"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/02/2021

Jurisprudência 2020 (149)


Matéria de facto; impugnação;
apelação; ónus do recorrente*


1. O sumário de STJ 4/6/2020 (1519/18.2T8FAR.E1.S1) é o seguinte:

I. Em sede de revista interposta de acórdão da Relação confirmativo da decisão da 1.ª instância, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, quando seja invocada a violação de disposições processuais no exercício dos poderes de reapreciação da decisão de facto pela Relação, este fundamento não concorre para a formação da dupla conforme prevista no n.º 3 do art.º 671.º do CPC;

II. Tal não obsta, no entanto, a que tal questão possa vir a ser novamente apreciada, na eventualidade de ser negada a revista no respeitante à invocada violação de disposições processuais, relativamente à decisão de direito;

III. O art.º 640º do CPC estabelece que o recorrente no caso de impugnar a decisão sobre a matéria de facto deve proceder à especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, dos concretos meios probatórios que imponham decisão diversa e da decisão que deve ser proferida, sem contudo fazer qualquer referência ao modo e ao local de proceder a essa especificação;

IV. Nesse conspecto tem-se gerado o consenso de que as conclusões devem conter uma clara referência à impugnação da decisão da matéria de facto em termos que permitam uma clara delimitação dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, e que as demais especificações exigidas pelo art.º 640º do CPC devem constar do corpo das alegações;

V. Vem-se, também, defendendo que a apreciação das exigências estabelecidas no art.º 640º do CPC se efectue segundo um critério de rigor que vise impedir que a impugnação da decisão da matéria de facto se banalize numa mera manifestação de inconsequente inconformismo sem, porém, se transmutar num excesso de formalismo que redunde na denegação da reapreciação da decisão da matéria de facto;

VI. A apreciação da satisfação das exigências estabelecidas no art.º 640º do CPC deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco.;

VII. Tendo o recurso por objecto a impugnação da matéria de facto, não está o recorrente obrigado a proceder, nas conclusões, à reprodução textual do que se impugna, mostrando-se suficiente a mera indicação dos números sob os quais se encontram vertidos os factos impugnados.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Depois de se estabelecer, no artº 639º do CPC, que o recorrente deve apresentar uma alegação, onde explane os fundamentos pelo que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida, a qual deve ser rematada com conclusões que sintetizem esses fundamentos (enumerando mesmo o conteúdo mínimo dessas conclusões relativamente à matéria de direito no seu nº 2), a lei processual estabelece no seu art.º 640º que o recorrente no caso de impugnar a decisão sobre a matéria de facto deve, em acréscimo às exigências do art.º 639º, proceder à especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, dos concretos meios probatórios que imponham decisão diversa e da decisão que deve ser proferida, sem contudo, e ao contrário do estabelecido no artigo precedente, fazer qualquer referência ao modo e ao local de proceder a essa especificação.

No que a tal concerne, tendo em consideração a dupla função das conclusões da alegação – síntese dos fundamentos e concomitante delimitação objectiva do recurso – tem-se gerado o consenso de que as conclusões devem conter uma clara referência à impugnação da decisão da matéria de facto em termos que permitam uma clara delimitação dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, e que as demais especificações exigidas pelo art.º 640º do CPC devem constar do corpo das alegações (cf. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., págs. 165-167).

Como contrapartida do acrescido esforço e alocação de meios que a ampliação dos poderes de cognição da Relação em matéria de facto decorrentes das mais recentes reformas da lei processual acarretam, e tendo em vista o bom funcionamento da justiça, vem-se defendendo que a apreciação das exigências estabelecidas no art.º 640º do CPC se efectue segundo um critério de rigor.

Critério de rigor esse que vise impedir que a impugnação da decisão da matéria de facto se banalize numa mera manifestação de inconsequente inconformismo, mas antes, se contenha nos limites de uma precisa delimitação do objecto a impugnação (especificação dos concretos pontos de facto impugnados), da seriedade dessa impugnação (especificação dos meios probatórios que implicam decisão diversa) e da assunção clara do resultado pretendido (especificação da decisão que deve ser proferida).

Mas, por outro lado, esse critério de rigor não deve transmutar-se num excesso de formalismo que redunde na denegação da reapreciação da decisão da matéria de facto, em violação dos artigos 2º (proporcionalidade) e 20º (processo equitativo) da Constituição da República e do art.º 6º (processo equitativo) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (a propósito de excesso de formalismo enquanto violação do direito a um processo equitativo cf. o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos de 31MAR2020 no caso “DOS SANTOS CALADO E OUTROS c. PORTUGAL”, nº 55997/14).

Em suma, a apreciação da satisfação das exigências estabelecidas no artº 640º do CPC deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco.

No caso concreto dos autos é, em nosso modo de ver, manifesto ter o recorrente satisfeito adequadamente os ónus impostos no artº 640º do CPC, em particular o da especificação dos concretos pontos de facto que pretendia impugnar. E isso porque especifica nas conclusões quais os concretos pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados – conclusão c) – e o sentido geral (sintetizado) das alterações que pretende – conclusão d) – e, por outro lado, especifica pormenorizadamente – pontos 3 a 8 da alegação – a expressão verbal do que entende ter sido incorrectamente julgado e do que em seu entender devia ser considerado provado, assegurando claramente o nível de precisão e seriedade estabelecidos no art.º 640º do CPC.

Nesse contexto a exigência da reprodução textual do que se impugna nas conclusões, não se mostrando suficiente a mera indicação dos números sob os quais se encontrem vertidos esses factos, afigura-se-nos como excesso de formalismo, não compatível com os critérios de proporcionalidade e racionalidade acima perspectivados."

*[Comentário] a) O STJ decidiu bem.

b) Muito enigmático é o sumariado no n.º II. Este item parece referir-se ao seguinte trecho do acórdão:

"[...] conforme vem sendo entendido neste Supremo Tribunal, em sede de revista interposta de acórdão da Relação confirmativo da decisão da 1.ª instância, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, quando seja invocada a violação de disposições processuais no exercício dos poderes de reapreciação da decisão de facto pela Relação, este fundamento não concorre para a formação da dupla conforme prevista no n.º 3 do art.º 671.º do CPC, na medida em que estamos perante uma decisão criada ex novo no próprio tribunal da Relação, sem qualquer paralelo, afinidade ou contiguidade com a decisão produzida na 1.ª instância, com a qual não ocorre qualquer coincidência, como é intrínseco à dupla conforme; sem prejuízo, no entanto, de tal questão poder vir a ser novamente apreciada na eventualidade de ser negada a revista no respeitante à invocada violação de disposições processuais relativamente à decisão de direito (cf. Acórdãos de 14-07-2016, proc. 111/12.0TBAVV.G1.S1, 25-05-2017, proc. 945/13.8T2AMD-A.L1.S1, 14-09-2017, proc. 1676/13.4TBVLG.P1.S1, 19-10-2017, proc. 493/13.6TBCBT.G1.S2 e 24-04-2018, proc. 140/11.0TBCVD.E1.S1)".

A parte final do trecho também não é muito claro, mas parece que o que se pretende dizer é que, se a revista excepcional for invocada a título subsidiário, a admissibilidade desta revista é apreciada depois de se considerar improcedente a revista "normal".

MTS