"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/02/2021

Jurisprudência 2020 (148)


Recurso de revista;
ofensa de caso julgado*


1. O sumário de STJ 2/6/2020 (217/19.4T8PFR.P1-A.S1) é o seguinte:

I- A admissibilidade do recurso revista por via do disposto no artº 671º do CPC e do artº 629º, nº 2, al. d) do CPC, não prescinde dos requisitos gerais de admissibilidade, designadamente da alçada.

II- Independentemente do valor do processo ou do valor da sucumbência, é sempre admissível recurso nos diversos graus de jurisdição quando este vise a impugnação de decisões relativamente às quais seja invocada pelo recorrente a ofensa do caso julgado formal ou material (arts. 620º e 621º do CPC).

III- Porém, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça fica limitada à apreciação da alegada ofensa de caso julgado, excluindo-se outras questões cuja impugnação fica submetida às regras gerais.

IV- Não se verificando a ofensa de caso julgado, o recurso de revista não poderá ser admitido.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"I- Relatório:

No Juízo Local Cível de ... correu termos a acção de preferência com o n.° 670/16.8T8PFR, que foi intentada pelo aqui autor contra os aqui réus AA e BB, tendo sido proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente.

Interposto recurso de apelação, por despacho do Relator da Relação do Porto, proferido naqueles autos, transitado em julgado em 20-02-2019, foi julgado procedente o recurso interposto pelos réus AA e BB com fundamento na ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário passivo (a acção não havia sido intentada também contra os cônjuges dos réus), decidindo pela absolvição dos réus da instância.

Em 15-02-2019, no mesmo Juízo Local Cível de ..., o autor CC intentou nova acção de preferência contra AA, DD, BB e EE, que deu origem aos presentes autos.

O réu AA é casado no regime de comunhão de adquiridos com a ré DD e o réu BB é casado no regime de comunhão de adquiridos com a ré EE.

Os réus contestaram alegando a caducidade do direito de acção com fundamento na confissão do autor de que tomou conhecimento da venda no mês de Setembro de 2016.

Nos presentes autos, foi proferido despacho saneador que julgou procedente a excepção peremptória de caducidade do direito de acção e, em conformidade, absolveu os réus dos pedidos.

Deste despacho veio o autor interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto.

Este Tribunal, por acórdão de 18 de Novembro de 2019, julgou a apelação procedente revogando a decisão recorrida e, considerando improcedente a excepção peremptória da caducidade do direito, determinou o prosseguimento dos autos. [...]

Do acórdão vieram os réus interpor recurso de revista, formulando as seguintes conclusões: [...]


II - QUESTÃO FUNDAMENTAL

3- Saber se é imputável ao Autor, comproprietário, a absolvição dos Réus da instância, por ilegitimidade, quando esta decorre da propositura de uma acção de preferência sem intervenção de outro comproprietário ou, como no caso, decorrente de preterição de litisconsórcio necessário passivo e, em consequência, se pode beneficiar da extensão do prazo previsto no artigo 327° n.°3 do Código de Processo Civil.


III - DA FUNDAMENTAÇÃO

[...] 3- Resta apreciar os pressupostos da admissibilidade do recurso com fundamento na ofensa de caso julgado prevista na al. a) do nº 2 do artº 629º.
Independentemente do valor do processo ou do valor da sucumbência, é sempre admissível recurso nos diversos graus de jurisdição quando este vise a impugnação de decisões relativamente às quais seja invocada pelo recorrente a ofensa do caso julgado formal ou material (arts. 620º e 621º do CPC).

A ampliação da recorribilidade da decisão justifica-se, aqui, pela necessidade de preservar os efeitos que decorrem de decisões já transitadas em julgado ou cobertas pela eficácia ou autoridade do caso julgado, evitando a sua contradição ou a sua inútil confirmação (art. 580º, nº 2 do CPC).

Sublinhe-se, porém, que a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça fica limitada à apreciação da alegada ofensa de caso julgado, excluindo-se outras questões cuja impugnação fica submetida às regras gerais [Cfr. o Ac. do STJ de 15-02-2017, p. nº 2623/11, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido Abrantes Geraldes, ob., cit., p. 51; Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, CPC anotado, Vol. III, Tomo I, 2ª ed., p. 15].

Alegam os recorrentes, nas conclusões, como fundamento da ofensa de caso julgado o seguinte:

“III.2 - DA OFENSA DE CASO JULGADO

8- Para além do já referido no sumário do Acórdão recorrido, no corpo do seu texto integral é referido que "nenhuma culpa pode ser imputada à parte pelo arrastar do mesmo, pelo não suprimento da referida exceção dilatória, que o legislador quis, na verdade fosse sempre suprida, privilegiando as decisões de mérito às de forma (cfr. n°3. do art. 278°l"

9- Acrescenta que "Conclui o Apelante que no processo anterior (n° 670/16.8T8PFR) devia ter sido convidado a aperfeiçoar o seu articulado, para que sanado fosse o vício da ilegitimidade passiva, tendo sido por tal dever não ter sido cumprido, como a lei impõe, e, por isso, por motivo que lhe não é imputável, que a primeira ação terminou com a absolvição dos Réus maridos da instância ".

