"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/02/2021

Jurisprudência 2020 (142)


Presunções judiciais;
culpa*


I. O sumário de RC 26/6/2020 (516/18.2T8CNT.C1) é o seguinte:

1- À luz do artº 27º, nº 1, al. c), do DL nº 291/2007, de 21/08, constituem pressupostos do direito de regresso pela seguradora contra o condutor de veículo:

a) Que a seguradora tenha pago/satisfeito uma indemnização a terceiro lesado por ocorrência de acidente de viação em que foi envolvido um veículo seu segurado;

b) Que o condutor desse seu veículo tenha (culposamente) dado causa ao acidente;

c) E que o condutor desse seu veículo segurado fosse então portador de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida/permitida.

2- Pressupostos esses que são cumulativos e cujo ónus de alegação e prova incumbe à seguradora.

3- Nesse ónus não se inclui já a prova do nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e a ocorrência do acidente.

4- Está cientificamente comprovado que a ingestão de álcool diminui, na exata medida do crescendo do seu teor, a capacidade de reação e de concentração, assim como a capacidade motora e sensorial, nomeadamente a visual, provocando, uma demora na reação aos estímulos, donde influir (ou, pelos menos, poder influir), nessa medida, na atividade da condução de veículos, dado diminuir (adequadamente) a aptidão de quem conduz os mesmos.

5- Não constituindo a condução sob a influência do álcool, só por si, uma presunção legal de culpa na produção do acidente, todavia, - e não permitindo a matéria factual apurada concluir pela culpa efetiva de qualquer condutor na produção do acidente – essa culpa pode ser estabelecida por via do recurso a presunções judiciais/naturais, nas quais se integram ou podem integrar a condução sob o efeito do álcool em conjugação de análise, perante o caso concreto, com os demais factos apurados.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Prescreve o art. 21º, nºs 1 e 2 do CE que:

“1 - Quando o condutor pretender reduzir a velocidade, parar, estacionar, mudar de direção ou de via de trânsito, iniciar uma ultrapassagem ou inverter o sentido de marcha, deve assinalar com a necessária antecedência a sua intenção.

2 - O sinal deve manter-se enquanto se efetua a manobra e cessar logo que ela esteja concluída.“

E nos termos do art. 24º, nº 1 do CE “1 - O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”

À luz de tal materialidade factualidade apurada e dos normativos legais atrás citados, o tribunal a quo considerou não se mostrar possível atribuir a culpa efetiva (subjetiva, pois a essa e só ela que está aqui em causa) a qualquer um dos condutores dos aludidos veículos envolvidos no acidente e particularmente à ré, e nem sequer a culpa presumida, extraída da presunção legal prevista à luz do artº. 503º, nº. 3, do CC (“Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do n.º 1”), argumentando a este respeito para o efeito que “não foi sequer invocada nem, por conseguinte, provada factualidade de onde se extraísse a relação de comissão prevista na norma.”

E daí que, não se tendo demonstrado a culpa da ré na produção do acidente, tenha concluído não se mostrar preenchido o segundo pressuposto atrás referido que vimos analisando, julgando, em consequência, improcedente a ação e absolvido aquela do pedido.

Quid iuris?

Importa, desde já dizer, que, perante a escassez da matéria factual, e particularmente no que concerne àquela referente à dinâmica do acidente, não é possível apurar da causa concreta/efetiva que motivou a acidente e, consequentemente, não se mostra possível concluir (como bem o fez o tribunal a quo) pela culpa efetiva (quer em exclusividade, quer em concorrência) de qualquer um dos condutores na produção do acidente, e em particular da ré, pois que tal materialidade não permite extrair a conclusão, em termos de censurabilidade da sua conduta, de que perante as circunstâncias concretas da situação a ré podia e deveria ter atuado de modo a evitar o acidente, sendo certo ainda que, não obstante conduzir um veículo de que não era proprietária, a escassez de tal matéria não permite lançar mão da presunção legal de culpa estatuída naquele citado artº. 503º, nº. 3, do CC.

Porém, haverá que considerar o seguinte:

Em matéria de acidentes de viação, a culpa não se confunde com uma mera violação de uma norma destinada a proteger interesses alheios e, como tal, a infração de uma regra legal de trânsito não implica automaticamente, sem mais, a existência de culpa do agente, pois a ilicitude e a culpa não se confundem (cfr., entre outros, Ac. STJ. de 15/1/80, in “BMJ. nº. 293, pág. 285” e Ac. RL. de 26/1/95, in “CJ, Ano XX, T1, pág. 101”).

Assim, haverá que apreciar em concreto a conduta do agente, embora essa infração às regras estradais possa constituir um índice semiótico da existência de um comportamento culposo do lesante, mas por via da factualidade que integra essa infração e não pela mera circunstância de ser uma infração estradal. Isto é, uma infração aos preceitos estradais não é só por si sinónimo de culpa, mas porque cometida no âmbito da condução automóvel, ato voluntário humano, inculca a imprudência do agente. Desse modo, vem sustentando a jurisprudência dominante que, sob pena de se onerar o lesado insuportavelmente com a demonstração do nexo de imputação ético-jurídico do facto ilícito à vontade do condutor, por infração de norma regulamentar que protege interesses alheios, não se torna necessária a prova da concreta previsibilidade do evento, sempre que este se situe no círculo de interesses privados que a norma pretendeu acautelar, doutrinando-se existir uma presunção judicial de negligência. (cfr. ainda o Ac. da RC de 14/03/2017, proc. nº. 1160/15.1T8LRA-C1, disponível em www.dgsi.pt).

