Reconhecimento da dívida;
título executivo; obrigação subjacente*
I- Beneficiando o credor dum reconhecimento de dívida, tem a seu favor a inversão do ónus da prova da causa de pedir, mas não fica dispensado de a indicar, caso o título a não contenha, nos termos gerais do art. 724, nº 1, e) do CPC.
II- Não sendo indicada no requerimento executivo a causa ou fundamento da obrigação exequenda, ocorre ineptidão do requerimento executivo quando a mesma não constar do título (cfr. o art. 724º, nº 1, e) do CPC).
III- A nulidade de todo o processo por ineptidão do requerimento executivo constitui excepção dilatória não suprível (salvo na hipótese legalmente no nº 3 do art. 186º, nº 3 do CPC e bem assim na hipótese, de cariz jurisprudencial, a que se referem aos artigos 264º e 265º do CPC).
IV- A ineptidão do requerimento executivo por falta de indicação da causa de pedir, por constituir vício enquadrável na alínea b) do nº 2 do art. 726º do CPC, não é susceptível de convite ao aperfeiçoamento (art. 726º, nº 4 do CPC) - a eventual correcção ou aperfeiçoamento não é modo legalmente admissível de sanação do vício.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"A. Da falta de causa de pedir do requerimento executivo
Pela acção executiva pretende o credor obter a realização coactiva de prestação não cumprida.
A finalidade da acção executiva consiste na satisfação do interesse patrimonial contido na prestação não cumprida (art. 10º, nº 4 do CPC), sendo o seu objecto, sempre (e apenas) um direito a uma prestação – nesse objecto contém-se somente a faculdade de exigir o cumprimento da prestação e o correlativo poder de aquisição dessa prestação, poder que corresponde à causa debendi e, portanto, funciona como causa de pedir da acção executiva (os factos dos quais decorre esse poder são os mesmos que justificam a faculdade de exigir a prestação) (...).
A faculdade de exigir a prestação, correlativa do poder de aquisição dessa prestação, designa-se por pretensão e apenas uma pretensão exequível pode constituir objecto de uma acção executiva – exequibilidade intrínseca, respeitante à inexistência de vícios materiais ou excepções peremptórias que impeçam a realização coactiva da prestação, e exequibilidade extrínseca, traduzida na incorporação da pretensão num título executivo, ou seja, num documento que formaliza, por disposição da lei, a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida (art. 10º, nº 5º do CPC) (...).
A acção executiva pressupõe, assim, um direito de execução do património do devedor, ou seja, ‘um poder resultante da incorporação da pretensão num título executivo, pois que é desta que resulta que o credor possui não só a faculdade de exigir a prestação, mas também a de executar, em caso de incumprimento, o património do devedor’ (...). Dito de outra forma: a acção executiva pressupõe, logicamente, a prévia solução da dúvida sobre a existência e a configuração do direito exequendo, constituindo a declaração ou acertamento (dum direito ou de outra situação jurídica; dum facto), que é o ponto de chegada da acção declarativa, o ponto de partida na acção executiva (...) – a realização coactiva da prestação pressupõe a anterior definição dos elementos (subjectivos e objectivos) da relação jurídica de que ela é objecto, contendo o título executivo esse acertamento, radicando aí a afirmação de que ele constitui a base da execução, por ele se determinando o fim e os limites da acção executiva, isto é, o tipo de acção e o seu objecto (...).
Do título executivo – que determina o fim e os limites da execução, sendo a base desta (art. 10º, nº 5 do CPC) – resulta a exequibilidade da pretensão executanda, pois incorpora o direito de execução, isto é, o direito do credor a executar o património do devedor ou de terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito (...).
O título executivo tem uma função de representação (representação dum facto jurídico) – os factos jurídicos representados pelo título executivo são os ‘factos principais integrantes da causa de pedir em que se funda o pedido de execução: os factos de aquisição do direito ou poder a uma prestação’ (Rui Pinto, A Acção Executiva, 2020, Reimpressão, p. 136).
Pode, por isso, definir-se o título executivo como ‘o documento pelo qual o requerente de realização coativa da prestação demonstra a aquisição de um direito ou poder a uma prestação, segundo requisitos legalmente prescritos’ (Rui Pinto, A Acção Executiva (…), p. 136).
O cumprimento da função de certificação da aquisição do direito ou poder à prestação que é atribuído ao título executivo não visa o cumprimento de ónus probatório, como na acção declarativa (apesar do seu valor potencial para tanto, por se tratar de documento) – na acção executiva, a apresentação do título não cumpre ónus de prova algum, pois não está em causa produzir um título judicial, estando-se num momento posterior no ciclo de tutela dos direitos, ou seja, no momento de uso de um título para a realização coactiva do direito já declarado nele (Rui Pinto, A Acção Executiva (…),p. 137).
