"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/02/2021

Jurisprudência 2020 (140)


Responsabilidade civil médica;
petição inicial; ónus de substanciação*


1. O sumário de RL 14/7/2020 (18383/17.1 T8LSB-A.L1-6) é o seguinte:

I)– A qualificação da obrigação do médico como de meios ou de resultado não é pacífica, tendendo a doutrina e a jurisprudência a considerar que em determinadas especialidades médicas como a cirurgia estética, os exames laboratoriais ou a colocação de próteses, pode considerar-se que a obrigação é de resultado ou de quase resultado.

II)– Nas cirurgias estéticas de eleição a intervenção não se refere a uma condição de doença em ordem a envidar todos os esforços para a cura – típica obrigação de meios – antes se destina a obter um resultado previamente definido.

III)– Não é inepta a petição que demanda médicos e clínica médica alegando acordo quanto à realização de cirurgia para correcção de características físicas que não só não obtive os resultados visados como causou resultados adversos.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2.–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

2.1.- Relembremos a alegação.

A Autora demanda a Clínica a que se dirigiu para efectuar intervenções de cirurgia estética e os médicos que as realizaram.

Refere que se dirigiu à Clínica Ré por apresentar excesso de pele e de gordura no abdómen e para reposicionar os músculos da parede abdominal, tendo aí sido observada pelo segundo Réu que lhe propôs uma determinada intervenção, que fez, da qual resultaram fibroses no abdómen cuja eliminação o Réu sucessivamente falhou em intervenções posteriores.

Numa delas, o Réu efectuou à Autora ainda um peeling facial que lhe causou marcas profundas no rosto que ainda se encontram em tratamento.

Face a reclamação da Autora, a terceira Ré sugeriu-lhe uma nova cirurgia a realizar pela sua Directora Técnica, ora primeira Ré, o que a Autora aceitou, sendo ainda decidido fazer uma mamoplastia de aumento.

Embora a maioria dos problemas das fibroses fosse corrigido, a mamoplastia teve um resultado indesejável já que a Autora ficou com uma depressão acentuada por baixo do mamilo esquerdo, com cicatrizes visíveis e com os seios totalmente desproporcionais, porque um tem quase o dobro da dimensão do outro, estando ainda desalinhados porque a orientação dos mamilos em cada seio é diferente.

A Autora tem-se sentido profundamente insatisfeita, deprimida e com a auto-estima abalada, encontrando-se a mesma a ser acompanhada em consultas de psicologia, por apresentar sintomas de doença depressiva.

Para a última cirurgia à qual foi submetida, realizada pela primeira Ré, a Autora efectuou o pagamento à terceira Ré da quantia de € 4.450,00.

Este o resumo da alegação.

2.2.–A decisão recorrida considerou que se não encontram alegados factos suceptíveis de integrarem a ilicitude da conduta dos Réus, uma vez que necessário seria que a Autora tivesse alegado quais os actos que estes praticaram em violação das legis artis, quanto aos médicos, ou em violação do programa contratual, quanto à Clínica.

Lê-se na decisão:

Nos termos do disposto no artigo 483.° e ss. do Código Civil, apresentam-se como requisitos do direito a indemnização, o facto resultante de uma qualquer forma de conduta humana, a ilicitude desse facto, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e os danos sofridos.

A responsabilidade civil extra contratual é, por regra, uma responsabilidade subjetiva ou por culpa, apenas existindo responsabilidade civil extra contratual objetiva ou pelo risco nos casos expressamente previstos pelo legislador.

Esta perspetiva é imposta não apenas pelo princípio da culpa, mas também pela garantia constitucional de tutela da liberdade individual, na medida em que se, no tráfego entre sujeitos jurídicos indeterminados, fossem muito frequentes as previsões normativas de responsabilidade objetiva, a liberdade individual dos cidadãos seria fortemente limitada - quer na sua componente de liberdade de circulação, quer na sua componente de liberdade de exercício de atividades, nomeadamente atividades económicas.