Por fim, importa ainda dizer que a não existência de qualquer presunção de culpa não se confunde com a possibilidade, não afastada, de o tribunal recorrer a presunções naturais/judiciais para vencer algumas dificuldades especiais de prova, a chamada «prova de primeira aparência» (cfr. artº. 349º do CC), considerando-se que para provar a culpa no domínio da responsabilidade por factos ilícitos basta que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, tornem verosímil a culpa (vide, entre outros, Ac. da RC de 15/3/83, in “CJ, Ano VIII, T2, pág. 15”).

Posto isto, avancemos mais decisivamente para a solução do caso concreto.

Como já se deixou referido, no momento do acidente a ré conduzia o veículo automóvel com uma taxa de alcoolemia de 1,454 g/l (cfr. alínea M) dos factos provados), e portanto muito superior àquela legalmente permitida, a qual é, como se sabe, de 0,4 g/l, sendo que no caso essa taxa situava-se mesmo no mais alto dos escalões legalmente estabelecidos (cfr. artº. 81º, nºs. 1, 2, e 6 al. a), do CE), constituindo-se mesmo como ilícito criminal (cfr. artº 292º do CP).

E ao fazê-lo a ré violou, desde logo, o comando estradal do citado artº. 80º, nº. 1, do CE, que proíbe a condução sob a influência de álcool.

Comando esse que visa precisamente, além do mais, zelar pela segurança rodoviária, e particularmente de todos aqueles cidadãos que circulam nas vias públicas, sabido que são os efeitos nocivos do álcool, sobretudo a acima da taxa legalmente permitida. Na verdade, está cientificamente comprovado que a ingestão de álcool diminui, na exata medida do crescendo do seu teor, a capacidade de reação e de concentração, assim como a capacidade motora e sensorial, nomeadamente a visual, provocando, uma demora na reação aos estímulos, donde influir, nessa medida, na atividade da condução de veículos, dado diminuir (adequadamente) a aptidão de quem conduz esses veículos.

Desse modo, dado o elevado teor da taxa de álcool com que então circulava a ré, e considerando ainda, por um lado, que o acidente ocorreu numa reta com visibilidade superior a 100 metros – atento o sentido de marcha em seguia ao veículo por si tripulado -, apresentando-se a via no local com uma largura de 6,50m, por outro, que a velocidade no local está limitada a 70 km/h, e, por fim, os elevados danos (e a sua localização) sofridos pelo outro veículo (RH) envolvido no acidente (de marca Mercedes), e que levaram à sua perda total (tudo apontando ter sido embatido, de forma violenta, pelo veículo TD, quando executava a mudança de direção), tudo isso faz inculcar a ideia, através do recurso presunções judiciais/naturais (não ilididas) a que atrás aludimos, de que a ré atuou, no caso, de forma imprevidente/negligente.

Imprevidência/negligência essa causada pelo elevado teor de álcool com que a ré circulava, que lhe terá retirado a necessária clarividência para evitar o acidente, assim, a ele dando causa (não sabemos se de forma exclusiva ou em concorrência de culpas com o condutor do outro veículo).

É assim de presumir (enfatiza-se, por vir do recurso às sobreditas presunções judiciais/naturais, assentes na alta taxa de alcoolemia com que então circulava em conjugação com a demais factualidade atrás referida) a culpa da ré na produção do acidente, a ele dando causa (desconhecendo-se, repete-se, se de forma exclusiva ou em concorrência de culpas com o condutor do veículo RH). Apontando no sentido que se deixou exposto vide ainda Ac. da RC de 14/03/2017, proc. nº. 1160/15.1T8LRA-C1, disponível em www.dgsi.pt, e Maria Amália Santos, “O Direito de Regresso das Seguradora nos Acidentes de Viação”, in Revista Julgar Online, Novembro 2018)

Desse modo, é de concluir que se mostra preenchido o último dos pressupostos que vínhamos analisando, e com ele, como vimos, todos os demais pressupostos legais que permitem à autora exercer o direito de regresso contra à ré obtendo dela o pagamento da quantia que peticiona na presente ação."

*III. [Comentário] Embora sem consequências para o decidido, duvida-se, salvo o devido respeito, que se possa dizer que da condução com álcool se pode inferir a culpa do condutor. A culpa não pode ser inferida, através de presunções judiciais, do estado de alcoolizado. dado que apenas factos podem ser inferidos através dessas presunções e a culpa não é um facto. A culpa é antes a qualificação jurídica que pode ser atribuída a uma conduta, in casu, a condução em estado de embriaguez. 

MTS