Representa a causa de pedir, mas não é o título a causa de pedir (existe autonomia entre o título e a obrigação, não sendo o documento que corporiza o titulo a causa de pedir) (...) – demonstrada a causa de pedir nos termos formalmente exigidos, pode ser deduzido o pedido de realização coactiva da prestação, ainda que esta função do título (função de representação da causa de pedir) seja ‘tratada de modo flexível pela lei, de modo a acomodar diferentes cenários de suficiência do teor do título executivo’, devendo a causa ou fundamento da obrigação exequenda, quando não constar do título, ser alegada no requerimento executivo (cfr. o art. 724º, nº 1, e) do CPC), sob pena de ineptidão do requerimento executivo (...) (pois que ocorrerá, em tais situações, falta de causa de pedir, geradora de ineptidão do requerimento executivo e, por isso, de nulidade de todo o processo, pressuposto processual de oficioso conhecimento).
Quando o título executivo não contém alusão à causa de pedir (apenas a pressupondo), como pode acontecer no caso do reconhecimento de dívida do art. 458º, nº 1 do CC, o credor não fica dispensado de a invocar e alegar no requerimento executivo. Ficando o credor, no reconhecimento de dívida (um ‘título recognitivo privado por excelência’), ‘dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário’ (como decorre do preceito), certo é, no entanto, que ‘a obrigação exequenda respectiva não deixa de ter uma causa, material e processualmente relevante’ – não se está, em rigor, perante um negócio abstracto, antes perante uma inversão do ónus de prova, cabendo ao devedor alegar e provar (na oposição à execução) a falta de causa da relação fundamental, v. g., a inexistência, a nulidade ou a anulabilidade do negócio donde procede a dívida ou a que a prestação se reporta, bem como a própria excepção de contrato não cumprido, ou o direito de resolução (Rui Pinto, A Acção Executiva (…), pp. 138 e 139). Cabendo ao devedor o ónus da prova da inexistência ou da invalidade da relação jurídica subjacente e ‘competindo à causa de pedir, na acção executiva, a individualização da obrigação, não se mostrando esta alegada, «impossível» se torna ao devedor cumprir tal ónus adequadamente’ (...). A inversão do ónus de prova não dispensa o ónus de alegação e por isso que ao credor se exige, mesmo quando tenha em seu poder documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la, que alegue ‘o facto constitutivo do direito de crédito – o que é confirmado pela exigência de forma do art. 458º, nº 2 do CC, que pressupõe o conhecimento da relação fundamental – e daí que a prova da inexistência de relação causal válida, a cargo do devedor/demandado se tenha de fazer apenas relativamente à causa que tiver sido invocada pelo credor, e não a qualquer possível causa constitutiva do direito unilateralmente reconhecido pelo devedor’ (José Lebre de Freitas, A Confissão do Direito Probatório, p. 390).
Assim que beneficiando o credor dum reconhecimento de dívida, tem a seu favor a inversão do ónus da prova da causa de pedir, mas não fica dispensado de a indicar, caso o título a não contenha, nos termos gerais do art. 724, nº 1, e) do CPC (...) - esse o entendimento prevalecente (...) à luz do art. 46º, nº 1 c) do CPC (desde a redacção emergente do DL 329-A/95, de 12/12), que dotava de força executiva os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importassem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, desde que i) o negócio subjacente não tivesse natureza formal e ii) fosse invocada no requerimento executivo a relação subjacente (Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 1999, p. 69), sendo que o documento dado à execução só constitui título executivo porque elaborado na vigência deste preceito (e essa data deve ser atendida para aferição dos requisitos de exequibilidade do título, em atenção à tutela do princípio constitucional da protecção da confiança, ínsito ao Estado de direito democrático - art. 2º da CRP (...)).
Não sendo indicada no requerimento executivo a causa ou fundamento da obrigação exequenda, quando a mesma não constar do título (cfr. o art. 724º, nº 1, e) do CPC), verifica-se, pois, ineptidão do requerimento executivo.
Ineptidão que se verifica na situação trazida em apelação, pois que no documento que serve de título executivo (reconhecimento de dívida – art. 458º do CC) não é indicada a relação fundamental (a causa ou fundamento da obrigação) nem a mesma é alegada no requerimento executivo."
*3. [Comentário] Não se desconhece que o acórdão reflecte a orientação maioritária na jurisprudência e na doutrina. Em todo o caso, considera-se que a alegação presumida da dívida equivale à alegação da própria dívida.
*3. [Comentário] Não se desconhece que o acórdão reflecte a orientação maioritária na jurisprudência e na doutrina. Em todo o caso, considera-se que a alegação presumida da dívida equivale à alegação da própria dívida.
Pode dar-se um exemplo paralelo: a alegação da presunção de paternidade equivale à própria alegação do acto de procriação. Supõe-se que ninguém dirá que, se for invocada uma presunção de paternidade, a eventual falta da alegação do acto de procriação torna a petição inicial inepta.
MTS