção sobre o imóvel objeto do contrato promessa.

Posteriormente, na sentença de graduação de créditos proferida em 17.7.2019, este crédito, garantido por direito de retenção, viria a ser graduado com preferência sobre os créditos hipotecários reclamados pelo B…, SA.

No despacho datado de 29.4.2019, como fundamento da sua decisão, foi a seguinte a argumentação do Mmº Juiz “a quo” que aqui se passa a transcrever:

“O crédito reclamado por C…, foi parcialmente reconhecido por sentença transitada em julgado proferida no processo nº 13549/17.7 T8PRT, que correu os seus termos pelo Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim, Juiz 5, tendo a executada H… sido condenada a pagar ao referido C… a quantia de €67.000,00, acrescida dos juros de mora civis, vencidos e vincendos, à taxa de 4%, a contar de 14/09/2012, até efetivo e integral pagamento, sendo ainda reconhecido ao mesmo o direito de retenção sobre o imóvel objeto da promessa até que seja efetuado o referido pagamento.

A nosso ver, com a prolação da referida sentença, ficaram prejudicadas todas as questões constantes da impugnação apresentada pelo B…, SA, salvo no que respeita ao valor do crédito que deverá considerar-se reduzido ao montante ali reconhecido.

Relativamente ao direito de retenção, com todo o respeito por diferente opinião, entendemos que o mesmo deverá ser considerado no âmbito dos presentes autos, sendo oponível aos demais credores, apesar de os mesmos não terem intervindo no processo onde esse direito foi reconhecido.
Com efeito, estabelece-se no artigo 759º, nº 1, do Código Civil, que recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respetivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor, estipulando-se no seu nº 2 que o direito de retenção prevalece neste caso sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente.”

Prosseguindo a sua argumentação, o Mmº Juiz “a quo” respalda-se no Acórdão da Relação do Porto de 21.10.2008, no qual consta o seguinte: “a sentença que reconhece a existência do direito de retenção sobre coisa hipotecada não causa prejuízo jurídico ao credor hipotecário, uma vez que não afecta a existência, a validade ou a consistência jurídica do seu direito, apesar de lhe causar prejuízo económico. Por isso, essa sentença faz caso julgado quanto ao credor hipotecário não interveniente na acção respectiva, pois este é de qualificar como terceiro juridicamente indiferente e não como terceiro juridicamente interessado. A prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca, mesmo que esta tenha sido registada anteriormente, não ofende qualquer dos princípios e valores constitucionais, como sejam o da proporcionalidade, o da igualdade e o da confiança, motivo pelo qual o art. 759º nº 2 do Cód. Civil não é de declarar inconstitucional.”[...]

Como consequência do decidido neste despacho, o Mmº Juiz “a quo” na sentença depois proferida em 17.7.2019 graduou o crédito reclamado por C… com anterioridade relativamente ao reclamado pelo B…, SA.

Ambas as decisões foram objeto de impugnação por parte do credor B…, SA, tendo este considerado, em sede recursiva, que o efeito do caso julgado formado pela sentença proferida no processo com o nº 13549/17.7 T8PRT que correu termos no Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim não é oponível aos credores reclamantes não intervenientes nessa acção, uma vez que estes, relativamente a esta sentença, são terceiros juridicamente interessados.

2. Vejamos então.

A decisão dos recursos interpostos pelo credor hipotecário passa pela análise da questão da extensão do caso julgado a terceiros.

O princípio geral é o da eficácia relativa do caso julgado, ou seja, o da sentença só ter força de caso julgado entre as partes – cfr. art. 581º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil.

Porém, conforme escreve Manuel de Andrade (in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, pág. 312), “os terceiros têm de acatar a sentença proferida entre as partes e a correspondente definição judicial da relação litigada, quando a sentença não lhes causa qualquer prejuízo jurídico, porque deixa íntegra a consistência jurídica do seu direito, embora lhes cause um prejuízo de facto ou económico.”
A sentença, transitada em julgado, impõe-se assim àqueles que Manuel de Andrade (in ob. cit., págs. 312/3) designa como terceiros juridicamente indiferentes, mas já não se impõe aos terceiros juridicamente interessados, isto é àqueles a quem a sentença pode causar um prejuízo jurídico, invalidando a própria existência ou reduzindo o conteúdo do seu direito, e não apenas destruindo ou abalando a sua consistência prática ou económica.