10- Ou seja, em suma, o Acórdão Recorrido considera que no âmbito do Processo n.° 670/16.8T8PFR deveria ter sido o Tribunal a tomar a iniciativa de chamar a juízo ou providenciar pela chamada ajuízo das mulheres dos Réus.

11- No seu entendimento, no âmbito daquele processo n.° 670/16.8T8PFR o Tribunal omitiu uma formalidade que a lei prescrevia, o que conduziria, a acolher este entendimento, a uma nulidade nos termos do artigo 195° n.°l do Código de Processo Civil.

12- Portanto, sempre no entendimento do Acórdão Recorrido, temos de concluir que ao aperceber-se da preterição do litisconsórcio necessário passivo, o Exm° Senhor Juiz Desembargador Relator do Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do Processo n.° 670/16.8T8PFR deveria ele próprio a declarar essa nulidade e remeter o processo para a Ia instância por forma a que as mulheres dos Réus pudessem vir a ser chamadas acção.

13- Acontece que, conforme resulta dos factos provados "O Exm° Senhor Relator do Venerando Tribunal da Relação do Porto viria a decidir de forma singular, «atenta a ilegitimidade dos Réus, por preterição de litisconsórcio necessário, decide-se absolver os Réus da instância»".

14- OU SEJA, O EXM° SENHOR JUIZ DESEMBARGADOR RELATOR NO ÂMBITO DAQUELE PROCESSO N.° 670/16.8T8PFR NÃO VISLUMBROU AQUI QUALQUER NULIDADE NEM QUALQUER FALTA DO TRIBUNAL "A QUO", NEM ELE PRÓPRIO VISLUMBROU QUALQUER PODER DEVER DO TRIBUNAL DE CHAMAR OU CONVIDAR O AUTOR A CHAMAR AS MULHERES, NEM QUALQUER PODER DEVER DO TRIBUNAL EM SUPRIR A FALTA DE PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS SUSCEPTÍVEIS DE SANAÇÃO.

15- AO ASSIM DECIDIR, ENTENDEU POIS O EXM° SENHOR JUIZ DESEMBARGADOR RELATOR QUE SERIA DE IMPUTAR AO AUTOR A ILEGITIMIDADE DOS RÉUS, ABSOLVENDQ-OS POR CONSEGUINTE DA INSTÂNCIA.

16- Transitada em julgado essa Decisão Singular, ficou assim definitivamente decidida a questão se o Tribunal ou o Juiz (quer do Tribunal "a quo", quer o do Venerando Tribunal da Relação do Porto) deveria ou não ter providenciado pelo suprimento da falta dos pressupostos processuais.

17- Assim, salvo o devido respeito por melhor opinião, estava pois vedado ao Acórdão Recorrido pronunciar-se sobre a questão se existiu ou não omissão pelo Tribunal do poder dever de providenciar pelo suprimento dos pressupostos processuais.

18- E, por conseguinte, estava vedado ao Acórdão Recorrido pronunciar-se sobre a imputabilidade ao Autor da absolvição da instância, nomeadamente, com base na preterição pelo Tribunal de qualquer providência com vista ao suprimento de pressupostos processuais,

19- Pois essa questão foi prontamente decidida na Decisão Singular proferida pelo Exm° Senhor Juiz Desembargador do Tribunal da Relação do Porto no âmbito do Processo n.° 670/16.8T8PFR.

20- Pelo que ocorreu violação do Caso Julgado, devendo o Acórdão Recorrido por conseguinte ser revogado e substituído por um outro que julgue procedente a excepção peremptória de caducidade”.

Vejamos:

O efeito positivo externo do caso julgado – pois é a isso que a recorrente se quer referir – consiste na vinculação de uma decisão posterior a uma decisão já transitada, em razão de uma relação de prejudicialidade ou de concurso entre os respectivos objectos processuais, ou, em termos mais simples, em razão de objectos processuais conexos. [Cfr. Rui Pinto, Exceção e autoridade de caso julgado, Revista Julgar on line, Novembro 2018, página 25, em www.julgar.pt.]

Para a verificação da ofensa de caso julgado, manifestada neste aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada (autoridade de caso julgado), tem-se entendido não ser necessária a verificação cumulativa dos três requisitos apontados no artigo 581º do CPC (identidade de sujeitos, causa de pedir e pedido) [...].

Aceita-se, por isso, que a circunstância de não ser total a identidade de sujeitos, tal não impede a aferição da eventual ofensa do caso julgado material.

No caso, porém, parece-nos evidente, que a decisão recorrida não postergou ou contrariou o anteriormente decidido no âmbito do processo 670/16.8T8PFR.

Naqueles autos, o aqui autor propôs a acção de preferência apenas contra os réus AA e BB, com exclusão dos respectivos cônjuges. Por tal motivo, o Relator do Tribunal da Relação, entendeu verificar-se uma situação de preterição do litisconsórcio necessário passivo, por falta de intervenção dos cônjuges dos réus e, consequentemente, absolveu os réus da instância, decisão que veio a transitar em julgado.