No âmbito da responsabilidade contratual, nos termos do disposto no artigo 798.° e 799.° do Código Civil, o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao devedor, sendo que a culpa se presume.

***

No caso, independentemente da qualificação da responsabilidade decorrente do contrato de prestação de serviços médicos em causa, cumpre referir o seguinte:

A autora não alega qualquer facto ilícito praticado pelos réus que fosse causa adequada das alegadas fibroses, relativamente à intervenção cirúrgica e tratamentos de 2013, e intervenção cirúrgica de 2015.

A autora não alega qualquer facto ilícito praticado pelos réus que fosse causa adequada das alegadas marcas profundas no rosto, que não cicatrizaram, alegadamente resultado da intervenção cirúrgica de 24.2.2015.

A autora alega que a cirurgia de 14.12.2015 resolveu a maior parte das fibroses no abdómen, mas que o resultado da mamoplastia de aumento não foi satisfatório, constatando-se uma depressão acentuada por baixo do mamilo esquerdo e sendo visíveis as cicatrizes, ficando os peitos desproporcionais e desalinhados.

Todavia, a Autora não alega qual o facto ilícito que terá sido praticado mesmos médicos:

"A prova da ilicitude da atuação da 1.a ré são as fotografias que se juntaram sob doc. 2, ficando demonstrado que o resultado obtido com a mamoplastia de aumento não é de todo, satisfatório", cf. artigo 41 da petição inicial e fls. 9.

"No que respeita à atuação do 2.° réu, verifica-se que a prova da ilicitude da sua atuação são igualmente as fotografias juntas como doc. 1, ficando demonstrado que o resultado das intervenções cirúrgicas realizadas pelo mesmo não é satisfatório.", cf. fotografias de fls. 8V.
 
Não se encontra pois preenchido um dos pressupostos da responsabilidade civil, sendo que a presunção de culpa, a aplicar-se a responsabilidade contratual, pressupõe a existência de um facto ilícito.

2.3.–A distinção tradicional entre responsabilidade contratual e extra-contratual não oculta a matriz comum da responsabilidade civil, a similitude dos respectivos pressupostos e as numerosas normas de aplicação comum [...].

Como foi delimitada, a responsabilidade civil nasce da prática de um acto ilícito, que consiste, como veremos adiante, na violação de um dever.

Este dever pode ser uma obrigação em sentido técnico ou outro dever: no primeiro caso, a responsabilidade diz-se obrigacional e no segundo extra-obrigacional, delitual ou aquiliana[...].

Em comum, a exigência de que a responsabilidade se funde num acto ilícito. Por isso, sendo deduzida uma pretensão de indemnização com fundamento em responsabilidade civil de terceiro, a petição deve, sob pena de estar ferida de ineptidão, indicar os factos de que essa ilicitude resulta, na perspectiva da Autora.

No caso dos autos a Autora alega que se dirigiu à Ré Clínica para corrigir excesso no abdómen, para um peeling facial e para uma mamoplastia de aumento, tendo sido praticados os actos médicos por profissionais indicados pela terceira Ré, um deles a sua Directora Técnica, actos médicos que pagou à Ré Clínica.

Dos actos médicos resultaram fibroses no abdómen e cicatrizes no rosto (actos praticados pelo segundo Réu) e desalinhamento e assimetria dos seios e mamilos (acto praticado pela primeira Ré).

Nos termos da alegação da Autora, os actos médicos a que acordou submeter-se destinavam-se à obtenção de determinados resultados que não só não foram atingidos como foram atingidos resultados adversos (fibroses, cicatrizes, assimetria).

2.4.–A alegação da Autora permite configurar a relação que indica ter estabelecido com os Réus como de prestação de serviços (artigo 1154.º, do Código Civil), limitando-se aos actos acordados com cada um dos Réus médicos o objecto nessa parte.

