"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/01/2021

Jurisprudência 2020 (135)


Poderes probatórios; 
princípio inquisitório; âmbito


1. O sumário de RL 21/5/2020 (217/18.1T8MTA.L1-2) é o seguinte:

I) O princípio do dispositivo, consagrado no art.º 3.º do CPC, além de fazer impender sobre os interessados o ónus da iniciativa processual, estende-se à conformação do objecto do processo integrado, não só pela formulação do pedido, como ainda pela alegação da matéria de facto que lhe sirva de fundamento.

II) De acordo com tal princípio, a lei faz recair sobre a parte onerada com o ónus da prova os meios necessários a convencer o Tribunal da realidade dos factos alegados.

III) O princípio do inquisitório deve ser interpretado como um poder-dever limitado, restringindo-se, em matéria probatória, na busca pelas provas dentro dos factos alegados pelas partes (factos essenciais), com vista à justa composição do litígio e ao apuramento da verdade.

IV) Não pode o juiz ao abrigo do princípio do inquisitório suprir o incumprimento de formalidades essenciais pelas partes, permitir o atropelo de normas legais e postergar o princípio da auto-responsabilização das partes.

V) Como decorre do artigo 51.º, n.º 6, do NRAU, no caso de ser invocado que o arrendatário é uma “microentidade”, o ónus da junção com a resposta ao senhorio da comprovação de tal qualidade, incorre sobre o arrendatário que não poderá prevalecer-se da circunstância invocada.

VI) O “protestar” juntar documento não tem qualquer consequência, pois, a intenção de praticar um acto processual não equivale à sua prática, não podendo advir daí consequências jurídicas, como se o acto que não foi praticado, o tivesse sido.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] a ré reporta-se a documento que comprove a sua qualidade de microentidade, para a produção dos efeitos do disposto no artigo 51º, n.º 4, alínea a) e n.º5 do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro (na redação conferidas pelas Lei 31/2012 de 14 de agosto e Lei 79/2014 de 19 de dezembro, Lei 42/2017 de 14 de junho e Lei 43/2017 de 14 de junho).

De acordo com o mencionado n.º 5 do artigo 51.º do NRAU, para efeitos dessa lei, “microentidade” é “a empresa que, independentemente da sua forma jurídica, não ultrapasse, à data do balanço, dois dos três limites seguintes: a) Total do balanço: (euro) 2 000 000; b) Volume de negócios líquido: (euro) 2 000 000; c) Número médio de empregados durante o exercício: 10”.

Nos termos do artigo 51.º, n.º 6, do NRAU, o arrendatário que invoque uma das circunstâncias previstas no n.º 4 do mesmo artigo “faz acompanhar a sua resposta de documento comprovativo da mesma, sob pena de não poder prevalecer-se da referida circunstância”.

Como decorre desta norma, no caso de ser invocado que o arrendatário é uma “microentidade”, o ónus da junção com a resposta ao senhorio da comprovação de tal qualidade, incorre sobre o arrendatário que não poderá prevalecer-se da circunstância invocada.

Ora, no caso, a ré não promoveu – tanto quanto é dada conta nos autos - a junção do documento que agora considera essencial.

A circunstância de, em determinado momento processual, ter manifestado “protestar” juntar o documento comprovativo da sua situação de “microentidade” não tem qualquer consequência, pois, a intenção de praticar um acto processual não equivale à sua prática, não podendo advir daí consequências jurídicas como se o acto que não foi praticado, o tivesse sido.

Por outro lado, como se assinalou, não tendo a ré, por qualquer modo, manifestado como essencial o documento que, agora, considera que revestia tal natureza, não se pode considerar que tenha ocorrido alguma “inércia” do Tribunal recorrido no facto de não ter determinado às partes a sua junção aos autos.
Mas, como se disse, atento o que consta do artigo 7.º, n.º 4, do CPC, não foi alegada, no decurso dos autos, alguma justificada dificuldade na apresentação do documento em questão, que determinasse algum condicionamento da ré no exercício dos seus direitos ou faculdades e que pudesse inculcar ter o Tribunal recorrido omitido o cumprimento do princípio da cooperação processual expresso nesse preceito legal. Não se afigura que algum dos demais princípios invocados pela recorrente impusesse diversa solução.

