"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/01/2021

Jurisprudência 2020 (124)


"Contrato emprego-inserção+"
Competência material*


1. O sumário de RG 26/5/2020 (1064/18.6BEBRG.G1) é o seguinte:

I - Os juízos do trabalho não têm competência para conhecer de questão em que o autor pretende retirar da conduta do réu o direito a reparação nos termos previstos no Código do Trabalho – sendo certo que ao tribunal que for competente caberá, sem sujeição a tal pretensão, indagar, aplicar e interpretar o direito – se alicerçou tal direito num «contrato emprego-inserção+», cuja denominação, qualificação e subsunção ao regime previsto na Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro, republicada pela Portaria n.º 20-B/2014, de 30 de Janeiro, não colocou em causa, nada tendo alegado em contrário, nem de facto, nem de direito.

II - Compulsado o art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, a questão não cabe igualmente na competência daqueles tribunais, designadamente por também não estar em causa uma relação de emprego público, recaindo, consequentemente, na competência residual dos juízos cíveis (arts. 64.º e 65.º do Código de Processo Civil e 40.º, 117.º e 130.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário).

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4. Apreciação do recurso

Antes de mais, cabe referir que a questão em apreço é em tudo semelhante à que constituiu objecto do Acórdão desta Relação de 19 de Março de 2020, proferido no processo n.º 2953/17.0T8BCL.G1 (disponível em www.dgsi.pt), tendo as ora Relatora e 1.ª Adjunta aí intervindo como 1.ª e 2.ª Adjuntas, respectivamente, pelo que a resposta à mesma não pode deixar de ser similar.

Estabelece a Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, no que ao presente caso pode interessar:

Artigo 126.º
Competência cível

1 - Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível:
(…)
b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;
(…)
f) Das questões emergentes de contratos equiparados por lei aos de trabalho;
g) Das questões emergentes de contratos de aprendizagem e de tirocínio;
(…)

Refere-se na decisão recorrida:

«Importa, pois, aferir se a relação contratual que é invocada nestes autos pode ser considerada uma relação de trabalho subordinado, uma relação equiparada a um contrato de trabalho ou um contrato de aprendizagem ou tirocínio.

A relação contratual invocada consubstanciou-se na celebração dos contratos cuja cópia está junta a fls 8-10 e 11-13, denominados “Contrato Emprego-Inserção+”, contratos esses que, como é referido no próprio documento, foram celebrados no âmbito da Medida Contrato Emprego-Inserção+, destinado a desempregados beneficiários do Rendimento Social de Inserção e outros desempregados, nos termos do estipulado pela Portaria nº 128/2009, de 30 de Janeiro (posteriormente alterada, tendo sido alterada e republicada pela Portaria nº 20-B/2014, de 30 de Janeiro), regulamentada pelo Despacho nº 1573-A/2014, de 30 de Janeiro.

Nos termos do artº 1º da Portaria vinda de referir, os contratos de Emprego-Inserção destinam-se à realização de “trabalho socialmente necessário”, tendo como objetivos, nos termos do artº 2º, promover a empregabilidade de pessoas em situação de desemprego, preservando e melhorando as suas competências socioprofissionais através da manutenção do contacto com o mercado de trabalho, fomentar o contacto dos desempregados com outros trabalhadores e atividades, evitando o risco do seu isolamento, desmotivação e marginalização, e satisfazer necessidades sociais ou coletivas, em particular ao nível local ou regional.

Podem ser beneficiários destes contratos desempregados beneficiários do rendimento social de inserção, sendo a seleção dos beneficiários feita pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P. (arts. 5.º-A, n.º 2 e 6.º). O contrato tem a duração máxima de 12 meses, com ou sem renovação (art.º 8.º, n.º 3), e durante a execução do mesmo o beneficiário aufere uma “bolsa de ocupação mensal” de montante correspondente ao valor do indexante dos apoios sociais, paga pela entidade promotora mas comparticipada pelo IEFP, I. P. (art.º 13.º, n.os 3 e 4).