Nos termos desses acordos, a Ré Clínica estava obrigada a prestar os serviços solicitados, que aceitou prestar por meio dos Réus médicos, sendo eles a redução abdominal, o peeling facial e a mamoplastia de aumento. O objecto dos contratos era, assim, a prática de actos médicos, directa ou indirectamente.

A qualificação da obrigação do médico como de meios ou de resultado não é pacífica, tendendo a doutrina e a jurisprudência a considerar que em determinadas especialidades médicas como a cirurgia estética, os exames laboratoriais ou a colocação de próteses, pode considerar-se que a obrigação é de resultado ou de quase resultado.

Veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Dezembro de 2009, proferido no processo 544/09.9YFLSB (Pires da Rosa):

Mais do que o (in)cumprimento da obrigação há que perguntar, antes ainda, qual é a concreta obrigação do médico e também se o incumprimento, a ter-se por verificado, se deve ou não a culpa do devedor-médico.

O que se pode dizer com segurança, in casu, é que a obrigação ou não foi cumprida ou foi cumprida defeituosamente.

 Porque não estamos, na situação concreta em que nos movimentamos, perante alguém que estando doente anseia ser curado ( sendo que, não se sujeitando à intervenção do médico, continuará doente ). O que estamos é perante alguém, uma mulher, que – não se encontrando perante qualquer doença em movimento, a que pretenda por termo ou atenuar – anseia (…) que satisfaçam mais a preceito a sua exigência estética.

Se esta pode não ser uma obrigação de resultado, com o médico a comprometer-se em absoluto com a melhoria estética desejada ( e acordada entre ambos ), é seguramente uma obrigação de quase resultado porque é obrigação em que só o resultado vale a pena. Só o resultado vale a pena, quer para a autora quer para o réu.

Noutro tipo de intervenções a alternativa será, para o paciente, entre o risco assumido de uma intervenção eventualmente não conseguida, e/ou a degradação de um estado de doença a que se pretende pôr termo ou atenuar, e em relação ao qual a inércia parece ser o pior dos males; aqui não há dois polos de uma mesma alternativa, porque ou se concretiza o resultado ou não valia a pena correr o risco de pôr em risco o que era um estado de ... saúde.

Portanto aqui, em intervenções médico-cirúrgicas deste tipo, em cirurgia estética, a ausência de resultado ou um resultado inteiramente desajustado são a evidência de um incumprimento ou de um cumprimento defeituoso da prestação por parte do médico-devedor.

A denominação da obrigação como de quase-resultado alerta para a álea que os procedimentos médicos sempre incluem, sublinhando, simultaneamente, a diferença em casos como as cirurgias estéticas de eleição: a intervenção não se destina a intervir sobre uma condição de doença em ordem a envidar todos os esforços para a cura – típica obrigação de meios – antes se destina a obter um resultado previamente definido.

Na decisão recorrida entende-se que os factos necessários para a integração da ilicitude, são aqueles de que resultaria a violação das legis artis por parte dos médicos que executaram os procedimentos.

Não é assim, porque a Ré Clínica não acordou com a Autora o tratamento de uma afecção (ou seja, a prática dos actos de tratamento e não o resultado cura) mas a correcção de características físicas (ou seja, a eliminação ou modificação delas).

2.5.–Ao alegar ter indicado os resultados pretendidos no acordo que informalmente celebrou com a terceira Ré, que lhe indicou os médicos que deviam executar os procedimentos, como fizeram, sem que o resultado pretendido fosse alcançado, sendo antes provocados danos na saúde da Autora, a Autora alega os factos necessários à imputação à terceira Ré de incumprimento contratual integrante da ilicitude – artigos 762.º e 798.º ambos do Código Civil.

Mais, alega os factos necessários a responsabilizar a Ré Clínica pelos actos praticados pelos médicos que indicou à Autora, pessoas que utilizou para o cumprimento da obrigação, nas palavras do artigo 800.º, n.º 1, do Código Civil. 

