"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/02/2021

Jurisprudência 2020 (157)


Falta de citação; arguição;
convolação*

1. O sumário de RL 14/7/2020 (574/19.2T8LRS.L1-7) é o seguinte:

I– Embora a nulidade decorrente da falta de citação possa ser invocada a todo o tempo (art. 198º, nº 2 do CPC), quando o réu tome conhecimento dos factos que a sustentam antes de ocorrer o trânsito em julgado da sentença, deve suscitar tal vício mediante a dedução de incidente de arguição de nulidades perante o Tribunal de 1ª instância.

II– Se, ao invés de proceder nos termos referidos em I-, o réu invocar a nulidade ali mencionada em recurso de apelação interposto da sentença, ocorre erro no meio processual (art. 193º, nº 3 do CPC).

III– Tal erro pode e deve ser sanado pelo Tribunal da Relação, determinando-se a convolação do recurso de apelação em incidente de arguição de nulidades, e determinando-se a baixa do processo à 1ª instância, para que tal incidente seja ali apreciado e decidido (art. 193º, nº 3 do CPC).


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"3.2.–Os factos e o direito

Como já se referiu, na presente apelação vem a recorrente arguir a falta de citação, nos termos do disposto no art. 188º, al. e) do CPC, bem como a sua nulidade, conforme previsto no art. 191º, nº 1 do CPC.

Para tanto, alega que esteve afastada da sua residência por algum tempo, por ser vítima de violência doméstica, e que os atos praticados com vista à sua citação terão sido praticados quando esteve ausente da sua habitação, razão pela qual só teve conhecimento do presente processo quando regressou ao seu domicílio e foi notificada da sentença recorrida.

Mais alega que a citação com hora certa não obedeceu às formalidades legalmente previstas, pelo que é nula.

Nos termos previstos no art. 188º, al. e) do CPC, há falta de citação “quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável”.

Por seu turno, resulta do disposto no 187º, al. a) do CPC, que a falta de citação gera a nulidade de todo o processado posterior à petição inicial “salvando-se apenas esta”.

Nos termos previstos no art. 198º, nº 2 do CPC, esta nulidade pode ser arguida em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada.

Assim, a nulidade decorrente da falta de citação pode ser arguida até ao trânsito em julgado da decisão que puser termo à causa. Após este momento, nos casos em que o processo tenha corrido à revelia do réu, tal vício poderá ainda ser arguido, através de recurso extraordinário de revisão (art. 696º, al. e) do CPC).

Não obstante, haverá que ter presente que a lei prevê uma especial forma de suprimento da nulidade decorrente da falta de citação. Com efeito, estatui o art. 189º do CPC que se o réu ou o Ministério Público intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade.

Neste particular, os tribunais superiores têm sido chamados a apreciar a questão de saber se a mera apresentação pelo réu de requerimento com junção de procuração forense, sem formular qualquer outra manifestação de vontade, ou colocar qualquer questão ao Tribunal, configura uma intervenção processual suscetível de sanar o vício da falta de citação, nos termos e para os efeitos referidos na última disposição legal citada.


Diferentemente, noutros acórdãos sustentou-se o entendimento de que a simples junção de procuração por parte do réu não configura uma intervenção processual nos termos e para os efeitos previstos no art. 189º do CPC.


Nesta conformidade, importaria aferir se no caso dos presentes autos tal nulidade se deve ou não considerar suprida.

Não obstante, cremos que a montante dessa questão se deve colocar e decidir uma outra: quem deve apreciar e decidir a invocada nulidade decorrente da falta de citação: a 1ª instância, ou o Tribunal da Relação?

A este propósito haverá que recordar que em regra o meio processual adequado à invocação de nulidades processuais não é o recurso para o tribunal da Relação, mas a arguição de nulidades perante o Tribunal recorrido [...].

Não obstante, caso a nulidade se revele por efeito de uma decisão recorrível, então o meio próprio para a impugnar será o recurso.

Com efeito, já em 1945 ensinava ALBERTO DOS REIS [”Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 2º, Coimbra Editora, 1945, pp. 507-508. Em sentido idêntico cfr. do mesmo autor, “Código de Processo Civil Anotado”, volume 1º, 3ª Ed. (reimpressão), Coimbra Editora, 2012, p. 381]:

“a arguição de nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente.

Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se.

É fácil justificar esta construção. Desde que um despacho tenha mandado praticar determinado acto, por exemplo, se porventura a lei não admite a prática dêsse acto é fora de dúvida que a infracção cometida foi efeito do despacho; por outras palavras, estamos em presença dum despacho ilegal, dum despacho que ofendeu a lei do processo. Portanto a reacção contra a ilegalidade traduz-se num ataque ao despacho que a autorizou ou ordenou; ora o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (...)”. [...]

É este também o entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores [neste sentido, cfr., por todos, ac. RL 09-05-2019 (Isoleta Almeida Costa), p. 8764/16.3T8LSB.L1-8].

Não obstante, ALBERTO DOS REIS [Ob. e vol. cits., pp. 513-514] observou ainda que o CPC de 1876 estabelecia que as nulidades de que o interessado tomasse conhecimento após a publicação da sentença e que fossem anteriores a tal momento só poderiam ser invocadas através de recurso interpostos daquela decisão; mas que o CPC1939 veio alterar esse estado de coisas, admitindo expressamente que o juiz do Tribunal de primeira instância pudesse suprir nulidades ainda que estas fossem arguidas depois de proferida sentença.

Idêntica solução foi transposta para o art. 666º do CPC1961 e consta actualmente do art. 613º do CPC2013.

Com efeito, muito embora o nº 1 deste preceito estabeleça que com a prolação da sentença o poder jurisdicional se esgota, o nº 2 ressalva a possibilidade de o juiz “suprir nulidades”.

Note-se, ainda que no caso em apreço não pode considerar-se que a sentença recorrida sanciona a nulidade ora invocada, na medida em que o vício invocado não resulta da prolação da mesma nem se revelava no momento da sua prolação.

Aliás, das alegações de recurso resulta que as nulidades invocada se estribam, pelo menos em parte, em factos que não foram invocados por qualquer das partes antes da prolação da sentença recorrida, nem resultam do processado até tal momento, pelo que carecem de prova [...].

Assim, ao socorrer-se do recurso de apelação para invocar a nulidade decorrente da falta de citação (e subsidiariamente também o vício da nulidade da citação), em vez de ter arguido tai(s) nulidade(s) perante o Tribunal recorrido, a ré incorreu em erro no meio processual – art. 193º, nº 3 do CPC.

Nas situações de erro no meio processual, o critério decisório dominante é o do máximo aproveitamento dos atos praticados, aflorado nos arts. 193º, nºs 1 e 2 e 195º, nºs 2 e 3 do CPC.

Nesta conformidade, importa determinar a convolação do recurso de apelação em incidente de arguição de nulidades, determinando a baixa do processo à 1ª instância para aí ser apreciado – Neste sentido cfr. acs. STJ 14-12-2005 (Pinto Hespanhol), p. 04S4452; RP 01-03-2010 (Paula Leal de Carvalho), p. 151/09.6TTGDM.P1; e RE 18-10-2012 (Paula do Paço), p. 1027/11.2TTSTB.E1.

Na apreciação de tal incidente caberá à primeira instância aferir da tempestividade do mesmo e dirimir a questão de saber se a falta ou nulidade da citação devem ou não considerar-se sanadas por força da junção de procuração forense pela ré.

Tudo isto, obviamente, sem prejuízo da possibilidade de a decisão a proferir pela 1ª instância no tocante a tal incidente poder vir a ser objeto de recurso."

*3. [Comentário] A RL tem o cuidado de referir que a cabe "à primeira instância aferir da tempestividade" da arguição da falta de citação.

A RL fez bem, porque, se é certo que o art. 198.º, n.º 2, CPC estabelece que a falta de citação pode ser arguida em qualquer estado do processo enquanto não deva considerar-se sanada, o art. 189.º CPC dispõe que a nulidade se considera sanada se o réu ou o MP intervier no processo sem a arguir. Assim, cabe à 1.ª instância verificar se a arguição da nulidade no momento da interposição do recurso foi tempestiva.

MTS