Conforme se concluiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-07-2019 (Processo 68/12.7TBCMN-C.G1, rel. CONCEIÇÃO SAMPAIO):

“I - O princípio do inquisitório deve ser interpretado como um poder-dever limitado, restringindo-se, em matéria probatória, na busca pelas provas dentro dos factos alegados pelas partes (factos essenciais), com vista à justa composição do litígio e ao apuramento da verdade.

II - O princípio da cooperação deve ser conjugado com o princípio da auto-responsabilidade das partes, que não comporta o suprimento por iniciativa do juiz da omissão da apresentação dos meios de prova no momento processualmente determinado.

III - O juiz não se encontra obrigado a determinar a junção de um documento só porque a parte, que não o apresentou oportunamente, invoca a importância daquele para a descoberta da verdade. A não se entender assim, perdia sentido a obrigação de apresentação da prova em momentos processuais determinados, pois restaria sempre à parte a possibilidade de invocar a sua essencialidade”.

Apreciando uma situação em que o arrendatário procurou comprovar, em sede de recurso, a qualidade de microentidade, nos termos e para os efeitos consignados no artigo 51.º do NRAU, considerou-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-11-2018 (Processo 10909/17.7T8LSB.L1-6, rel. MANUEL RODRIGUES) que não deveria ser admitida a junção probatória do documento que visava comprovar tal qualidade da arrendatária, designadamente, pelos seguintes motivos:

“Em primeiro lugar, não se pode dizer que a Recorrente, não podia razoavelmente contar com o objecto da sentença recorrida e respectiva fundamentação porquanto era expectável, que o Tribunal a quo se pronunciasse sobre a verificação da circunstância prevista na alínea a) d n.º 4 do artigo 51.º do NRAU, na redacção dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto [“Que existe no locado um estabelecimento comercial aberto ao público e que é uma microempresa”], a qual foi, aliás, invocada pela própria Recorrente.

E, como decorre dos artigos 51.º, n.º 4 e 54.º, n.º 1, do NRAU, na redacção dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto [versão em vigor e a que respeitam as posteriores referencias ao NRAU, sem outra menção], e da regra geral do art.º 342.º do Cód. Civil, era sobre a Recorrente que incumbia o ónus da prova relativo ao número médio de pessoas empregues durante o exercício «critério de efectivos» e dos limites máximos de volume de negócios ou dos limites máximos do balanço no exercício contabilístico encerrado imediatamente anterior «critério de volume de negócios ou de balanço total» ao da comunicação do senhorio a que alude o art.º 50.º do NRAU.

Tal invocação e prova tinha de ser feita no prazo de 30 dias a contar da recepção da comunicação do senhorio para actualização da renda [art.º 51.º, n.º 1, do RAU] (…).

E, em caso de desacordo e litígio entre as partes contratantes, sob pena de violação dos princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes, a actividade do Tribunal tem de incidir sobre as circunstâncias alegadas pelo senhorio como fundamento da caducidade do contrato de arrendamento e as circunstâncias que, em resposta, forem invocadas pelo arrendatário como obstativas da caducidade (…)”.

Ora, todas estas circunstâncias são perfeitamente transponíveis para a situação dos autos, em que a ré considera que o Tribunal recorrido a deveria ter notificado para juntar o documento de comprovação da sua qualidade de microentidade.

Não se vê que a ré estivesse impossibilitada de juntar, em tempo, tal documento; nem, como se disse, que tenha ocorrido justificada dificuldade na sua oportuna junção; tal como, perante a demanda apresentada pelos autores, certamente, que a ré, usando da necessária diligência, configuraria como conveniente, para a defesa da argumentação que desenvolvesse, a junção do documento em questão, que, aliás, como se disse, protestou juntar, assim admitindo, claramente, que o mesmo poderia ser pertinente para a defesa dos seus interesses.

Certo é que, não ficou patenteado, junto do Tribunal recorrido que este tivesse incumprido algum dever processual, pelo facto de não ter determinado a junção do documento em questão, não prevalecendo, no caso em apreço, o princípio da cooperação, do inquisitório ou da descoberta da verdade material, sobre o princípio da auto-responsabilização da ré, relativamente à sua posição processual."

[MTS]