No mesmo sentido, Antunes Varela [...] (in “Manual de Processo Civil”, 1984, Coimbra Editora pág. 708) refere que os terceiros juridicamente indiferentes “são as pessoas a quem a sentença não causa nenhum prejuízo jurídico, por não bulir com a existência ou validade do seu direito, embora possa afectar a sua consistência prática ou económica.”

Por seu turno, Jacinto Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. III, 3ª ed., pág. 201) escreve que “todos estão obrigados a reconhecer o caso julgado entre as partes; o que não podem, em regra, é ser prejudicados por ele, entendendo-se tal prejuízo como um prejuízo de natureza jurídica e não um mero prejuízo de facto.”[...]

Como exemplo de terceiros juridicamente indiferentes, Manuel de Andrade aponta o caso dos credores relativamente às sentenças proferidas nos pleitos em que seja parte o seu devedor. Tais sentenças, escreve (in ob. e loc. cit.), “não invalidam o seu direito nem lhe cerceiam a entidade jurídica. Apenas podem afectar-lhe a consistência prática, enquanto reduzam o património do devedor e, por consequência, a sua solvabilidade.”

3. Uma vez feitas estas considerações, há então que apurar se em relação à sentença proferida no processo com o nº 13549/17.7 T8PRT do Juízo Central Cível de Póvoa de Varzim, em que foi reconhecido direito de retenção ao credor reclamante C…, o credor hipotecário B…, S.A. deve ser encarado como terceiro juridicamente indiferente ou terceiro juridicamente interessado.
Tal como se referiu no dito acórdão da Relação do Porto de 21.10.2008 (proc. 0822499, disponível in www.dgsi.pt), que foi relatado pelo presente relator, trata-se de questão de difícil resposta e que tem conduzido a posições jurisprudenciais divergentes.

Ora, seguindo-se a orientação adotada nesse acórdão, seria de considerar que, relativamente à sentença proferida no dito processo nº 13549/17.7T8PRT que condenou a aqui executada H… a pagar a C… a importância de 67.000,00€, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos e reconheceu a este direito de retenção sobre o imóvel em causa nos autos, o “B…, S.A.” se configurará como terceiro juridicamente indiferente, sendo-lhe, por isso, oponível tal sentença.

Com efeito, entendeu-se aí que o reconhecimento do direito de retenção ao crédito reclamado por C… e a correspondente baixa de lugar na graduação de créditos do reclamado pelo “B…, S.A.” não afeta juridicamente o direito deste, uma vez que este continua o mesmo, com o mesmo conteúdo e a mesma garantia hipotecária.

É que a circunstância de o direito do “B…, S.A.” ter sido afetado na ordem da graduação de créditos, passando a situar-se abaixo do reclamado por C…, não representa para aquela um prejuízo de natureza jurídica, mas tão só um prejuízo meramente fáctico, de ordem apenas económica.

Na verdade, o que sucederá é que antes do crédito do “B…, S.A.”, que ascende a 95.455,68€, acrescido de juros, se colocará o crédito de C…, no valor de 67.000,00€, o que, no caso “sub judice”, significará uma maior vulnerabilização económica, que não jurídica, do direito do “B…, S.A.”.

Ou seja, o crédito deste relativamente à executada H… mantém-se nos seus precisos termos, tal como se mantém a respetiva garantia hipotecária, mas a sua consistência económica surge agora como mais vulnerável face ao direito de retenção de que beneficia o crédito de C….

4. Nesse acórdão da Relação do Porto de 21.10.2008, relatado por este mesmo relator como já se mencionou, referenciaram-se em apoio da solução aí adotada os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.3.1992 (in BMJ, nº 415, págs. 622/632), de 12.1.1993 (in BMJ nº 423, págs. 463/473) e de 16.3.1999 (in BMJ nº 485, págs. 356/360)[...].

