"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/02/2021

Jurisprudência 2020 (155)


Reconhecimento de dívida;
título executivo; obrigação subjacente*


1. O sumário de RG 9/7/2020 (5620/18.4T8VNF.G1) é o seguinte:

I- Beneficiando o credor dum reconhecimento de dívida, tem a seu favor a inversão do ónus da prova da causa de pedir, mas não fica dispensado de a indicar, caso o título a não contenha, nos termos gerais do art. 724, nº 1, e) do CPC.

II- Não sendo indicada no requerimento executivo a causa ou fundamento da obrigação exequenda, ocorre ineptidão do requerimento executivo quando a mesma não constar do título (cfr. o art. 724º, nº 1, e) do CPC).

III- A nulidade de todo o processo por ineptidão do requerimento executivo constitui excepção dilatória não suprível (salvo na hipótese legalmente no nº 3 do art. 186º, nº 3 do CPC e bem assim na hipótese, de cariz jurisprudencial, a que se referem aos artigos 264º e 265º do CPC).

IV- A ineptidão do requerimento executivo por falta de indicação da causa de pedir, por constituir vício enquadrável na alínea b) do nº 2 do art. 726º do CPC, não é susceptível de convite ao aperfeiçoamento (art. 726º, nº 4 do CPC) - a eventual correcção ou aperfeiçoamento não é modo legalmente admissível de sanação do vício.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Representa a causa de pedir, mas não é o título a causa de pedir (existe autonomia entre o título e a obrigação, não sendo o documento que corporiza o titulo a causa de pedir) (...) – demonstrada a causa de pedir nos termos formalmente exigidos, pode ser deduzido o pedido de realização coactiva da prestação, ainda que esta função do título (função de representação da causa de pedir) seja ‘tratada de modo flexível pela lei, de modo a acomodar diferentes cenários de suficiência do teor do título executivo’, devendo a causa ou fundamento da obrigação exequenda, quando não constar do título, ser alegada no requerimento executivo (cfr. o art. 724º, nº 1, e) do CPC), sob pena de ineptidão do requerimento executivo (...) (pois que ocorrerá, em tais situações, falta de causa de pedir, geradora de ineptidão do requerimento executivo e, por isso, de nulidade de todo o processo, pressuposto processual de oficioso conhecimento).

Quando o título executivo não contém alusão à causa de pedir (apenas a pressupondo), como pode acontecer no caso do reconhecimento de dívida do art. 458º, nº 1 do CC, o credor não fica dispensado de a invocar e alegar no requerimento executivo. Ficando o credor, no reconhecimento de dívida (um ‘título recognitivo privado por excelência’), ‘dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário’ (como decorre do preceito), certo é, no entanto, que ‘a obrigação exequenda respectiva não deixa de ter uma causa, material e processualmente relevante’ – não se está, em rigor, perante um negócio abstracto, antes perante uma inversão do ónus de prova, cabendo ao devedor alegar e provar (na oposição à execução) a falta de causa da relação fundamental, v. g., a inexistência, a nulidade ou a anulabilidade do negócio donde procede a dívida ou a que a prestação se reporta, bem como a própria excepção de contrato não cumprido, ou o direito de resolução (...). Cabendo ao devedor o ónus da prova da inexistência ou da invalidade da relação jurídica subjacente e ‘competindo à causa de pedir, na acção executiva, a individualização da obrigação, não se mostrando esta alegada, «impossível» se torna ao devedor cumprir tal ónus adequadamente’ (...). A inversão do ónus de prova não dispensa o ónus de alegação e por isso que ao credor se exige, mesmo quando tenha em seu poder documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la, que alegue ‘o facto constitutivo do direito de crédito – o que é confirmado pela exigência de forma do art. 458º, nº 2 do CC, que pressupõe o conhecimento da relação fundamental – e daí que a prova da inexistência de relação causal válida, a cargo do devedor/demandado se tenha de fazer apenas relativamente à causa que tiver sido invocada pelo credor, e não a qualquer possível causa constitutiva do direito unilateralmente reconhecido pelo devedor’ (...).

Assim que beneficiando o credor dum reconhecimento de dívida, tem a seu favor a inversão do ónus da prova da causa de pedir, mas não fica dispensado de a indicar, caso o título a não contenha, nos termos gerais do art. 724, nº 1, e) do CPC (...) - esse o entendimento prevalecente (...) à luz do art. 46º, nº 1 c) do CPC (desde a redacção emergente do DL 329-A/95, de 12/12), que dotava de força executiva os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importassem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, desde que i) o negócio subjacente não tivesse natureza formal e ii) fosse invocada no requerimento executivo a relação subjacente (...), sendo que o documento dado à execução só constitui título executivo porque elaborado na vigência deste preceito (e essa data deve ser atendida para aferição dos requisitos de exequibilidade do título, em atenção à tutela do princípio constitucional da protecção da confiança, ínsito ao Estado de direito democrático - art. 2º da CRP (...)).

Não sendo indicada no requerimento executivo a causa ou fundamento da obrigação exequenda, quando a mesma não constar do título (cfr. o art. 724º, nº 1, e) do CPC), verifica-se, pois, ineptidão do requerimento executivo.

Ineptidão que se verifica na situação trazida em apelação, pois que no documento que serve de título executivo (reconhecimento de dívida – art. 458º do CC) não é indicada a relação fundamental (a causa ou fundamento da obrigação) nem a mesma é alegada no requerimento executivo."

*Nota: Por lapso, repetiu-se a publicação do acórdão já divulgado em Jurisprudência 2020 (144).

MTS