"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/02/2021

Jurisprudência constitucional (196)


Direito ao recurso;
exoneração do passivo; valor

1. TC 27/1/2021 (70/2021) decidiu:

"[...] declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma resultante das disposições conjugadas do artigo 15.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, e do n.º 1 do artigo 678.º do Código de Processo Civil, na numeração anterior à vigência da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho – ou, em alternativa, do n.º 1 do artigo 629.º do Código de Processo Civil, na numeração resultante da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho – interpretados no sentido de que, no recurso de decisões proferidas no incidente de exoneração do passivo restante em processo de insolvência, o valor da causa para efeitos de relação com a alçada do tribunal de que se recorre é determinado pelo ativo do devedor, por violação do princípio da igualdade consagrado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição."


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2. Trata-se, nos presentes autos, de apreciar um pedido de generalização do juízo de inconstitucionalidade que o Tribunal afirmou em mais de três casos concretos relativamente à norma resultante das disposições conjugadas do artigo 15.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, e do n.º 1 do artigo 678.º do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de que, no recurso de decisões proferidas no incidente de exoneração do passivo restante em processo de insolvência, o valor da causa para efeitos de relação com a alçada do tribunal de que se recorre é determinado pelo ativo do devedor.

2.1. O juízo de inconstitucionalidade relativamente à norma atrás identificada, por referência ao artigo 678.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, foi afirmado nos Acórdãos n.os 328/2012 e 585/2014 (este não referido no requerimento do Ministério Público, mas apreciando a mesma norma e remetendo para os fundamentos do primeiro) e pelas Decisões Sumárias n.os 376/2014 e 213/2018. Já no Acórdão n.º 131/2020, o juízo de inconstitucionalidade afirmou-se relativamente à mesma norma, por referência ao artigo 629.º, n.º 1, do CPC (na numeração introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho).

A diferença consiste, apenas, na numeração, já que a norma, na sua forma e na sua substância, é rigorosamente a mesma, extraindo-se da seguinte redação: “[o] recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa”.

Atenta a identidade substancial da norma, que corresponde a um objeto unitário do recurso, a presente decisão abrange-a por referência a qualquer das numerações.

2.2. A norma em causa foi objeto de um juízo de inconstitucionalidade no Acórdão n.º 328/2012, no qual se ponderou o seguinte:

“[…] 5. Os recorrentes formulam nas suas alegações um pedido que exorbita da competência do Tribunal Constitucional. É ele o de que se modifique o valor para efeitos processuais, atribuindo-se ao apenso de exoneração do passivo restante valor igual ao do passivo a ser remitido. Efetivamente, a competência do Tribunal Constitucional restringe-se à apreciação da conformidade à Constituição da norma ou normas que constituem objeto de recurso (artigo 79.º-C da LTC), não lhe cabendo a aplicação desta aos factos da causa, nem a substituição da decisão, quando conceda provimento ao recurso. A reforma da decisão em conformidade com o julgamento da questão de constitucionalidade competirá ao tribunal da causa (artigo 80.º, n.º 2, da LTC).

Por outro lado, os recorrentes questionam a atribuição a todos os “apensos” da insolvência do valor do ativo (o mesmo valor da ação) quando o que no processo foi decidido respeita, apenas, ao valor do incidente de exoneração do passivo restante, sendo esse o âmbito de aplicação da norma questionada.

Assim, o objeto do presente recurso consiste na verificação da inconstitucionalidade da norma que resulta da interpretação conjugada dois artigos 15.º do CIRE e 678.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, segundo a qual, no incidente de exoneração do passivo restante, a utilidade económica do pedido e, consequentemente, o valor para efeito da relação com a alçada e a admissibilidade de recurso se afere unicamente pelo ativo do devedor.

6. Dispõe o artigo 15.º do CIRE que, para efeitos processuais, o valor da ação é determinado sobre o valor do ativo do devedor indicado na petição, que é corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real. Este critério adequa-se à ideia de que o valor do ativo constitui a medida máxima de satisfação dos créditos que se afigura possível no decurso do processo de insolvência e, portanto, que esse é o valor que corresponde à utilidade económica da execução universal na perspetiva dos credores. Por seu turno, o artigo 678.º, n.º 1 do Código de Processo Civil estabelece que só é admissível recurso ordinário quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre. Assim, como a alçada do tribunal de comarca é de 5.000,00 € e o valor da ação se considerou fixado em 2.000,00 €, o acórdão recorrido julgou inadmissível o recurso relativo à decisão de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, que considerou abrangido pela regra relativa ao valor da causa, em vez de ser determinado pelo valor do passivo de que os interessados pretendam ser exonerados, como os recorrentes sustentavam.