Porém, para além destes, existiam ainda outros arestos do nosso mais alto tribunal em sentido semelhante como sejam os Acórdãos de 3.6.2003 (proc. 03A1432) e de 2.7.1998 (proc. 99B084), disponíveis in www.dgsi.pt.[...]

Posteriormente, em sentido idêntico, referenciamos também os Acórdãos da Relação do Porto de 26.5.2011 (proc. 395/09.0TBSJM-B.P1) e de 13.1.2015 (proc. 5729/09.5YIPRT-C.P1), da Relação de Évora de 14.6.2012 (proc. 3052/10.1TBSTR-C.E1) e da Relação de Guimarães de 19.5.2016 (proc. 734/10.1TBPRG-A.G1), todos disponíveis in www.dgsi.pt.

5. Contudo, mais de dez anos volvidos sobre o Acórdão da Relação do Porto de 21.10.2008, constata-se que a orientação do Supremo Tribunal de Justiça é hoje diferente da antes maioritária, como resulta desde logo do Acórdão proferido em 20.5.2010 (proc. 13465/06.8YYPRT-A.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt), onde a propósito de situação idêntica à dos presentes autos, e da consequente qualificação como terceiro juridicamente interessado ou indiferente do credor hipotecário em relação à sentença que reconheceu a um outro credor direito de retenção sobre o imóvel penhorado, se entendeu que esta sentença afeta aquele direito hipotecário, na medida em que vê colocar-se-lhe à sua frente um outro crédito, que, assim, goza de prioridade de pagamento, tendo, igualmente, reduzido o património da executada.

Por isso, esta sentença não é oponível ao credor hipotecário.

É certo que a sentença não põe em causa a existência ou a validade do direito hipotecário do credor “B…, S.A.”, mas não afeta só a sua consistência prática, face à restrição ou à redução do património da executada. Afeta também a sua consistência jurídica, porquanto o confronta com o direito de um terceiro, juridicamente interessado, de algum modo incompatível com o direito de retenção reconhecido ao exequente.

Com efeito, se não existisse o direito de retenção, a hipoteca conferia ao reclamante “B…, S.A.” o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo, atento o disposto pelo artigo 686º, nº 1 do Cód. Civil, sendo que o direito de retenção em análise prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada, anteriormente, como decorre do preceituado pelo artigo 759º, nº 2 do mesmo diploma.

“É que a concorrência de um crédito hipotecário com um crédito garantido pelo direito de retenção não se situa no mesmo plano do crédito comum que vê reconhecido outro crédito comum, hipótese esta em que a concorrência entre ambos se efectua, em igualdade de circunstâncias, e em que o único prejuízo do primeiro se traduz em poder não ser, totalmente, pago, tendo de ratear com o outro crédito o produto da garantia patrimonial do devedor, ao passo que, naquela primeira situação, se verifica uma graduação entre tais créditos, com prevalência do segundo, podendo, inclusivamente, acontecer que, pago este crédito, nada reste já para satisfazer o crédito hipotecário.

Aliás, mesmo antes deste possível prejuízo económico, já existia um efectivo prejuízo jurídico, na medida em que o valor potencial da hipoteca foi, desde logo, diminuído, com a declaração da existência do direito de retenção, que ficou situado numa ordem de pagamento preferente, em relação ao crédito hipotecário.”

Concluiu-se, assim, no referido Acórdão do STJ de 20.5.2010, cuja argumentação temos vindo a seguir, que a sentença que reconheceu o direito de retenção sobre o imóvel penhorado não formou caso julgado quanto ao credor hipotecário, sendo-lhe inoponível, uma vez que tal equivaleria a criar um direito, em desfavor deste credor, sem que o mesmo tivesse tido a possibilidade de defender a prioridade do seu crédito, até contra eventuais e hipotéticos conluios existentes entre as partes naquela acção.

