Reconvenção;
valor da causa*
1. O sumário de RL 14/7/2020 (23074/18.3PRT-A.L1-6) é o seguinte:
I.–Estando em causa a admissibilidade da reconvenção, o juiz, na ocasião do despacho saneador em que deve fixar o valor da causa e simultaneamente decidir da admissibilidade da reconvenção, deverá fixar o primeiro em conformidade com a decisão que produzir quanto à segunda, e não apenas de modo automático, por simples soma do valor do pedido do autor com o do pedido reconvencional.
II.– Só nesta medida se consegue fazer corresponder à utilidade económica dos pedidos a utilidade processual que o legislador entendeu ser a adequada.
III– Numa acção em que é pedida a condenação no pagamento da diferença de preço prometido num contrato promessa de compra e venda e o preço pago na escritura do contrato de compra e venda, negando o réu a existência do crédito do Autor, não é possível admitir o pedido reconvencional ao abrigo da alínea c) do nº 2 do artigo 266º do CPC.
IV– Já porém, na mesma acção, são admissíveis, ao abrigo da al. a) do nº 2 do artigo 266º do CPC, os pedidos reconvencionais relacionados com o incumprimento, por parte dos promitentes vendedores, da transmissão livre de ónus e encargos acordada, não o sendo todavia os pedidos reconvencionais fundados apenas na consciente interposição infundada da acção que causou prejuízos à reputação e bom crédito do réu.
2. O acórdão tem o seguinte voto de vencido:
"Salvo o devido respeito, estamos em total desacordo com a decisão que fez vencimento na parte em que, concedeu parcial provimento ao recurso do despacho de fixação do valor da acção e, revogando-o parcialmente, fixou à acção o valor de €503.300,11.
Entendemos, diversamente, que seria de manter a decisão recorrida no segmento em que fixou o valor da acção, no montante de €739.300,11, correspondente à soma do valor do pedido formulado pelos Autores com o dos pedidos formulados pela Ré em reconvenção.
Senão vejamos,
O artigo 299.º do CPC, dispõe:
“1.- Na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a acção é proposta, excepto quando haja reconvenção ou intervenção principal.2.- O valor do pedido formulado pelo réu ou pelo interveniente só é somado ao valor do pedido formulado pelo autor quando os pedidos sejam distintos, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 530.º3.- O aumento referido no número anterior só produz efeitos quanto aos actos posteriores à reconvenção ou intervenção.4.- […]”
O texto deste normativo reproduz, com a mera actualização da remissão, o anterior artigo 308.º do CPC, na redacção do Dec.-Lei n.º 34/2008, de 26-2, que entrou em vigor em 20/04/2009.
Temos, assim, que o valor da acção determinado em face da petição inicial é sempre ampliado quando haja pedido reconvencional (at.º 266.º, n.º 1) ou de interveniente (art.ºs 314.º e 319.º, n.º 3) que seja distinto do deduzido pelo autor (art.º 299.º, n.º 2), ou, ainda, nos casos em que, na pendência da acção, o autor cumule um novo pedido ao formulado na petição inicial (art.ºs 264.º e 265.º, n.º 2).
A reconvenção dá causa a uma verdadeira cumulação de pedidos, embora recíprocos. Por isso, como refere EURICO LOPES-CARDOSO, in Manual dos Incidentes de Instância em Processo Civil, Livraria Petrony, Lda., pá. 35-36, “(…) em harmonia com o estabelecido em geral para a cumulação de pedidos, já o art.º 313.º do Código de 1939 dispunha que, havendo pedido reconvencional , a causa passaria a ter o valor que resultasse da soma do valor desse pedido com o do formulado pelo autor.”
O Código de 1939 não se referia expressamente aos efeitos da cumulação decorrente de intervenção principal activa relativamente ao valor da causa, mas já então boa parte da doutrina e da jurisprudência defendia que a intervenção principal activa em coligação deveria ter efeitos semelhantes ao da reconvenção, quanto a esse valor (neste sentido, EURICO LOPES-CARDOSO, obra citada, 36-37.
O n.º 2 do anterior artigo 308.º do CPC, na redacção do Dec.-Lei n.º 34/2008, de 26-2, veio preencher essa lacuna, alargando expressamente ao caso de intervenção principal, a regra que era estabelecida para o caso de reconvenção.
Esta foi, aliás, a única alteração introduzida pela reforma operada pelo Dec.-Lei n.º 34/2008, de 26-2, ao regime anterior vigente desde 1939.
Desta sorte e salvo o devido respeito, não podemos concordar com o argumento lapidarmente aduzido no Acórdão do Tribunal de Guimarães, de 08-10-2015 [proferido no Proc.º n.º 1089/14.0TJVNF.G1 e relatado pelo Desembargador José Estelita Mendonça], que serviu de mote à decisão que fez vencimento, de que “a soma do valor dos pedidos não é automática (…). Essa soma do valor só acontecia na redacção do Código de Processo Civil vigente até ao Dec. Lei n.º 34/2008, que entrou em vigor em 20/04/2009 (o então art. 308 n.º 1 e 2 do C. P. Civil), sendo sintomático que os apelantes só invoquem a seu favor jurisprudência anterior a 2009”.
