Nulidade processual;
contraditório*
- A falta de audição da parte contrária, em violação do princípio do contraditório, constitui um vício de procedimento que pode ou não reflectir-se na decisão que culmina o processo e não uma eventual violação do objecto do processo ou o incidente, definida ab initio pela pretensão da parte, esta sim passível de, por excesso ou omissão, viciar a decisão nos termos do citado art. 615º, nº 1, al. d);
- A nulidade do processo, por violação do princípio do contraditório, prevista no art. 195º, nº 1, do Código de Processo Civil, pode ser arguida em sede de recurso da decisão que pressupunha a audição em falta;
- Na fase inicial de execução de sentença para entrega de coisa certa, prevista no art. 626º, nº 3, do Código de Processo Civil, antes da notificação aí prevista, está suspenso o dever de ouvir a parte contrária, já que o procedimento prescinde da sua intervenção;
- Deste modo, não ocorre a referida nulidade procedimental, por violação do princípio do contraditório, em incidente tramitado nessa fase do processo em que a parte contrária não é admitida a intervir, ainda que tenha sido erroneamente citada para os autos.
2. Na fundamentação do acórdão refere-se o seguinte:
"Coisa diversa é a violação do princípio do contraditório expressa na regra geral do art. 3º, do Código de Processo Civil, e, em particular, no art, 201º do mesmo Código.
Dita esse art. 3º, além de mais, que (1) o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição. 2 - Só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida. 3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Por sua vez, o art. 201º estipula que a arguição de qualquer nulidade pode ser indeferida, mas não pode ser deferida sem prévia audiência da parte contrária, salvo caso de manifesta desnecessidade. [...]
No caso, é patente que a decisão em crise foi proferida sem a exigida audição da Recorrente. [...]
Posto isto, a questão é saber se, apesar da objectiva falta de consulta da outra parte, poderia aqui não ter ocorrido violação do direito ao contraditório por causa da especial tramitação do processo em apreço, como propugna a Recorrida.
Sem dúvida que, em regra, a violação desse princípio acarreta a nulidade do respectivo procedimento, como previsto no citado art. 195º, nº 1, na medida em que a mesma possa influir no exame ou na decisão da causa.
Com foi dito no Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães em que participámos, de 19.4.2018 [...], dada a relevância e primordial importância do contraditório, como analisamos, é indiscutível que a inobservância desse princípio, com prolação de decisão-surpresa, é susceptível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que esta padece de tal nulidade (constituindo a referida inobservância uma omissão grave e representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja susceptível de influir no exame ou na decisão da causa).
Contudo, no caso, como bem, salienta a Recorrida, apesar de o seu requerimento executivo inicial não traduzir essa sapiência, estamos perante a execução para entrega de uma coisa imóvel em que o título executivo é uma sentença e, de acordo com a previsão especial do art. 626º, nº 3, do Código de Processo Civil, feita a entrega, o executado é notificado para deduzir oposição, seguindo-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 860.º e seguintes.
Como refere J. Lebre de Freitas (In A Acção Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª Ed., p. 435, nota 17) em ressalva à regra geral do nº 1 desse art. 626º, “também o caso em que o título executivo seja uma sentença judicial: a execução nasce e pode processar-se nos autos da acção declarativa; tal como no processo sumário para pagamento de quantia certa, faz-se a apreensão prévia, a que se segue a entrega da coisa, e só depois se procede à citação do executado, seguindo-se os termos aplicáveis do processo sumário para pagamento de quantia certa; o despacho limiar só tem lugar quando agente de execução entenda, nos termos do art. 855º,-2-b, que deve suscitar a intervenção do juiz (…)”.
Em face disto, o procedimento executivo especial em curso, na altura em que foi suscitada e decidida a arguida nulidade na decisão apelada, não envolvia necessariamente o contraditório do executado/Recorrente, que só deveria intervir depois da entrega da coisa e após a notificação prevista no citado art. 626º, nº 3.
Estamos assim perante uma das excepções em que, à semelhança de outras acima citadas, o legislador permite que se tomem providências ou se decidam incidentes sem a audição da parte contrária.
Nesta medida, admitir a notificação e pronúncia da executada, apesar de indevidamente convocada para [a] lide antes do momento oportuno, seria prolongar ou agravar o erro procedimental que o Tribunal a quo procurou corrigir na decisão em crise, em violação do regime que o legislador impôs para estes casos.
Neste como noutras situações semelhantes em que a parte não é admitida a intervir na fase inicial da instância, está suspensa a obrigação de ouvir a outra parte para apreciar não só o objecto a lide mas também qualquer incidente que se suscite, sob pena de se deixar entrar pelo postigo aquilo que não se quer que entre pela porta.
Em suma, carece de sustento o vício processual invocado pela Recorrente nas suas conclusões, pelo que improcede a apelação."
*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se pode acompanhar a posição da RG.
Não está em causa que a executada foi citada antes do momento adequado e que foi praticada na execução uma nulidade processual (art. 195.º, n.º 1, CPC). O que não se pode aceitar é que, perante a arguição desta nulidade pela exequente, a executada, entretanto presente na acção, não tenha de ser ouvida sobre a nulidade cometida e que o tribunal possa apreciar essa nulidade sem garantir o contraditório da executada. Entender, pelo menos de modo implícito, que se verifica a "manifesta desnecessidade" referida na parte final do art. 201.º CPC não parece convincente.
A partir do momento em que a executada foi citada antes do tempo criou-se uma situação processual que, apesar de resultar de uma nulidade processual, não pode ser ignorada. Aliás, a seguir-se a orientação que fez vencimento na RG, cabe perguntar em que circunstância deve ser ouvida a parte contrária sempre que o tribunal cometa uma nulidade processual. Se, por exemplo, o tribunal aceitar uma réplica que não devia ter sido aceite e se o réu arguir a nulidade processual, também se poderia referir, nas palavras do acórdão, que "admitir a notificação e pronúncia [do réu] [...], seria prolongar ou agravar o erro procedimental que o Tribunal a quo procurou corrigir na decisão em crise, em violação do regime que o legislador impôs para estes casos".
MTS