Ora, este enquadramento legal do contrato celebrado entre o autor e o MUNICÍPIO X não pode deixar margem para dúvidas quanto a não estarmos perante uma relação de trabalho, equiparada a tal ou de aprendizagem ou tirocínio. Os contratos de Emprego-Inserção+ destinam-se a desempregados, que não deixam de o ser por força do desempenho de funções ao abrigo daqueles contratos. De tal forma assim é que o artº 10º da Portaria é claro ao estatuir que “durante o período de exercício das atividades integradas num projeto de trabalho socialmente necessário, o desempregado subsidiado é abrangido pelo regime jurídico de proteção no desemprego”. Nenhum sentido faria que o legislador considerasse aquele contrato como sendo fonte de uma relação laboral e continuasse a assegurar a proteção no desemprego. Por outro lado, no próprio contrato celebrado entre as partes destes autos (cláusula 5.ª, n.º 6) se prevê expressamente que o aqui autor pudesse ter de faltar por ter sido convocado pelo IEFP, I.P. “tendo em vista a obtenção de emprego ou a frequência de ações de formação profissional”, o que claramente demonstra que este contrato não é de trabalho, pois durante a sua execução continuava o aqui autor adstrito ao cumprimento das obrigações tendentes à obtenção de emprego. Por isso, é claro que não se pretende com os contratos aqui em apreço constituir qualquer relação laboral em que o beneficiário passe a estar na dependência jurídica ou económica da entidade promotora, mas apenas proporcionar aos desempregados a melhoria das suas competências socioprofissionais, através da manutenção do contacto com o mercado de trabalho, o fomento do contacto com outros trabalhadores e atividades, evitando o risco do seu isolamento, desmotivação e marginalização, e a satisfação de necessidades sociais ou coletivas. Não se trata, pois, de qualquer relação laboral ou sequer que a ela possa ser equiparada.

Por outro lado, o contrato de aprendizagem ou tirocínio visa a aquisição pelo aprendiz de conhecimentos técnicos que o habilitem a desempenhar as funções aprendidas num momento posterior, ao abrigo de um contrato de trabalho. Tal tipo de contratos pressupõe a perspetiva de eventual contratação posterior para o cargo que se está a desempenhar, o que no caso que nos ocupa não se verifica. Aqui estamos perante o desempenho de funções socialmente necessárias, que podem não ter qualquer relação com o emprego que o beneficiário venha eventualmente a conseguir na sequência das diligências levadas a cabo pelo IEFP, I.P., e que não têm de implicar a aquisição de quaisquer conhecimentos por parte do beneficiário. Não se vê, portanto, de que modo possa enquadrar-se a relação contratual trazida a juízo pelas partes como um contrato de aprendizagem ou tirocínio.

Do que vem de ser dito resulta, pois, que o contrato celebrado entre as partes destes autos não é fonte de qualquer relação jurídico-laboral ou de emprego. No mesmo sentido se decidiu nos acórdãos da Relação de Guimarães de 26/02/2015 e da Relação de Évora de 04/12/2014 e 05/11/2015 (disponíveis em www.dgsi.pt, com os n.os de processo, respetivamente: 243/11.1TTBCL.G1, 294/13.1TTEVR.E1 e 503/13.7T2SNS-A.E1).

Não se desconhece o que vem sendo decidido pelo Tribunal de Conflitos, nomeadamente nos acórdãos proferidos em 25/01/2018, 31/01/2019 e 28/02/2019 (disponíveis em www.dgsi.pt, com os n.os de processo, respetivamente: 053/17, 040/18 e 042/18) e o que, na sequência de tais decisões e para elas remetendo, decidiu a Relação do Porto no acórdão de 10/07/2019 (idem, com o n.º de processo: 1942/18.2T8VNG.P1). Contudo, e salvo sempre o devido respeito, os argumentos ali expendidos não conseguem afastar o que acima se disse quanto às características do contrato aqui em apreço, que não se vê de que modo possam ser enquadradas numa relação de emprego e muito menos numa “relação laboral sui-generis”, conforme se afirma no último acórdão citado. Há elementos (legais e contratuais) que claramente apontam para a inexistência de características essenciais da relação laboral no tipo contratual aqui em apreço, conforme acima se disse. Quanto à análise feita pelo Tribunal de Conflitos, não há dúvidas (e nessa parte se concorda com tais decisões) quanto a não estarmos perante uma relação de emprego público que determine a competência dos tribunais administrativos. Isso não significa, porém, que se possa automaticamente concluir pela existência de uma relação de emprego privado. O que há é – salvo sempre o devido respeito por melhor entendimento – uma relação contratual que não é subsumível a uma relação laboral (seja de emprego público ou privado) e, nessa medida, a competência para a sua apreciação cabe na competência residual da jurisdição cível.»

