Certificados de aforro;
reembolso; prescrição
1. O sumário de RL 14/7/2020 (5354/18.0T8LSB-7) é o seguinte:
I.–À contagem do termo inicial da contagem do prazo de prescrição previsto no Artigo 7º do Decreto-lei nº 172-B/86, respeitante à prescrição do direito de pedir o reembolso ou transmissão dos certificados de aforro de que era titular o de cujus, não basta o facto neutro morte do de cujus, exigindo-se também a aquisição pelos herdeiros do conhecimento da existência de tais certificados de aforro.
II.–Esta interpretação, reiterada pela jurisprudência, dever prevalecer designadamente porque:
(i)- ao cabeça de casal não está imposta, em qualquer disposição legal, a obrigatoriedade de diligenciar, antes de apresentar a relação de bens nas Finanças, junto do IGCP para saber da eventual existência de certificados de aforro, nem o facto de não diligenciar se pode considerar como comportamento negligente;(ii)- a interpretação contrária conduz a um resultado abstruso, disforme e colidente com outras normas jurídicas, designadamente com o Artigo 2059º do Código Civil, porquanto – nos termos de tal interpretação estrita e literal - o prazo da prescrição extintiva do direito dos herdeiros reclamarem os certificados de aforro pode prescrever antes de sequer se iniciar a contagem do prazo para se aceitar a herança;(iii)- só a interpretação sistemática, na senda da maioria da jurisprudência, é a que garante uma concordância prática, de acordo com o princípio da proporcionalidade, entre os interesses dos herdeiros do titular dos certificados de aforro e o IGCP. Na verdade, sancionando o instituto da prescrição a inércia do titular do direito, só se pode falar de inércia perante uma realidade conhecida e não perante o desconhecido: não se reage a uma realidade desconhecida;(iv)- não se divisa um direito do Estado merecedor de tutela que se superiorize ao interesse dos herdeiros em aceitarem uma herança, que tem como ativos certificados de aforro, tanto mais que o Estado dispõe de mecanismos para acionar e controlar o conhecimento do óbito por parte dos herdeiros.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"CONTAGEM DO TERMO INICIAL DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO
A apelante sustenta que a decisão impugnada deve ser revogada porquanto fez uma interpretação incorreta da lei aplicável ao caso. No seu entendimento, o exercício de direitos sobre produtos de aforro conta-se desde a morte do aforrista porquanto, só assim, se garante que o exercício de direitos pelos herdeiros não gravite eternamente na esfera jurídica dos herdeiros. Mais sustenta que a lei não determina que o conhecimento ou o mero acaso tenham qualquer relevância jurídica para efeito de determinação do início do prazo prescricional dos certificados de aforro.
À data do primeiro óbito ocorrido nos autos (abril de 2002), encontrava-se em vigor o Artigo 7º do Decreto-lei nº 172-B/86, com a seguinte redação:
«1- Por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efetivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhes deram origem, ou o respetivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado.2- Findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respetivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição.»
Tal redação foi alterada pelo Decreto-lei nº 122/2002, de 4.5. para:
«1- Por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efetivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhes deram origem, ou o respetivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado.2- Findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respetivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição.»
Tal redação foi alterada pelo Decreto-lei nº 47/2008, de 13.3., para:
«1– Por morte do titular de um certificado de aforro, podem os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos:a)- A transmissão da totalidade das unidades que o constituem; oub)- O respetivo reembolso, pelo valor que o certificado tenha à data em que o reembolso seja autorizado.2– Findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respetivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição.»
Por sua vez, dispõe o Artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 122/2002, que:
«1– Os certificados de aforro são valores escriturais nominativos, reembolsáveis, representativos de dívida da República Portuguesa, denominados em moeda com curso legal em Portugal e destinados à captação da poupança familiar.2– Os certificados de aforro só podem ser subscritos a favor de pessoas singulares.3– Os certificados de aforro só são transmissíveis por morte do titular.»
Resulta do seu teor literal destes preceitos que o legislador quis instituir um prazo de prescrição de dez anos a contar do óbito do titular dos certificados de aforro, prazo esse em que os herdeiros terão de reclamar a transmissão dos certificados ou o seu reembolso.
E, nos termos do Artigo 306º, nº1, do Código Civil, «O prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo de prescrição.»