Neste mesmo sentido, surgem os Acórdãos do STJ de 7.10.2010 (proc. 9333/07.4TBVNG-A.P1.S1), de 24.11.2015 (proc. 7368/10.9TBVNG-C.P2.S1), de 12.4.2018 (proc. 622/08.1TBPFR-A.P1.S1) e de 24.10.2019 (proc. 6906/11.4YYLSB-A.L1.S2), da Relação do Porto de 23.3.2017 (proc. 103/09.6TBALB-A.P1), de 27.11.2017 (proc. 909/15.7T8AMT-A.P1) e de 11.7.2018 (proc. 128/15.2T8VNG-B.P1), da Relação de Lisboa de 3.4.2014 (proc. 1149/13.5TJLSB-A.L1-2) e de 15.3.2018 (proc. 11159/14.0T2SNT-A.L1-8), da Relação de Guimarães de 21.9.2017 (proc. 954/13.7TJVNF-A.G1) e de 10.7.2019 (proc. 503/14.0T8CHV-A.G1) e da Relação de Évora de 12.4.2018 (proc. 57/09.9T2 STC-C.E1), todos disponíveis in www.dgsi.pt.

6. Confrontado então com aquela que é hoje a orientação jurisprudencial claramente maioritária dos nossos tribunais superiores e com a argumentação que tem vindo a ser adotada por estes, entende o presente relator ser de alterar a sua posição sobre a questão colocada nestes recursos.

Sobre ela haverá que aludir ainda ao que foi escrito por José Lebre de Freitas (In R.O.A., Ano 66-2006 – Vol. II – Setembro 2006, Doutrina, “Sobre a prevalência, no apenso de reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença”, “Extensão subjectiva da eficácia da sentença sobre o direito de retenção” e “Legitimidade para impugnar o direito de retenção na acção de verificação e graduação de créditos”), que se passa a citar [...]:

“7.1. No âmbito da extensão subjectiva da sua eficácia, a sentença só pode ser posta em causa mediante recurso de revisão, destinado a obter a sua revogação (art. 771 CPC), sem prejuízo, se ocorrerem os respectivos pressupostos, do recurso de oposição de terceiro (art. 778 CPC)[...].

Mas o recurso a estes meios processuais só é necessário e adequado na medida em que quem deles queira lançar mão seja abrangido pela eficácia do caso julgado.

Não é o caso do credor hipotecário cujo direito de garantia se tenha constituído antes do direito de retenção, autor da acção declarativa.

A consagração constitucional do direito de defesa tem como corolário que o caso julgado não possa produzir-se contra quem não tenha tido oportunidade de intervir no processo em que a sentença é proferida, pelo que a sujeição de terceiros ao regime definido na sentença não é uma sujeição à autoridade do caso julgado, mas tão-só à eficácia da sentença, e circunscreve-se no plano dos efeitos práticos ou de facto, não podendo um terceiro ver afectada a existência ou o conteúdo dum seu direito. Independentemente da possibilidade de invocação do caso julgado favorável em certos casos de contitularidade ou dependência de situações jurídicas em que a lei o alarga a terceiros secundum eventum litis e da produção do caso julgado perante terceiros que, citados para intervir na causa, não o quiserem fazer, a limitação subjectiva do âmbito do caso julgado faz-se em termos paralelos aos da circunscrição da eficácia do negócio jurídico pelas regras da legitimidade ou, segundo a doutrina tradicional, pela regra res inter allios acta aliis nec nocere nec prodesse potest, pelo que a sentença acerta as situações jurídicas das partes entre si com a mesma eficácia com que elas próprias o poderiam fazer celebrando um negócio jurídico à data em que ela é proferida e a produção dos seus efeitos perante terceiros limita-se aos casos em que estes estão sujeitos pelo direito substantivo às consequências do exercício dos poderes dispositivos da parte.

Assim se explica que terceiros juridicamente indiferentes, mas titulares de direitos cuja consistência prática pode ser afectada pela decisão, sejam abrangidos pela eficácia da sentença. É o caso do credor comum da parte na acção de reivindicação, que, não podendo impedir o acto (extrajudicial) de alienação dum bem do seu devedor, não obstante a consequente diminuição da garantia patrimonial do seu crédito, tão-pouco pode pôr em causa a sentença que reconheça o direito da outra parte sobre o bem reivindicado ou que lho atribua com base no exercício dum seu direito potestativo (execução específica, preferência, partilha ou divisão de coisa comum).

