"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/04/2022

Jurisprudência 2021 (171)


Matéria de facto;
poderes da Relação; poderes do STJ*


1. O sumário de STJ 8/9/2021 (1721/17.4T8VIS-A.C1.S1) é o seguinte:

I. Os poderes oficiosamente concedidos à Relação para alteração da matéria de facto restringem-se, por um lado, aos casos contidos na previsão das normas das alíneas a) a c) do nº 2 do artigo 662º, do Código de Processo Civil, ou seja, os concernentes à renovação dos meios de prova, à produção de novos meios de prova e à anulação da decisão sobre a matéria de facto com vista à correção de determinadas patologias.

E, por outro lado, aos casos contidos na previsão do nº 1 do citado artigo 662º em que a Relação limita-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material, designadamente quando o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova ou tenha considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficientes. 

II. Fora deste contexto normativo, fica a Relação impedida de alterar, oficiosamente, a decisão sobre a matéria de facto, podendo apenas fazê-lo por iniciativa dos recorrentes sobre quem recai, então, o ónus de impugnação nos termos previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil.

III. De harmonia com o disposto no artigo 352º do Código Civil, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.

IV. Cabe ao Supremo Tribunal de Justiça, por força do disposto no artigo 674º, nº 3 do Código de Processo Civil, sindicar a decisão do Tribunal da Relação no tocante a factos que foram dados como provados por este tribunal com base em confissão judicial feita em articulado processual, sem que os mesmos consubstanciassem o reconhecimento de factos desfavoráveis.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3.2. Fundamentação de direito

[...] o objeto do presente recurso prende-se, essencialmente, com as questões de saber se o acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d), ex vi art. 666º, ambos do CPC e se fez uma errada aplicação do art. 46º, al. c), do CPC, na redação do DL nº 329-A/95.

3.2.1. Nulidade do acórdão por excesso de pronúncia

Nesta matéria, sustentam os embargados/recorrentes padecer o acórdão recorrido da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC, aplicável aos acórdãos da Relação por via da norma remissiva do n.º 1 do art.º 666.º do mesmo código, pois, não obstante, em sede de recurso de apelação, terem impugnado apenas a decisão da matéria de facto da 1ª instância sobre os factos dados como provados nos nºs 9, 10 e 18 e sobre os factos dados como não provados nas alíneas a) e c), o Tribunal da Relação reapreciou a factualidade constante das alíneas d), e), f) e g) dos factos não provados, considerando-os provados, sem que os embargantes tenham recorrido da sentença nessa parte e sem que esses factos tenham qualquer conexão ou interdependência com os que delimitam o recurso, pelo que o tribunal recorrido não só extrapolou o âmbito do recurso interposto, como proferiu decisão surpresa, não sujeita ao contraditório.

Que dizer?

Desde logo que, em nosso entender, a situação supra descrita não constitui fundamento de excesso de pronúncia, não se enquadrando, por isso, na nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art. 615º do CPC, aplicável aos acórdãos da Relação por via da norma remissiva do n.º 1 do art.º 666.º do mesmo código.

É que ou os factos em causa encontram-se provados por confissão e, neste caso, o tribunal não poderá deixar de atender aos mesmos, nos termos do disposto no artigo 607.º, n.º 3, e 4, 2.ª parte, aplicável por força da norma remissiva do n.º 2 do artigo 663.º, ambos do CPC ou não se encontram provados e, então, neste caso estamos perante um erro de procedimento consistente na violação do disposto no citado art. 607º, nº 4 e no art. 662º, do CPC.

Vejamos, então, qual é a situação que se verifica no caso dos autos, importando, para tanto, ter em conta que, após reapreciação da decisão matéria de facto relativamente aos nºs 9 e 10 dos factos dados como provados na sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, que manteve, alterando apenas a resposta dada ao ponto 9, o Tribunal da Relação decidiu alterar, oficiosamente, a decisão da matéria de facto quanto às alíneas d), e), f) e g) dos factos não provados, que passaram a integrar, respetivamente, os nºs 19, 20, 21 e 22 dos factos provados, com a seguinte redação:

«19 - O documento referido em 2 e 3 teve como fonte da respectiva obrigação a celebração de um contrato de mútuo entre EE, FF, CC e DD com os exequentes;

20 - Em razão do mencionado em 14, CC propôs ao irmão do exequente que lhe fosse emprestado dinheiro, empréstimo esse ao qual os exequentes também anuíram;

21 - Acertados os detalhes do acordo de mútuo, os documentos referidos em 5, 6 e 7 foram apenas celebrados por razões contabilísticas, por ser a melhor forma de justificar e formalizar o empréstimo nas contas da empresa;

22 - Nunca o exequente quis ser sócio da empresa co-executada ».