A competência material dos tribunais deve aferir-se em função da relação material controvertida tal como configurada pelo autor na petição inicial, e, assim, conforme referido no citado Acórdão desta Relação de 19 de Março de 2020, não obstante a posição do tribunal de conflitos, mantemos que o entendimento correcto é o perfilhado no Acórdão desta Relação de 26 de Fevereiro de 2015, proferido no processo n.º 243/11.1TTBCL.G1 (disponível em www.dgsi.pt), invocado na decisão recorrida.

Ambos os aludidos arestos desta Relação invocaram em seu abono, desde logo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Novembro de 2001, proferido no processo n.º 01S888 (disponível em www.dgsi.pt), em que se refere:

“Estamos antes perante uma relação de segurança social, especificamente de ação social, fundamentalmente estabelecida entre os serviços públicos competentes (IEFP e Centros de Emprego) e os beneficiários, intervindo as "entidades promotoras" das atividades ocupacionais como colaboradoras da Administração na execução dessas finalidades de solidariedade e segurança social.

Como se viu, é expressamente proibido que a atividade ocupacional consista no preenchimento de postos de trabalho existentes, não podendo as entidades promotoras que se candidatam à execução de projetos de atividades ocupacionais preencher postos de trabalho nem sequer exigir aos trabalhadores o desempenho de tarefas que não se integrem nos projetos aprovados. Por sua vez, os trabalhadores em situação de comprovada carência económica que prestem uma atividade ocupacional não auferem uma retribuição, tendo apenas direito a um subsídio mensal de montante igual ao valor do salário mínimo nacional (isto é, completamente independente do tipo e natureza do trabalho executado, o que demonstra que não se pretendeu remunerar essa atividade mas antes garantir ao beneficiário "um rendimento de subsistência", como se refere no preâmbulo da Portaria), que, no caso concreto, é comparticipado a 100% pelo IEFP. A entidade promotora da atividade apenas suporta as despesas de transporte, alimentação e seguro de acidentes (acidentes pessoais, que não acidentes de trabalho -cfr. n.º 6.º, n.º 2, alínea a)). É extensa e claramente dominante a intervenção do IEFP e dos Centros de Emprego, quer na fiscalização da execução da atividade, visando impedir o preenchimento de postos de trabalho, quer mesmo na cessação dos acordos, pois grande parte das causas dessa cessação resulta de incumprimento de obrigações dos trabalhadores para com os serviços oficiais de segurança social, que não do incumprimento de obrigações dos trabalhadores para com as entidades promotoras das atividades.

Em conformidade, é de entender que a relação material controvertida que sustenta a pretensão do A., tal como ele próprio a configura na petição inicial, não pode ser considerada como tendo natureza laboral ou equiparada, como decorre das suas características, nos termos da Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro, republicada pela Portaria n.º 20-B/2014, de 30 de Janeiro, regulamentada pelo Despacho n.º 1573-A/2014, de 30 de Janeiro. [...]

Em suma, o «Contrato emprego-inserção» ou o «Contrato emprego-inserção+» inscreve-se nas medidas de protecção social da eventualidade de desemprego dos trabalhadores por conta de outrem, como resulta do DL n.º 220/2006, de 3 de Novembro, ao abrigo do qual foi emitida a citada Portaria. Refere-se no preâmbulo daquele diploma que se “(…) impõe um aumento dos esforços no sentido da activação rápida dos trabalhadores que temporariamente se encontrem em situação de desemprego, pois o ciclo de deterioração das qualificações é hoje substancialmente mais acelerado. Considerando que as medidas passivas de emprego devem ter a duração do período de tempo estritamente necessário para que seja possível o retorno ao mercado de trabalho, são previstos mecanismos de activação dos beneficiários, reforçando-se para o efeito a acção do serviço público de emprego.”

Por seu turno, a Portaria, no seu preâmbulo, alude a que assume “(…) particular valor estratégico a revisão da regulamentação das medidas activas de emprego que, em complementaridade aos instrumentos de protecção social, procuram melhorar os níveis de empregabilidade e estimular a reinserção no mercado de trabalho dos trabalhadores que se encontram em situação de desemprego.