É esta dimensão normativa que os recorrentes consideram violadora dos artigos 13.º (princípio da igualdade) e 20.º, n.º 1 (acesso ao direito e aos tribunais) e, ainda, dos artigos 47.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia e 8.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (ex vi art. 8.º da Lei Fundamental).

7. O Tribunal Constitucional tem uma vasta e uniforme jurisprudência no sentido de que o legislador ordinário goza de ampla margem de conformação do direito ao recurso em processo civil, domínio em que a Constituição não consagra o direito a um duplo grau de jurisdição (salvo, segundo algumas opiniões, em matéria de direitos, liberdades e garantias; cf., por todos, Acórdão n.º 44/2008, disponível, como os demais citados, em www.tribunalconstitucional.pt). Todavia, com um primeiro limite decorrente da própria previsão constitucional de tribunais superiores: não é constitucionalmente tolerável que o legislador ordinário elimine pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso.

Mais especificamente, no que toca à irrecorribilidade em função da relação entre o valor da ação e a alçada dos tribunais, o Tribunal sempre entendeu que desse critério não resulta violação da Constituição, maxime, do direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição). Assim, seguindo essa abundante jurisprudência já no âmbito do regime jurídico do processo de insolvência, decidiu-se no Acórdão n.º 348/2008 não julgar inconstitucional a norma extraída do n.º 1, do artigo 678.º, do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido de que quando “o valor da ação de insolvência é inferior à alçada dos tribunais de 1.ª instância, não é admissível recurso ordinário da sentença”.

Porém, além daquela genérica limitação à ampla discricionariedade do legislador na conformação do regime dos recursos em processo civil, designadamente quanto às próprias condições de admissibilidade, um outro limite (um limite interno) conhece essa liberdade de conformação, que decorre desde logo do princípio do Estado de Direito (artigo 2.º da CRP) e, mais especificamente, do princípio da igualdade. Com efeito, como se recordou no Acórdão n.º 360/05, no processo civil, o que o legislador tem de assegurar sempre a todos, sem discriminações de ordem económica, é o acesso a um grau de jurisdição. Mas, se a lei previr que o acesso à via judiciária se faça em mais que um grau, tem ele que abrir a todos também a essas vias judiciárias, garantindo que o acesso a elas se faça sem discriminação alguma (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 163/90, de 23 de maio de 1990, Boletim do Ministério da Justiça n.º 397 – junho – 1990, pág. 77). Aquela margem de discricionariedade (a ampla margem de discricionariedade na concreta conformação e delimitação dos pressupostos de admissibilidade e do regime dos recursos que deve ser reconhecida ao legislador ordinário em processo civil) tem, porém, como limite a não consagração de regimes arbitrários, discriminatórios ou sem fundamento material bastante, em obediência ao princípio da igualdade (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 202/99, de 6 de abril de 1999, Boletim do Ministério da Justiça n.º 486 - maio de 1999, pág. 49).

É a esta luz – da não consagração constitucional do direito a 2.º grau de jurisdição neste domínio, por um lado, e da proibição do arbítrio no estabelecimento do critério de recorribilidade, quando o legislador opte por abrir a possibilidade de recurso, por outro – que importa analisar o critério normativo adotado para rejeitar o recurso da decisão relativa à exoneração do passivo restante.

8. A exoneração do passivo restante é um dos aspetos inovadores do atual Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Como se diz no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004 que aprova o Código, este «conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio da fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da “exoneração do passivo restante”. O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração das dívidas que não forem integralmente pagas no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste». Trata-se de um desvio à índole essencialmente adjetiva tradicional no nosso direito falimentar. Permite-se ao insolvente que seja pessoa singular, caso não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento mas cumpra as obrigações impostas para a satisfação possível dos credores, cedendo o seu rendimento disponível (artigo 239.º do CIRE), vir a ser exonerado das dívidas remanescentes. A exoneração tem por efeito a extinção dos créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida (com exceções que não importa enumerar), dívidas essas que, de outro modo, seriam exigíveis ao devedor até ao limite do prazo de prescrição.