Assim se explica também que terceiros (juridicamente interessados) titulares de situações jurídicas dependentes, já não apenas na sua consistência prática mas na sua própria existência ou conteúdo, da situação jurídica da parte, não possam discutir a questão coberta pelo caso julgado, quando a subsistência ou o conteúdo dessa sua situação jurídica também extrajudicialmente podia ser afectado por via da manifestação de vontade negocial da parte na relação jurídica de que a sua situação depende. É o caso do subcontratante, tal como o sublocatário ou o subempreiteiro, cuja posição contratual se extingue com a extinção da locação ou da empreitada, inclusivamente por acto de vontade do locatário (resolução, nos termos do art. 1050 CC; denúncia, nos termos dos arts. 1054-1 CC e 1055 CC; revogação por acordo com o locador), do dono da obra (desistência, nos termos do art. 1229 CC; resolução, nos termos gerais dos arts. 432 CC e 801-2 CC) ou do empreiteiro (resolução, nos termos gerais; revogação por acordo com o dono da obra), e que, por isso, resultará também extinta por via de sentença que anule ou declare a nulidade da locação ou da empreitada ou verifique a sua extinção.

Mas já quando o terceiro é titular duma situação jurídica dependente da da parte principal, mas sem que esta a possa negativamente afectar por via negocial, ou duma situação jurídica paralela, concorrente ou independente e incompatível com a da parte principal, por isso nunca afectável negativamente por uma actuação negocial desta, o caso julgado não pode ser contra ele invocado.

Facilmente se vê, em face destes princípios, que não é oponível ao credor hipotecário a sentença que, em acção que tenha corrido entre o promitente comprador e o promitente vendedor, ou entre o empreiteiro e o dono da obra feita no prédio hipotecado, reconheça o direito de retenção do primeiro.

7.2. O direito real de garantia, uma vez validamente constituído, não está, na sua existência ou conteúdo, sujeito às vicissitudes da actuação negocial do devedor ou do proprietário do bem (ou titular de direito real menor sobre ele) que negativamente o possam afectar. (…)

Ora ao conteúdo do direito real de garantia, que implica a afectação especial duma coisa ao pagamento duma dívida, com preferência do credor sobre os demais credores que, por lei, não lhe devam preferir, é inerente a posição do credor na graduação de créditos. (…) Uma das características do direito real, inerente à sua natureza de direito absoluto, é, precisamente, a preferência ou prevalência de que é dotado em face dos outros direitos; ela surge também como característica do direito real de garantia, mas desta vez como factor de resolução do fenómeno da sua concorrência com outros direitos da mesma natureza incidentes sobre a mesma coisa; em especial, o grau hipotecário de tal modo faz parte do conteúdo do direito de hipoteca que pode ser objecto de cessão autónoma a outro credor hipotecário (art. 729 CC). Portanto, a sentença de que resulte que outro direito real deve sobre ele prevalecer afecta-o no seu conteúdo e consistência jurídica. Do titular do direito real de garantia nunca se pode dizer que é um terceiro juridicamente indiferente a uma sentença que afecte o grau da sua garantia. Na realidade, a relação jurídica de garantia real é, ao mesmo tempo que dependente da relação de crédito que garante (como resulta do art. 717-2 CC), independente e incompatível em face de outras relações de garantia que tenham por objecto o mesmo bem.

Em contrário, não se pode vir dizer que não há incompatibilidade porque, reconhecido, por exemplo, o direito de retenção, o direito de hipoteca continua a existir, embora graduado depois dele. Do mesmo modo, dir-se-ia então que não há incompatibilidade entre o direito de propriedade e o direito de usufruto ou de servidão, visto que a existência deste não extingue a propriedade, que permanece não obstante a existência de usufruto ou servidão alheia sobre o bem próprio; ou entre o direito de propriedade e o direito de hipoteca, visto que o proprietário conserva o seu direito sobre o bem hipotecado; ou ainda entre o direito de usufruto e o direito de servidão ou de superfície. Na realidade, são entre si incompatíveis todos os direitos reais incidentes sobre a mesma coisa, sejam eles de gozo ou de garantia, pois, ainda que possam coexistir, esta coexistência diminui a utilidade que cada um dos titulares pode tirar da coisa, por afectar quer a extensão do uso e fruição da coisa (pelo titular do direito real de gozo), quer o valor que, através de um acto de alienação, dela pode ser extraído (pelo titular do direito real de gozo ou pelo titular do direito real de garantia). (…)

Por fim, o art. 869-5 CPC[...], ao impor o litisconsórcio necessário passivo de exequente, executado e restantes credores reclamantes na acção autónoma que o credor com garantia real que não tenha título executivo deve propor para ser admitido a reclamar, mostra bem que o credor com garantia real não é nunca um terceiro juridicamente indiferente.