A propósito do início do prazo da prescrição, afirma Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado, I – Parte Geral, Almedina, 2020, p. 887, que:
«(1)– Pelo sistema objetivo, o prazo começa a correr logo que o direito possa ser exercido ou melhor [296º e 297º, b)]: no dia seguinte, já que o próprio dia não se conta. E isso independentemente de o titular ter conhecimento da sua existência ou dispor de meios para o exercer. Este sistema era tradicional. As injustiças a que pode dar azo são compensadas pelo facto de comportar prazos longos e de jogar como o subinstituto da suspensão da prescrição.(2)– Pelo sistema subjetivo, o prazo prescricional só se inicia quando o credor tenha conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito. Postula, rem regra, prazos curtos.(3) O Código Civil optou, como regra, pelo sistema objetivo: 306º/1. (…)Todavia, nos 482º (prescrição do direito à restituição do enriquecimento) e 498º (prescrição do direito à indemnização), adota-se o sistema subjetivo: a prescrição só se inicia a contar do momento em que o credor tenha conhecimento do direito que lhe compete e (no caso do enriquecimento) da pessoa do responsável.»
Em parecer elaborado a propósito desta questão, votado em 14.4.2011, o Conselho Consultivo da PGR concluiu que: «O prazo de dez anos, estabelecido no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, para os herdeiros do titular de certificados de aforro requererem a transmissão da totalidade das unidades que os constituem ou o respetivo reembolso, sob pena de prescrição a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública, prevista no n.º 2 da mesma disposição, deve contar-se a partir da data do falecimento do titular aforrador, em conformidade com a regra acolhida no artigo 306.º, n.º 1 – 1.ª parte, do Código Civil.»
Todavia, a esta posição – que se atém, na sua essência, a uma interpretação literal dos preceitos em causa – contrapõe-se outra, no sentido de que o início do prazo de prescrição só ocorre a partir do momento em que os herdeiros têm conhecimento de que o de cujus era titular de certificados de aforro.
Assim, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.11.2005, Lopes Pinto, 05A3169, afirmou-se o seguinte:
«I- Fundamento específico da prescrição é a negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período legalmente estabelecido, a qual faz presumir ou a renúncia ao direito ou, pelo menos, torna aquele indigno de proteção jurídica, a inércia negligente.II- Ninguém pode exercer um direito que não conhece ter, que não sabe que lhe assiste. Se o desconhece e o prazo se escoou não se pode verdadeiramente falar de inércia (há apenas decurso dum lapso de tempo) e, menos ainda, de negligência, sendo que pela prescrição se sanciona a inércia negligente do titular do direito.III- Não pode dizer-se que haja negligência da parte do titular dum direito em exercitá-lo enquanto ele o não pode fazer valer por causas objetivas, isto é, inerentes à condição do mesmo direito e na hipótese de o direito já ser exercitável, só pode ser impedido por motivos excecionais, que são as causas suspensivas da prescrição.IV- As expressões «conhecimento do direito que lhe compete» (CC 482 e 498-1) e ‘poder o direito ser exercido’ (CC 306-1) traduzem o mesmo princípio que informa o instituto da prescrição, que aí se afasta do da caducidade.V- Dispondo o art. 7 do dec-lei 172-B/86, de 30.06 que ‘por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem ... (nº1) e que ‘findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respetivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição’ (nº 2), a contagem do prazo prescricional só se inicia com o conhecimento da morte do titular (facto neutro) e de que ele era titular de certificados de aforro.»
No Acórdão do STA de 1.10.2015, Ana Paula Portela, 0619/15, afirmou-se:
«I- O prazo de prescrição a que alude o art. 7º do DL 172-B/86 de 30/6, na redação que lhe foi dada pelo DL 122/2002 de 4/5, deve contar-se de acordo com o art. 306º do CC o qual pressupõe o conhecimento dos pressupostos do direito ou, pelo menos a possibilidade fática de os conhecer.II- A questão de determinar o termo inicial de contagem do prazo de prescrição implica a ponderação da factualidade provada, mediante recurso a regras da vida e da experiência comum, de modo a poder ser formulado um juízo sobre o momento em que o concreto lesado teve ou poderia ter tido conhecimento do direito que lhe compete.III- Com a entrada em vigor do DL 47/2008 de 13/3, a partir de 14 de março de 2008 os herdeiros do titular aforrista podiam ter diligenciado no sentido de aferir se o mesmo era detentor de quaisquer certificados de aforro.»
Esta linha jurisprudencial foi reafirmada nos seguintes quatro arestos desta Relação de Lisboa:
– Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.9.2017, Manuela Gomes, 16519-15:
«É de prescrição o prazo estabelecido, relativamente ao resgate dos certificados de aforro, no artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 122/2002, de 4 de maio.–Não tendo os herdeiros acesso à existência, localização e titularidade dos investimentos financeiros de pessoa falecida, não pode iniciar-se o prazo de prescrição nos termos do artigo 306.º, n.º 1, do Código Civil.»
– Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.4.2018, Rui Vouga, 25635/15:
«1.– A despeito da ampliação de 5 para 10 anos do prazo extintivo do direito dos herdeiros do aforrista ao reembolso dos certificados de aforro (introduzida pelo Decreto-Lei n.º 122/2002 de 4 de Maio) e mesmo após a criação (pelo DL nº 47/2008, de 13 de Março) do registo central de certificados de aforro (cuja finalidade é a de possibilitar a obtenção de informação sobre a existência de certificados de aforro e identificação dos seus titulares), mantém-se plenamente válida e atual a orientação jurisprudencial anterior a 2008 adotada no Acórdão do STJ de 8/11/2005 (Proc. nº 05A3169; relator – LOPES PINTO), em que se concluiu que o termo inicial do prazo para a extinção de direitos consagrada no n.º 2 do art. 7.º do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho dependia do conhecimento do óbito e da existência dos certificados de aforro.2.– De qualquer modo, mesmo a entender-se que, desde que passou a existir um registo central de certificados de aforro (em 2008), tal prazo prescricional se deveria contar do óbito do aforrista - visto os herdeiros os herdeiros de pessoa falecida poderem hoje saber se ela era subscritora destes títulos e dos respetivos saldos e estarem, assim, em condições de poderem exercer o seu direito ao reembolso (art. 306º, nº 1, do Código Civil) -, tal tese só é válida para os casos em que o aforrista faleceu já depois de 2008, correndo a partir desta data (e não a contar da data do óbito do aforrista) o aludido prazo prescricional de 10 anos nos casos em que o aforrista faleceu antes de 2008.»
– Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.12.2018, Conceição Saavedra, 1396/16:
«I- O IGCP atua em representação do Estado na gestão dos certificados de aforro e no controle dos prazos de prescrição aos mesmos respeitantes, assistindo-lhe, por isso, o direito de se opor à transmissão ou reembolso respetivo com fundamento na prescrição;II- Em 2008, foi criado o registo central de certificados de aforro, gerido pelo IGCP, que tem por finalidade possibilitar a obtenção de informação sobre a existência de certificados de aforro e sobre a identificação do respetivo titular;III- Com a criação desse registo central de certificados de aforro que permite, além do mais, aos herdeiros de pessoa falecida saber se esta era subscritora dos títulos e dos respetivos saldos, ficaram tais herdeiros em condições de exercer o seu direito face aos mesmos, nos termos e para os efeitos do art. 306, nº 1, do C.C.;Tendo o aforrista falecido antes de 2008, o prazo de prescrição de 10 anos a que se refere o art. 7 do DL nº 172-B/86, de 30.6, deve contar-se da data da criação do referido registo central de certificados de aforro.»
– Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31.3.2019, Amélia Ameixoeira, 491/16:
«I – Fundamento específico da prescrição é a negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período legalmente estabelecido, a qual faz presumir ou a renúncia ao direito ou, pelo menos, torna aquele indigno de proteção jurídica, a inércia negligente.II – Ninguém pode exercer um direito que não conhece ter, que não sabe que lhe assiste. Se o desconhece e o prazo se escoou não se pode verdadeiramente falar de inércia (há apenas decurso dum lapso de tempo) e, menos ainda, de negligência, sendo que pela prescrição se sanciona a inércia negligente do titular do direito.III – Não existindo à data do óbito do titular dos certificados de aforro , ainda , a base de dados de registo dos aludidos certificados - o registo central eletrónico só surgiu com o Decreto-Lei n.º 47/2008, e com elementos a aprovar por Portaria - , pertinente não é reportar-se o inicio do prazo de prescrição à data do óbito do titular falecido, data em que não tinha o seu herdeiro acesso à existência, localização e titularidade dos investimentos financeiros do titular falecido, logo, não pode iniciar-se – à data do óbito - o prazo de prescrição nos termos do citado artigo 306.º, n.º 1, do Código Civil.»
Por sua vez, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.1.2019, Lima Gonçalves, 25635/15, foi reafirmada tal jurisprudência nestes termos:
«I - A prescrição assenta no desvalor da inércia do titular de um direito no seu exercício e implica a afetação da sua eficácia; porém, o curso do prazo de prescrição apenas se pode iniciar quando o titular do direito esteja em condições de o exercer.II - O prazo de 10 anos a que aludia o n.º 1 do art. 7.º do DL n.º 122/2003, de 04-05, inicia o seu decurso no momento em que o herdeiro teve conhecimento do decesso do titular dos certificados de aforro e da existência destes, porquanto só então aquele está em condições de exercer o direito ali previsto.III - Demonstrando-se que a recorrida apenas teve conhecimento de que a sua falecida mãe era titular de certificados de aforro em 01-05-2015 e que, em 11-06-2015, requereu ao recorrente o seu reembolso, é de concluir pela improcedência da exceção perentória da prescrição, tanto mais que inexistia, à data do óbito, o Registo Central de Certificados de Aforro e que, em todo o caso, não impende sobre o cabeça de casal o dever de indagar, junto do IGCP, sobre a titularidade de certificados de aforro.»
No que tange a este dissídio interpretativo, cremos que a razão está do lado desta segunda posição."
[MTS]