E fundamentou esta decisão nos seguintes termos:

«(…). Dispõe o art. 607º, nº 4, 2ª parte, do NCPC, aplicável à decisão da Relação, por força do art. 663º, nº 2, do mesmo código, em conjugação com o art. 662º, nº 1, do mencionado diploma, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos apurados impuserem decisão diversa. Devendo o juiz tomar em consideração os factos provados por confissão escrita.

Ora, os exequentes/embargados no seu articulado de contestação aos embargos disseram (arts. 18º a 41º de tal peça) que a declaração de dívida teve por fonte da respectiva obrigação a celebração de um contrato de mútuo entre EE, a executada FF, e os embargantes CC e DD, com os ora exequentes; o irmão do exequente, JJ, é amigo do embargante CC; sendo que este trabalhava na sociedade co-executada, que, por sua vez, era propriedade dos seus sogros, EE e FF e da mulher, embargante DD, todos eles vivendo exclusivamente dos proveitos obtidos com a actividade dessa sociedade; os exequentes venderam uns terrenos, tendo arrecadado com essa venda para si cerca de 1 milhão de euros, o mesmo ocorrendo com o irmão do exequente; o irmão do ora exequente comentou com o CC a venda que haviam realizado, tendo este proposto ao irmão do ora exequente que lhe fosse emprestado esse dinheiro para investir num empreendimento que ele e a empresa co-executada se propunham construir; comprometeu-se não só devolver o montante assim mutuado em curto prazo, como a pagar-lhe juros pela disponibilização dessa quantia; o irmão do ora exequente dirigiu-se-lhe, perguntando se também estava interessado em fazer esse empréstimo, mediante o pagamento de juros acordado, tendo o ora exequente, mediante o conhecimento que tinha do CC, de quem também era amigo e a confiança que este lhe merecia, anuído em fazer esse empréstimo à empresa e aos restantes membros da família; por razões contabilísticas e para melhor justificar o empréstimo assim contratado nas contas da empresa, celebraram a co-executada e os exequentes o que designaram por “contrato promessa de compra e venda de acções”, e ainda celebraram no mesmo dia o que designaram por “ protocolo para reembolso de suprimentos”, e ainda celebraram, também, já na qualidade de “accionistas”, uma escritura para aumento de capital social da empresa; todos estes negócios foram celebrados pelos ora exequentes, porque assim lhes foi dito pelo seu advogado e pelo CC que seria a melhor forma de formalizar o empréstimo realizado, em benefício da empresa; nunca os ora exequentes quiseram ser sócios da empresa co-executada ou sequer empresários; bem sabendo os embargantes CC e a DD que o que esteve em causa nestas operações foi pura e simplesmente um empréstimo que lhes foi concedido e à empresa co-executada pelo ora exequente; para que o dinheiro que haviam recebido dos terrenos fosse rentabilizado através do recebimento de juros; o exequente quis fazer um empréstimo aos amigos e sua empresa familiar e não tornar-se acionista dessa empresa nem configurar esse empréstimo como suprimento; por esta razão, aceitaram EE, FF, e os embargantes CC e DD assinar o acordo de reconhecimento de dívida que foi junto como título executivo, a título pessoal, de forma livre e espontânea, precisamente porque sabiam que o dinheiro aqui em causa lhes havia sido emprestado a eles próprios e à empresa.

Esta alegação dos exequentes demonstra que afinal a causa de pedir que invocaram – prestação de suprimentos à sociedade – não é verdadeira, pois tratou-se de um empréstimo particular ao embargante e à sociedade para investir num empreendimento destinado a construção civil. Duas diferentes realidades, portanto. Assim, os exequentes, além de alterarem a causa de pedir executiva, acabam por confessar factualidade que, no fim, nada tem a ver com a realidade factual exposta no requerimento inicial executivo e vertida na invocada declaração de dívida.

Trata-se, pois, na economia dos autos, de uma verdadeira confissão – pois os exequentes reconhecem a realidade de factos que os desfavorecem no processo executivo/embargos de executado, e favorecem os embargantes no mesmo processo e embargos, já que a causa de pedir alegada não corresponde, assim, ao invocado no título executivo -, nos termos do art. 352º do CC, que é confissão judicial espontânea escrita, com força probatória plena, ao abrigo dos arts. 355º, 1 e 2, 356º, nº 1, e 358º, nº 1, do CC.

Como assim, a respectiva factualidade essencial tem de ser dada por assente, factualidade essa que está espelhada nas d) a g) dos factos não provados (e que estranhamente o tribunal a quo deu como não provados com a fundamentação que se estava perante uma simulação, com negócio dissimulado, mas sobre o qual era inadmissível prova testemunhal, a coberto do art. 394º, nº 2, do CC…)».

