"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/02/2021

Jurisprudência 2020 (141)


Embargos de terceiro;
proprietário de raiz; direito não registado*


1. O sumário de RL 13/7/2020 (5276/15.6T8SNT-B.L1-4) é o seguinte:

I– O proprietário de raiz de um bem imóvel pode embargar de terceiro em execução movida contra o usufrutuário desse imóvel se o mesmo foi penhorado em tal execução como se pertencesse, em propriedade plena, ao executado.

II– A tanto não obsta o facto de a propriedade do mesmo imóvel se mostrar ainda inscrita no registo predial a favor do transmitente daquele bem ao proprietário de raiz.

III– O registo predial, no nosso ordenamento jurídico, tem eficácia estritamente declarativa.

IV– O direito de usufruto pode ser penhorado e vendido no âmbito de execução movida contra o usufrutuário.

V– Quando há direitos reais de gozo sobrepostos, a penhora de um ou de outro processa-se em moldes diferentes, em conformidade com a diversidade da natureza dos correspondentes direitos.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4.1. Não sofre neste momento contestação que os embargos de terceiro não se destinam apenas à defesa da posse lesada pela diligência judicial mas, também, à defesa de “qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência” (cfr. o artigo 342.º, n.º1 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que seguiu a opção legislativa da reforma de 1995, alargando o âmbito dos embargos de terceiro face ao que estabelecia o art.1037.º, n.º 1 do Código de Processo Civil até então em vigor). [...]

Cabe pois aferir se os embargantes são titulares de um direito incompatível com a realização da penhora, no processo de execução, da fracção autónoma designada pela letra (…), do prédio urbano sito na freguesia de (…), descrito na CRP de Lisboa sob o nº (…), e inscrito na matriz sob artigo (…), caso em que a mesma não poderá manter-se.

Conforme resulta dos factos dados como provados a fracção penhorada nos autos de execução encontra-se registada em nome da sociedade Imovene, Lda., à qual não pertence, uma vez que a referida sociedade, por escritura pública outorgada no dia 06 de Dezembro de 1994, transmitiu à executada o usufruto da fracção e aos embargantes a nua propriedade da mesma, pelo preço de um milhão e oitocentos mil escudos (factos 3.2. a 3.4.).

O registo desta transmissão verificada em 1994 não foi então realizado, mas esta situação – que se mantinha quando foi efectuada a penhora do bem imóvel, já no ano de 2018 – não impede a afirmação da aquisição do direito de propriedade de raiz a favor dos embargantes ora recorridos na medida em que o registo predial, no nosso ordenamento jurídico, não tem natureza constitutiva mas eficácia estritamente declarativa. Os direitos a registar constituem-se fora do registo e este limita-se a dar-lhes publicidade [Maria Clara Sottomayor, in Invalidade e Registo, a Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé, Almedina, Coimbra, 2010, p. 720].

Na verdade, nos termos do preceituado no artigo 1.º do Código do Registo Predial, o registo “destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”. E, de acordo com o artigo 7º do mesmo Código do Registo Predial, que estabelece a presunção do registo, o registo “constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

Esta constitui uma presunção legal “iuris tantum” ilidível por prova em contrário nos termos do artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil. Ou seja, a inscrição não garante a efectiva existência do direito inscrito a favor de quem figura como seu titular, apenas criando a presunção de que, a ter existido efectivamente alguma vez o direito, ele ainda pertence a quem figura no registo como seu titular e não foi transmitido por este a um terceiro. Na lapidar expressão de Vaz Serra, “o registo predial não serve para sanar a falta ou os vícios do direito do transmitente: conserva, não cria direitos" [In Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 97º, 1964-1965, n.º 3265, p. 57, em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Julho de 1963. Vide também Manuel A. Domingues de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Facto Jurídico em especial Negócio Jurídico, Reimpressão, Coimbra, 1992, p. 20].

De acordo com o artigo 408.º, n.º 1 do Código Civil, a transmissão da propriedade sobre determinado bem dá-se por mero efeito do contrato, pelo que a transmissão da nua propriedade do bem penhorado a favor dos embargantes se deu por efeito do contrato de compra e venda, celebrado por escritura pública de 6 de Dezembro de 1994 entre a anterior proprietária inscrita no registo e os embargantes ora recorridos – cfr. os artigos 875.º e 879.º, alínea a) do Código Civil.

Pelo que a penhora do prédio verificada 24 de Abril de 2018 em processo executivo onde não são parte é incompatível com o direito que através daquela escritura adquiriram e ilegal (cfr. o artigo 735.º, n.º 2 do Código de Processo Civil).

A recorrente invoca ainda neste âmbito que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo nos termos do nº 1 do artigo 5.º do Código do Registo Predial e que ela própria e os embargantes são terceiros para efeito do registo predial, aí radicando a afirmação de que, no caso presente, prevalece a penhora registada a seu favor.

Não cremos que num caso com os contornos do vertente tenha qualquer pertinência a invocação deste argumento. Nem a exequente – que obteve o registo da penhora efectuada em 2018 em execução instaurada contra a embargada que não figura no registo – nem os embargantes – que em 1994 adquiriram a propriedade de raiz de tal fracção ao titular registado – podem considerar-se terceiros para efeitos de registo, atenta a definição actualmente constante do n.º 4 do artigo 5.º do CRP, pois que nenhum deles adquiriu “de um autor comum direitos incompatíveis entre si” sobre o mesmo objecto.

Acresce que a proprietária primitivamente inscrita – que, não se esqueça, não era a executada – foi notificada nos termos do artigo 119.º, n.º 1, do CRP e deu notícia nos autos, após a penhora, de que tal bem não lhe pertencia apesar da inscrição registral, o que é suficiente para desencadear o mecanismo previsto no n.º 3 do mesmos preceito, segundo o qual “[s]e o citado declarar que os bens lhe não pertencem ou não fizer nenhuma declaração, o tribunal ou o agente de execução comunica o facto ao serviço de registo para conversão oficiosa do registo”.

Em suma, da escritura pública de compra e venda documentada nos autos resulta a aquisição pelos embargantes (em compropriedade) da nua propriedade da fracção, direito este que naturalmente é incompatível com a realização e o âmbito da diligência da penhora da mesma fracção em execução que não foi instaurada contra si, pelo que se mostra preenchida a fattispecie do nº 1 do artigo 342º do CPC, segundo o qual “[s]e a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.

Não pode, assim, manter-se a penhora da fracção autónoma do bem imóvel de que são proprietários de raiz os embargantes.

*3. [Comentário] a) A RL decidiu bem a procedência dos embargos de terceiro. Se, de iure condendo, a solução (que, como se refere no acórdão, decorre do disposto no muito discutível art. 5.º, n.º 4, CRegP) é a mais adequada ao caso, isso é outra questão.

b) Onde, salvo o devido respeito, não se pode acompanhar a RL é na consequência da procedência dos embargos. Tendo os embargos sido deduzidos com base na propriedade de raiz, não se percebe como é que não se pode manter a penhora do usufruto de que o executado é usufrutuário. 

A oposição do terceiro não é a toda a penhora, mas apenas à parcela que atinge a sua propriedade de raiz. O que não é abrangido pelos embargos nunca esteve em discussão e, por isso, não pode ser afectado pela decisão nele proferida. Aliás, bem se pode dizer que, nesta parte, o acórdão se pronunciou ultra petitum, dado que o embargante queria defender a sua propriedade de raiz e o tribunal considerou que nem a propriedade de raiz, nem o usufruto podiam ser penhorados.

Em todo o caso, a consequência é apenas a de se ter de realizar ex novo a penhora do usufruto do executado.

MTS