"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/02/2021

Jurisprudência 2020 (143)


Relação de seguro; 
competência internacional; Reg. 1215/2012


1. O sumário de RE 14/7/2020 (937/19.3T8PTG.E1) é o seguinte:

Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para ação proposta por sujeito domiciliado em Portugal contra companhia de seguros com sede em França e com representação em Portugal, visando a efetivação de responsabilidade civil por danos decorrentes de acidente de viação ocorrido em Espanha.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II – O Objeto do Recurso

Findos os articulados, as partes foram auscultadas sobre a incompetência absoluta do Tribunal por infração das regras de competência internacional. 

Foi proferida decisão absolvendo a R. da instância, julgando verificada a exceção da incompetência absoluta do Tribunal, nela se fazendo apelo ao regime inserto nos arts. 71.º/2, 62.º, 96.º, 97.º/1 do CPC e 7.º/2 do Regulamento CE 1215/2012, de 12 de Dezembro. 

Inconformada, a A apresentou-se a recorrer. Conclui a alegação de recurso nos seguintes termos:

«1º - O tribunal recorrido violou o artigo 62º, alíneas b) e c), do CPC na medida em que não considerou competente internacionalmente para a presente ação o Juízo Local Cível de Portalegre, embora alguns dos factos que integram a causa de pedir complexa tivessem ocorrido em território português, especificamente o dano.

2º - Simultaneamente, o mesmo tribunal violou o artigo 71º, nº 2, do CPC na medida em que este artigo só funciona depois de definida a competência internacional dos tribunais portugueses e supõe que esse lugar se situa em território nacional.

3º - Por outro lado, foram violados o artigo 18º da Convenção de Lugano e o artigo 26º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro na medida em que o juiz não podia conhecer oficiosamente da questão da competência internacional se o réu não levantou essa mesma questão na sua primeira intervenção no processo.

4º - O Tribunal competente para decidir o presente litígio, salvo melhor opinião, são os Tribunais Portugueses.»

A Recorrida apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.

Cumpre apreciar se o Tribunal a quo é competente à luz das regras de competência internacional.

III – Fundamentos

A – Dados a considerar

Os que decorrem do exposto supra e, bem assim, o seguinte:

- a R. constitui uma sociedade de seguros com sede na Rue (…), 79000 Niort França, indicada na p.i. como sendo representada em Portugal pela (…) Portugal;

- a citação da R. teve lugar por carta dirigida à sede de (…) Portugal – Sociedade Reguladora de Sinistros, S.A.;

- a R. apresentou-se a contestar a ação sem arguir a incompetência do Tribunal.

B – O Direito

Temos em mãos uma ação para efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação ocorrido em território espanhol em que foi interveniente um veículo de matrícula francesa segurado na ré. Atento o valor do pedido formulado, a demanda só podia dirigir-se, como se dirigiu, contra a empresa de seguros – cfr. art. 64.º/1, al. a), do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto (estabelece o novo regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel).

A competência internacional encontra-se prevista no artigo 59.º do CPC nos seguintes termos: sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º. Logo, e como não podia de deixar de ser[1], o regime inserto nos regulamentos europeus prevalecem sobre as normas processuais contidas no CPC.

Atentemos, assim, no Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro.

Ora, no caso de ação intentada pelo lesado diretamente contra o segurador, desde que tal ação direta seja possível, aplica-se o disposto nos arts. 10.º, 11.º e 12.º do Regulamento – cfr. art. 13.º/2 do Regulamento.

Considerando o objeto desta concreta ação, conformado pelos sujeitos, pelo pedido e pela causa de pedir, é manifesto que o regime aplicável é o que decorre dos mencionados arts. 10.º, 11.º e 12.º. Desde logo o art. 11.º estabelece o seguinte:

1. O segurador domiciliado no território de um Estado-Membro pode ser demandado:

a) Nos tribunais do Estado-Membro em que tiver domicílio;

b) Noutro Estado-Membro, em caso de ações intentadas pelo tomador de seguro, o segurado ou um beneficiário, no tribunal do lugar em que o requerente tiver o seu domicílio; ou

c) Tratando-se de um cossegurador, no tribunal de um Estado-Membro onde tiver sido intentada ação contra o segurador principal.

2. O segurador que, não tendo domicílio num Estado-Membro, possua sucursal, agência ou qualquer outro estabelecimento num Estado-Membro será considerado, quanto aos litígios relativos à exploração de tal sucursal, agência ou estabelecimento, como tendo domicílio nesse Estado-Membro.

O artigo 12.º, por sua vez, estatui que o segurador pode também ser demandado no tribunal do lugar onde o facto danoso ocorreu quando se trate de um seguro de responsabilidade civil.

Em face do que cabe concluir que, embora a ação pudesse correr termos perante os tribunais espanhóis, certo é que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para apreciar o pedido formulado contra a R.

De todo o modo, sempre os tribunais portugueses seriam competentes por força do disposto no art. 26.º/1 do Regulamento [...], dado que a R. se apresentou a contestar a ação sem invocar a incompetência por infração das regras de competência internacional.

Afirmada que está a competência dos Tribunais portugueses resulta desprovido de utilidade apreciar se o Tribunal de 1.ª Instância podia ou não ter conhecido oficiosamente da incompetência por infração das regras de competência internacional. De todo o modo, decorre do regime inserto nos arts. 96.º e 97.º do CPC que está em causa uma exceção de conhecimento oficioso, o que não é derrogado pelo Regulamento, designadamente pelo citado art. 26.º que, na verdade, consagra uma regra de competência decorrente da conduta processual do demandado.

Termos em que se impõe a revogação da decisão recorrida."

*3. [Comentário] a) A RE decidiu bem.

b) Apenas um comentário. Atento o sumário, podia pensar-se que a circunstância de a Ré ter uma representação em Portugal é essencial para atribuir competência internacional aos tribunais portugueses. A verdade é que não é assim, porque a competência resulta do disposto no art. 11.º, n.º 1, al. b), Reg. 1215/2012.

O sentido do estabelecido no n.º 2 do art. 11.º Reg. 1215/2012 não é o de impor que as acções propostas contra sucursais sejam propostas no EM no qual a mesma se encontre, mas antes o de determinar que a existência de uma sucursal num EM vale, para efeitos de aplicação do próprio art. 11.º Reg. 1215/2012, como domicílio da respectiva sociedade num EM. 

MTS