Importa, assim, averiguar se o Tribunal da Relação podia, ou não, alterar, oficiosamente, a decisão da matéria de facto da decisão do Tribunal de 1ª Instância relativamente a pontos de facto não impugnados, o que nos remete para a necessidade de indagar se houve, ou não, um uso indevido pela Relação dos poderes relativos à alteração da matéria de facto, visto que o Supremo Tribunal de Justiça não está impedido de apreciar o uso que a 2.ª Instância fez dos seus poderes naquele campo, nos casos em que está em causa averiguar se houve violação ou errada aplicação da lei processual (cfr. art. 674º, nº 1, al. b) do CPC) e/ou dos preceitos substantivos relativos ao regime probatório (cfr. art. 674º, nº 3 do CPC). [...]

Ora, ressaltando [...] que a Relação alterou oficiosamente a matéria de facto vertida nas alíneas d), e), f) e g) dos factos dados como não provados e resultando da conjugação do disposto no art. 607º, nº 4, 2ª parte, aplicável à decisão da Relação, por força do art. 663º, nº 2, do mesmo código, e no art. 662º, nº 1, todos do CPC, que a Relação pode considerar provados factos com base em confissão escrita, resta decidir se, tal como entendeu o Tribunal da Relação a factualidade alegada pelos exequentes/embargados nos artigos 18 a 41 da sua contestação aos embargos integra, ou não, confissão feita nos articulados.

De harmonia com o disposto no art. 352º do C. Civil, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.

Segundo o art. 355º, nº 1 do mesmo código, a confissão pode ser judicial ou extrajudicial.

A confissão judicial é aquela que é feita em juízo e só vale como judicial na ação correspondente (cfr. nºs 2 e 3 do citado art. 355º) e a confissão extrajudicial é a feita por algum modo diferente da confissão judicial (nº 4 do citado art. 355º).

Estipula o art. 356º, nº 1 do mesmo diploma legal que «a confissão judicial espontânea pode ser feita nos articulados, segundo as prescrições da lei processual ou, em qualquer outro acto do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado», estabelecendo o n.º 1 do art. 357º do C. Civil, que «a declaração confessória deve ser inequívoca, salvo se a lei o dispensar».

Dispõe ainda o art. 360º do C. Civil, que a declaração confessória é indivisível e, como tal, tem de ser aceite na íntegra, salvo provando-se a inexactidão dos factos que transcendem a declaração estritamente confessória.

Quanto à confissão judicial feita nos articulados, ensina Alberto dos Reis [In, “Código de Processo Civil”, Anotado, pág. 86] que a mesma «consiste em o réu reconhecer, na contestação, como verdadeiros, factos afirmados pelo autor na petição inicial, ou em o autor reconhecer, na réplica, como verdadeiros, factos afirmados pelo réu na contestação (…)».

Essencial é que, como se refere no Acórdão do STJ, de 11.11.2010 (processo nº 1902/06.6TBVRL.P1.S1)[...], «o sujeito processual tenha consciência de que o facto desfavorável que alega é real e, mesmo assim, alega-o, nisto se traduzindo o reconhecimento, que é uma «contra se pronunciatio». 

Daqui se retira, que a confissão feita nos articulados e que, nos termos do disposto no art. 358º, nº 1 do C. Civil, vale como modalidade de confissão judicial, não se confunde com a simples alegação de um facto feita pelo mandatário da parte em articulado processual.

Com efeito, [...] «nem todas as alegações de factos pelas partes valem como confissões, como acontecerá, v. g. se o facto for alegado na suposição de estar correcto, vindo a demonstrar-se no julgamento da causa que assim é ou não vindo a confirmar-se».

Mas se é certo, tal como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela [In, “Código Civil”, Anotado, 4ª ed.,  Vol. I, pág. 316], que «as declarações confessórias feitas pelo advogado, oralmente ou por escrito, com simples procuração “ad litem”, não valem como confissão», a verdade é que a exigência de poderes especiais não é necessária quando a confissão de factos é feita nos articulados, quer de forma tácita, resultante do efeito cominatório semi pleno, nos termos do art. 567º, nº 1 do CPC ou do incumprimento do ónus de impugnação especificada, nos termos dos arts. 46º e 574º, quer de forma expressa, nos termos do art.º 465º, n.º 2, todos do CPC.

Subjacente à confissão de factos feita nos articulados pelo mandatário e que vincula a parte está, tal como observa Antunes Varela [In, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 548], a ideia de que, estando o mandatário por via de regra em íntimo contacto com a parte sobre a matéria de facto da ação, ele conhece a realidade desta, tendo assim o seu reconhecimento da realidade de um facto desfavorável ao respetivo constituinte, em princípio, a mesma força de convicção que tem a confissão.