Na verdade, nenhuma alteração ocorreu nesse aspecto na letra da lei e se a alguma alteração se assistiu, a justificar, a vetustez dos acórdãos citados, foi que a questão há muito estabilizou na doutrina e na prática judiciária no sentido por nós defendido, ao contrário do que sucedia no regime processual de pretérito em que foi entendido por alguns autores que, no caso de indeferimento liminar do pedido reconvencional, não funcionava o aumento do valor da causa, por não haver cumulação de pedidos e o aumento de valor só produzir efeito quando aos actos e termos posteriores à defesa do réu [MANUEL AUGUSTO DA GAMA PRAZERES, “Os Incidentes da Instância no Actual Código de Processo Civil”, Braga, 1963, pág. 48].
No caso de reconvenção [e no de intervenção principal], o novo valor da causa fixa-se, automaticamente, pela soma ideal dos dois valores referidos: o dado pelo autor à acção e o dado pelo reconvinte [ou interveniente]. O aumento de valor da causa, por força de pedido reconvencional, ocorre ope legis, não dependendo de decisão que aprecie previamente da admissibilidade do pedido reconvencional.
Basta a simples formulação do novo pedido, independentemente da admissão da reconvenção [ou da intervenção], para que funcione imediatamente a regra do n.º 3 do artigo 299.º, segundo a qual “o aumento do valor” “só produz efeitos quanto aos actos e termos posteriores à reconvenção ou intervenção”.
Esses efeitos, está bom de ver, são os atribuídos pelo n.º 2 do artigo 296.º ao valor processual da causa: “determinação da competência do tribunal”; “forma do processo de execução”; “e relação da causa com a alçada do tribunal”.
O valor processual da causa resultante da soma do pedido reconvencional ou do pedido do interveniente estabiliza-se ainda que esses pedidos venham a ser rejeitados, reduzidos, objecto de desistência ou de improcedência.
Desde que o valor processual da causa, determinado pela soma do valor do pedido formulado pelo autor e do valor do pedido reconvencional formulado pelo réu ou do pedido formulado pelo interveniente, exceda o da alçada do tribunal, é admissível recurso, ainda que aqueles pedidos subsequentes, julgados improcedentes, não estejam em causa e o primeiro não ultrapasse o valor da alçada do tribunal recorrido [ac. do STJ, de 7-6-74, BMJ, n.º 238, pág. 184].
Como refere, SAVALDOR DA COSTA, “Os Incidentes da Instância”, 3.ª Edição, Almedina, pág. 35, e reitera na pág. 36 da 10.ª Edição Revista e Actualizada, a mais recente, “(…) face à letra da lei, não contrariada pelo seu elemento teleológico, a reconvenção e a intervenção principal produzem o efeito de acréscimo logo após a sua formulação, isto é, ele não depende da prolação de decisão da sua admissibilidade.”
Também JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, no Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª Edição, defendem, em anotação (n.º 8) ao artigo 299.º que “São irrelevantes para o valor da acção, apurado nos termos do n.º 1, as vicissitudes posteriores que importem a redução do objecto do processo, a desistência do pedido reconvencional (ac. do STJ, de 22-3-74, BMJ, 235, p. 226) ou transacção sobre a acção inicial com subsistência da intervenção principal (ac. do ST, de 18-11-79… BMJ..403). Deste modo, mantém-se, para os efeitos fixados no art.º 296.º, n.º 2, o valor fixado após a reconvenção ou a intervenção principal”.
Estes os fundamentos por que entendemos, diversamente da decisão que fez vencimento, que seria de manter a decisão recorrida no segmento em que fixou o valor da acção, no montante de €739.300,11, correspondente à soma do valor do pedido formulado pelos Autores com o dos pedidos formulados pela Ré em reconvenção."
*3. [Comentário] a) O que importa resolver é, em termos simples, o seguinte: a alteração do valor da causa que se encontra estabelecida no art. 299.º, n.º 1, CPC depende da mera dedução da reconvenção ou da intervenção principal ou depende da admissibilidade dessa dedução?. Noutros termos: basta a dedução da reconvenção ou da intervenção principal para que o valor da causa se altere ou, para que isto suceda, é necessário que a reconvenção ou a intervenção principal seja admissível?
b) Para responder à pergunta formulada, pode estabelecer-se um paralelismo com a propositura de uma acção: a acção, uma vez proposta, tem um determinado valor e não deixa de o ter pela circunstância de a petição inicial ser liminarmente indeferida pela verificação de uma excepção dilatória insanável ou de o réu vir a ser absolvido na instância com base nesta mesma excepção.
Seguindo esta orientação, basta que a reconvenção ou a intervenção principal seja deduzida para o que o valor do respectivo pedido seja somado, nas condições estabelecidas no art. 299.º, n.º 2, CPC, ao valor inicial da acção.
Parece ser esta a solução mais adequada. O art. 296.º, n.º 1, CPC estabelece que o valor da causa "representa o valor económico do pedido"; logo, o disposto no art. 299.º, n.º 1, CPC significa que a acção passa a ter o valor correspondente à soma do valor do pedido inicial com o valor do pedido reconvencional ou do pedido formulado na intervenção principal, mesmo que a reconvenção ou a intervenção principal seja considerada inadmissível.
Note-se, no entanto, que -- prevenindo talvez uma ilação que não se contém na solução propugnada -- a soma do valor da causa pode ter influência para a determinação do tribunal competente (art. 117.º, n.º 1, al. a), e 3, e 130.º, n.º 1, LOSJ), mas não releva para efeitos de interposição de recurso por cada uma das partes. Se o autor formular um pedido no valor de € 4.000 e o réu deduzir um pedido reconvencional no valor de € 40.000, não é pela circunstância de o valor da acção passar a ser de € 44.000 que qualquer das partes pode interpor recurso até ao STJ da decisão sobre o pedido do autor.
MTS