Não se verifica por isso ineptidão da petição inicial quanto à demanda da Ré Clínica. Diga-se, ainda, que vista a contestação por esta trazida aos autos, é patente que não só compreendeu a petição como lhe respondeu passo por passo.

Consideramos, em consequência, que os factos alegados, se provados, bastam à integração da ilicitude fonte da responsabilidade contratual da Ré Clínica.

2.6.–No que respeita aos Réus médicos, a Autora alega que os procedimentos que executaram não conseguiram os fins visados e, para além disso, lhe provocaram lesões corporais.

Mais. Para além de alegar que lhes comunicou as finalidades que pretendia obter com as intervenções, a Autora alega que recebeu deles conselhos quanto aos procedimentos adequados à obtenção dessas finalidades, procedimentos que os Réus executaram.
Vale quanto aos Réus médicos o que se referiu quanto à responsabilidade da Ré Clínica com a exclusão do disposto no artigo 800.º, n.º 1, do Código Civil.

Mas a Autora alega mais. Alega que na execução dos procedimentos médicos que lhe aconselharam, os Réus não só não obtiveram os resultados visados como causaram resultados adversos que constituem lesões corporais.

Estas lesões corporais constituem a violação do direito da Autora à saúde e, por essa via, tem de considerar-se ilícita a conduta que as determina, a provar-se.
Tais factos integram incumprimento contratual tanto na vertente da não prossecução do fim visado como na da imputação de menor diligência que resulta de a situação de saúde da Autora ter piorado em virtude da intervenção dos médicos, de acordo com a sua alegação.

2.7.–A Recorrente entende que não se verifica ineptidão da petição inicial e que deficiências de alegação devem determinar a prolação de despacho de aperfeiçoamento da inicial, por isso que entende dever ser revogada a decisão e determinada a prolação de despacho de aperfeiçoamento.

Concluindo, como concluímos, que a alegação é bastante, a consequência é a mera revogação da decisão, julgando-se improcedente a excepção de ineptidão deduzida, devendo os autos prosseguir onde terminaram."

*3. [Comentário] a) A RL decidiu bem.

b) O caso e o acórdão podem ser vistos como um exemplo paradigmático de uma realidade para a qual a jurisprudência -- e mesmo a doutrina -- está ainda pouco sensibilizada. Trata-se da medida de substanciação que é exigida tanto ao autor na petição inicial, como ao réu na contestação.

O critério geral é o seguinte: a medida de substanciação das alegações das partes deve orientar-se pelo que cada uma das partes tem a obrigação de conhecer.

Deste critério resultam duas consequências:

-- Ao autor, na petição inicial, não é exigível que alegue o que não tem a obrigação de conhecer;

-- Ao réu, na contestação, é exigível que alegue o que tem a obrigação de conhecer e o que o autor não tem a obrigação de conhecer (como, aliás, se pode retirar do disposto no art. 574.º, n.º 3, CPC quanto às declarações evasivas).

Daí que, tipicamente num caso de (alegada) responsabilidade civil médica e, genericamente, nos casos de assimetria de informações das partes, se deva entender o seguinte:

-- O autor tem o ónus de alegar factos que demonstrem a responsabilidade do demandado, não lhe sendo exigível que alegue quais as leges artis que não foram respeitadas, porque não é suposto que o autor as deva conhecer; no fundo, o que cabe ao autor alegar são factos dos quais possa resultar uma demonstração prima facie do acto ilícito praticado pelo demandado;

-- Ao demandado não basta uma impugnação não fundamentada das alegações do autor; ao réu incumbe uma impugnação substanciada da petição inicial do autor, mostrando que as leges artis foram respeitadas e que o resultado indesejado não decorreu da sua violação.

Enfim, duas regras simples, mas ditadas pela igualdade substancial das partes que consta do art. 4.º CPC e da maior importância para a boa administração da justiça.

MTS