Não é, pois, invocável perante o credor hipotecário a sentença que, com trânsito em julgado, tenha declarado, em acção em que o credor hipotecário não foi parte, a existência de direito de retenção alheio sobre o imóvel hipotecado, inclusivamente a favor do promitente comprador do imóvel ou fracção ou do empreiteiro que nele construiu um prédio urbano.”

E “8.1. Não sendo contra ele invocável a sentença que declare a existência de direito de retenção sobre a coisa hipotecada em acção movida pelo respectivo titular contra o promitente vendedor ou o dono de obra, não carece o credor hipotecário de dela recorrer extraordinariamente, nem de mover acção declarativa própria. Todas as questões contra a verificação do direito de retenção podem ser levantadas na acção de verificação e graduação de créditos. (…). O credor hipotecário pode assim pôr directamente em causa o direito de retenção nos termos gerais, isto é, mediante impugnação dos factos alegados pelo empreiteiro, na petição da acção executiva por ele proposta ou na petição da acção de verificação e graduação de créditos, em que reclame, ou mediante sustentação da respectiva inconcludência; e, constituindo a existência do crédito garantido pressuposto do direito de retenção, ela mesma pode ser impugnada pelo credor hipotecário, embora com as limitações adiante referidas.”

7. Deste modo, alterando o presente relator a sua posição por força da jurisprudência e doutrina acabadas de referenciar, adere-se pois ao entendimento, hoje maioritário, segundo o qual não é oponível ao credor hipotecário a sentença que, embora com trânsito em julgado, haja declarado, em ação na qual este não foi parte, a existência de direito de retenção alheio sobre o imóvel hipotecado, neste caso a favor do respetivo promitente-comprador.

Por isso, todas as questões que contendam com a verificação deste direito de retenção podem ser levantadas na ação de verificação e graduação de créditos, como o foram, no presente caso, pelo credor hipotecário B…, S.A. em sede de impugnação ao crédito reclamado por C….

Como tal, o credor hipotecário tem assim a possibilidade de pôr diretamente em causa o direito de retenção invocado pelo credor reclamante mediante impugnação dos factos alegados na respetiva reclamação de créditos ou sustentando a sua inconcludência.[...]

Consequentemente, como a sentença proferida no processo com o nº 13549/17.7T8PRT do Juízo Central Cível de Póvoa de Varzim, Juiz 5, embora transitada em julgado, não é oponível ao credor hipotecário B…, S.A., impõe-se a revogação do despacho proferido em 10.5.2019 na parte em que julgou verificado o crédito reclamado por C… pelo montante de 67.000,00€ e reconheceu a este direito de retenção sobre o imóvel objeto do contrato-promessa, com base apenas naquela sentença.

Os autos terão pois que seguir os seus termos, mas apenas no segmento destinado a apurar da existência do direito de retenção invocado pelo credor reclamante C…, sendo também revogada a posterior sentença de graduação de créditos, datada de 17.7.2019 na parte relativa ao imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 428/19900122 (freguesia …)."

*3. [Comentário] O acórdão encontra-se bem fundamentado e adopta a única orientação que é admissível na matéria, dado que um direito de retenção não pode ser oposto a alguém que não foi parte numa acção na qual esse direito foi reconhecido. É a solução que é imposta pela circunstância de, em regra, o caso julgado só ser vinculativo inter partes.

Nada de especial, como é claro. O reconhecimento de qualquer direito real numa acção é sempre inoponível a quem, não tendo sido parte nessa acção, o queira contestar numa outra acção.

MTS