Afigura-se evidente que o regime se destina, neste aspeto, a proteger o devedor e que a utilidade económica do pedido corresponde, para o requerente, ao passivo de que quer ver-se exonerado, e não ao ativo com que se apresenta à insolvência. Na perspetiva do conjunto dos credores, embora em posição contraposta, é essa a mesma expressão da utilidade do incidente (Para cada um deles será o montante do respetivo crédito que possa a vir a ser declarado extinto).

Ora, o critério do valor do ativo corresponde inteiramente à finalidade precípua do processo de insolvência, que a própria lei define como um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista no plano de insolvência (artigo 1.º do CIRE). A articulação desse valor com a alçada do tribunal e a correspondente irrecorribilidade das decisões que a não superem não colide com a Constituição (Acórdão n.º 348/08). Porém, a aplicação irrestrita desse mesmo critério para efeitos de determinação de recorribilidade das decisões relativas à exoneração do passivo restante conduz a um resultado contrário à própria razão que justifica a irrecorribilidade das decisões proferidas em causas de valor inferior à alçada do tribunal de que se recorre. Assim, um devedor cujo ativo seja superior à alçada e a quem seja indeferida pretensão de “exoneração de passivo restante” poderá recorrer da decisão de indeferimento qualquer que seja o montante desse passivo (embora, na prática, deva ser superior ao ativo porque isso está implícito na situação da insolvência). Porém, um devedor cujo ativo seja inferior à alçada ficará impedido de recorrer de decisão similar, mesmo que pretenda impugnar uma decisão que lhe indefira pretensão de exoneração de passivo superior à alçada do tribunal de 1ª instância. Sujeitos em identidade de situação no que à pretensão material e de tutela jurisdicional respeita recebem tratamento diverso. Isto resulta de, na solução normativa questionada, se abstrair da finalidade especial do incidente, que é distinta da finalidade típica imediata do processo de insolvência, recorrendo-se a um fator estranho à utilidade económica específica do pedido que é objeto dessa decisão. Com esta interpretação, interessados a quem a decisão é tão ou mais desfavorável ficam impedidos de recorrer em função do valor da causa determinado pelo ativo em liquidação, enquanto outros, em idêntica ou menos desfavorável situação, gozarão da faculdade de recorrer perante decisões similares. E essa diferenciação resulta apenas de atribuição de relevância a um fator (o valor do ativo) que é estranho à finalidade legal do incidente.

Assim, a escolha desse fator para determinação do valor do incidente de exoneração do passivo restante, na sua relação com a alçada do tribunal de 1.ª instância e a consequente recorribilidade das decisões nele proferidas, não pode deixar de considerar-se critério arbitrário ou ostensivamente inadmissível, por tratar desigualmente sujeitos em posição idêntica naquilo que pode justificar o acesso ao tribunal superior. Embora do artigo 20.º da CRP não decorra o direito a um 2.º grau de jurisdição em processo civil e não seja constitucionalmente proibida a adoção do valor da causa como critério de determinação da admissibilidade do recurso, é contrário à proibição de arbítrio um critério de determinação do valor para efeitos de relação da causa com a alçada do tribunal que conduza a que sujeitos afetados com a mesma intensidade por decisões judiciais sejam colocados em posição diversa quanto à admissibilidade de impugnação da respetiva decisão desfavorável.

É certo que, no âmbito de cada processo de insolvência, os sujeitos são todos tratados por igual e a todos eles é vedado ou permitido em igualdade de condições interpor recurso em função da alçada. Mas a violação da igualdade que está em causa não atinge a dimensão de igualdade que integra o princípio do “processo equitativo” (a igualdade “interna” de poderes dos concretos sujeitos processuais), mas o tratamento desigual de pessoas em identidade substancial quanto à mesma pretensão de tutela jurisdicional. Tratamento desigual esse que resulta da consideração decisiva de um fator (o valor em função do ativo) sem relação material com a pretensão discutida e, por isso imprestável para suportar a distinção entre devedores insolventes no acesso ao 2.º grau de jurisdição de decisões desfavoráveis quanto à exoneração do passivo restante.

Consequentemente, procede a imputação de violação do princípio da igualdade à solução normativa que constitui objeto do recurso, ficando prejudicado o confronto com os demais parâmetros invocados, designadamente com os instrumentos de direito internacional. […]”.


[MTS]