O contrato emprego-inserção e o contrato emprego-inserção+ integram-se no conjunto destas medidas, considerando que, ao permitirem aos desempregados o exercício de actividades socialmente úteis, promovem a melhoria das suas competências socioprofissionais e o contacto com o mercado de trabalho”. Trata-se de “apoios públicos ao desenvolvimento de trabalho socialmente necessário por parte de desempregados, enquanto estes aguardam por uma alternativa de emprego ou de formação profissional.” [...]

A Lei n.º 13/2003, de 21/05, de modo semelhante, refere na al. c) do n.º 6 do art. 11.º, relativamente ao contrato de inserção, a “participação em programas de ocupação ou outros de carácter temporário que favoreçam a inserção no mercado de trabalho ou satisfaçam necessidades sociais, comunitárias ou ambientais e que normalmente não seriam desenvolvidos no âmbito do trabalho organizado”.

De todo o exposto resulta que o “trabalho socialmente necessário” tem um enquadramento jurídico próprio, no âmbito da protecção social no desemprego, que nada tem a ver com o estabelecido no Código do Trabalho para o contrato de trabalho ou equiparado, cujas noções resultam dos arts. 10.º e 11.º.

Retornando à situação dos autos, constata-se que o A. alegou, em síntese:

- o A. e o R. celebraram contratos de emprego-inserção + em 31/09/2015 e 31/01/2017, no âmbito de medida cujos destinatários são os desempregados beneficiários do rendimento de inserção e outros desempregados elegíveis, para prestar trabalho socialmente necessário na área de limpeza e conservação dos espaços públicos;

- o A. recebeu comunicação do R. datada de 8/02/2017, a resolver o contrato de emprego-inserção + com efeitos a 7/02/2017, sem qualquer outra fundamentação que não fosse a invocação da b) do n.º 4 da cláusula 7.ª do contrato, violando, assim, o n.º 5 da mesma cláusula, que esclarece que a resolução deve indicar o motivo e observar a antecedência mínima de oito dias;

- o A. não faltou injustificadamente ao trabalho e limitou-se a aguardar indicações em casa, conforme lhe ordenou o R..

Posto isto, conclui-se que, não obstante o A. pretenda retirar da conduta do R. o direito a reparação nos termos previstos no Código do Trabalho – sendo certo que ao tribunal competente caberá, sem sujeição a tal pretensão, indagar, aplicar e interpretar o direito –, alicerçou-o num «contrato emprego-inserção+», cuja denominação, qualificação e subsunção ao acima analisado regime não colocou em causa, nada tendo alegado em contrário, nem de facto, nem de direito, pelo que é por demais evidente que o conhecimento da questão não cabe na competência dos juízos do trabalho. [...]

É certo que, compulsado o art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, nos parece que a questão não cabe igualmente na competência daqueles tribunais, designadamente por também não estar em causa uma relação de emprego público, recaindo, consequentemente, na competência residual dos juízos cíveis (arts. 64.º e 65.º do Código de Processo Civil e 40.º, 117.º e 130.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário).

Assim se entendeu também, aliás, na decisão recorrida, e é esse também o parecer do Senhor Procurador-Geral Adjunto junto desta instância.

Ao Supremo Tribunal de Justiça caberá decidir se assim é, nos termos dos arts. 101.º, n.º 1, 629.º, n.º 2, al. b) e 671.º, n.ºs 1 e 3 a contrario do Código de Processo Civil, no recurso que vier a ser interposto do presente Acórdão, se for o caso, podendo o A., em alternativa, usar da faculdade prevista no art. 99.º, n.º 2, do mesmo diploma legal."

*3. [Comentário] Apenas duas notas:

-- A RG afasta-se da orientação do TdC; não questionando essa possibilidade, não pode deixar de se perguntar se, perante uma orientação definida pelo tribunal exclusivamente competente para a resolução de conflitos de jurisdição, a confiança que o sistema judiciário deve incutir nos interessados não implicaria outra solução;

-- Se a RG não queria seguir a orientação do TdC e tinha dúvidas -- aliás, perfeitamente legítimas -- sobre o tribunal materialmente competente, teria sido muito melhor recorrer ao sistema da consulta prejudicial constante da L 91/2019, de 4/9, do que remeter para o que o STJ venha a decidir no recurso que para ele venha a ser eventualmente interposto.

MTS