Com os presentes autos, o autor propôs nova acção contra os mesmos réus e respectivos cônjuges. Na 1ª instância foi proferido despacho saneador que julgou procedente a excepção peremptória de caducidade do direito de acção e, em conformidade, absolveu os réus dos pedidos. Deste despacho veio o autor interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto. Este Tribunal, por acórdão de 18 de Novembro de 2019, julgou a apelação procedente revogando a decisão recorrida e, considerando improcedente a excepção peremptória da caducidade do direito, determinou o prosseguimento dos autos.

A fundamentação, no que concerne à não caducidade do direito, constante do sumário do acórdão é a seguinte:

“4- Da conjugação dos artigos 279°, do CPC e 332° e 327°, do CC resulta que, no caso de absolvição da instância não imputável ao autor, pode ser proposta nova ação no prazo de dois meses a contar do transito em julgado da decisão que absolva o réu da instância, beneficiando o Autor do prazo adicional de 2 meses aí estabelecido para repetir a ação, com sobrevivência dos efeitos civis - impedimento da caducidade - da primeira ação, consagrando-se uma ampliação ou extensão do prazo de caducidade.

5- Não é de imputar ao autor a absolvição da instância, por ilegitimidade decorrente de preterição de litisconsórcio necessário passivo, numa ação de preferência em que as mulheres dos Réus não figuram como partes, quando não foi observado o poder-dever do juiz de providenciar pelo suprimento da falta do pressuposto processual capaz de levar à sua sanação (al.a), do n°2, do art. 590°, n° 2 do art. 6°), pois que a falta originária daquele não foi exclusiva, sequer decisiva e marcante para o desfecho da ação.

6- Beneficia da extensão do prazo de caducidade, por aplicação do regime previsto no n°3 do art. 327°, do CC, o Autor que, por preterição de litisconsórcio necessário passivo, não suprido pelo Tribunal, acabou por ver os Réus absolvidos da instância, pois que apesar da falta inicial por ele cometida, foi o seu perpetuar, com a inobservância, no momento próprio, do dever de gestão processual, que conduziu à decisão de forma em detrimento de solução de mérito, pelo que sempre seria desproporcionado e irrazoável que - em face do que dispõe aquele preceito, cujo elemento subjetivo, ligado à imputabilidade, tem como pressuposto a observância, pelo julgador, do regime adjetivo aplicável - o A., que sofreu as consequências de uma decisão formal, ainda acarretasse com a caducidade do seu direito, que apenas está relacionada com uma questão que o Tribunal tinha o dever de suprir.

7- E, para além de razões de justiça absoluta, também, razões de justiça relativa impõem, no caso, a extensão do prazo de caducidade, pois que o mesmo ato inicial de outro Autor poderia levar a decisão de mérito, em vez da mera decisão de forma, bastando, para tanto, o desencadear, pelo julgador, do poder-dever que a lei, atualmente, lhe comete”.

Analisando as decisões, não se vislumbra que o acórdão ora recorrido esteja em oposição com a decisão prolatada pelo Relator naqueles autos, ou que tenha sindicado matéria já sujeita à autoridade do caso julgado.

A decisão proferida no processo 670/16 limitou-se a determinar a absolvição dos réus da instância, sem apreciar a questão da imputabilidade processual dessa decisão. Por sua vez, o acórdão em crise, não beliscou a decisão anterior que determinou a absolvição dos réus da instância. Todavia, como lhe competia (bem ou mal, tal não está em discussão), perante a propositura de nova acção, apreciou os efeitos dessa decisão, não imputando processualmente ao autor aquela absolvição, concedendo-lhe o beneficio da extensão do prazo de caducidade, por aplicação do regime previsto no n°3 do art. 327° do CC.

Deste modo, não ocorreu a alegada ofensa de caso julgado.

Assim, também por via da al. a) do nº 2 do artº 629º do CPC, o recurso de revista não poderá ser admitido."

*3. [Comentário] O STJ decidiu bem ao considerar que, da circunstância de a RP no anterior processo não ter convidado (como, aliás, devia: art. 6.º, n.º 2, CPC) o autor a sanar a ilegitimidade passiva dos réus, não decorre que a mesma RP tenha entendido que a absolvição da instância se tenha verificado "por motivo processual imputável ao autor".

Efectivamente, não pode deixar de se concluir que, não tendo a RP cumprido o dever de convidar o autor a sanar a ilegitimidade passiva e, portanto, não se podendo atribuir ao autor a falta de sanação do vício, a absolvição da instância nunca pode ser imputável a essa parte.

O que é discutível, salvo o devido respeito, é que o STJ tenha entendido que o que estava em causa era a admissibilidade do recurso de revista. O que o STJ realmente fez foi julgar o mérito do recurso, ao decidir que, perante a invocada violação de caso julgado, não houve, afinal, nenhuma violação.

MTS