De salientar, por um lado, que é precisamente para prevenir a possibilidade de o mandatário ter compreendido ou apreendido mal as informações feitas nos articulados, bem como a possibilidade de o advogado reconsiderar ou do litigante se aperceber do prejuízo resultante da confissão, que os citados arts. 46º e 465º, nº 2 permitem a neutralização da confissão enquanto a parte contrária não a tiver aceitado especificadamente.

E, por outro lado, que a aceitação do facto confessado pela parte contrária, impeditiva da retirada da confissão ou retratação, tem de ser especificada, o que equivale a dizer, segundo os ensinamentos de Antunes Varela [In, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 555.] e Alberto dos Reis [In, “Código de Processo Civil”, anotado, 4ª ed., Vol. I, pág. 126 e Vol. IV, pág. 113], que a contraparte tem que fazer menção concreta, individualizada, do facto que aceita, não bastando, para esse efeito, aceitação genérica.

Ora, analisando o caso dos autos à luz estas considerações, a verdade é que, contrariamente ao defendido pelo acórdão recorrido, não se vê que se possa extrair do alegado pelos exequentes/embargados nos artigos 18º a 41º da sua contestação qualquer declaração confessória no sentido de que:

«O documento referido em 2 e 3 teve como fonte da respectiva obrigação a celebração de um contrato de mútuo entre EE, FF, CC e DD com os exequentes» (nº 19 dos factos dados como provados);

«Em razão do mencionado em 14, CC propôs ao irmão do exequente que lhe fosse emprestado dinheiro, empréstimo esse ao qual os exequentes também anuiram» (nº 20 dos factos dados como provados);

«Acertados os detalhes do acordo de mútuo, os documentos referidos em 5, 6 e 7 foram apenas celebrados por razões contabilísticas, por ser a melhor forma de justificar e formalizar o empréstimo nas contas da empresa» (nº 21 dos factos dados como provados);

«Nunca o exequente quis ser sócio da empresa co-executada» (nº 22 dos factos dados como provados).

Desde logo, porque não se vislumbra que a factualidade constante dos artigos 18 a 41 da contestação aos embargos consubstancie o reconhecimento, por parte dos exequentes/embargados, de factos que lhes são desfavoráveis e favoráveis aos executados/embargantes, configurando, antes, impugnação motivada [...] dos factos alegados pelos embargantes, ou seja, de que o exequente é acionista da executada José Rodrigues e Filhos, SA; de que a dívida em causa refere-se a suprimentos/empréstimos que o mesmo fez a esta sociedade e de que que assinaram o documento dado à execução - declaração de dívida, datada de 13.12.2010 - sem intenção de assumirem a dívida.

Daí que, ao conferir aos factos alegados pelos exequentes/embargados nos artigos 18º a 41º da sua contestação o valor de confissão feita nos articulados, ao atribuir força probatória plena a essa confissão e ao dar como provados, com base nesta força probatória plena, os factos supra descritos nos nºs 19, 20, 21 e 22, o acórdão recorrido tenha violado o disposto nos arts. 352º, 356º, 357º, nº 1e 358º, nº 1, todos do C. Civil e arts 46º, 465º, nº 2 e 574º nº 2, todos do CPC, pois, conforme se demonstrou, estes factos não podem ser dados como provados com base numa confissão que não existe.

Vale tudo isto por dizer ter o Tribunal da Relação exercido os poderes de modificabilidade da decisão de facto fora do domínio de aplicação dos arts. 640º e 662º do CPC, e, desse modo, violado a lei processual que estabelece os pressupostos e os fundamentos em que se deve mover a reapreciação da prova.

Fez-se, claramente, no acórdão recorrido um mau uso dos poderes conferidos pelo citado art. 662º, na medida em que não podia a Relação proceder, oficiosamente, à alteração das respostas negativas dadas pelo Tribunal de 1.ª instância à factualidade vertida nas alíneas d), e), f) e g) dos factos dados como não provados e responder afirmativamente e esta mesma factualidade.

Nesta conformidade e porque estamos perante uma violação da lei de processo sujeita à censura deste Supremo Tribunal, impõe-se, na revogação do decidido, eliminar as respostas afirmativas dadas no acórdão recorrido à sobredita factualidade, descrita nos nºs 19, 20, 21 e 22, mantendo-se as respostas negativas dada pelo Tribunal de 1ª instância à factualidade constante das alíneas d), e), f) e g) dos factos dados como não provados."


*3. [Comentário] a) O decidido no acórdão merece uma reflexão atenta.

A questão fundamental que o acórdão coloca é a de saber se da contestação das exequentes aos embargos deduzidos pelos executados decorrem factos desfavoráveis àqueles exequentes.

A RC entendeu que sim, com o fundamento de que da referida contestação resulta uma causa da obrigação exequenda diferente daquela que foi invocada no requerimento executivo. O STJ entendeu que não, invocando que a contestação dos exequentes contém uma "impugnação motivada [...] dos factos alegados pelos embargantes".

Não parece que assim tenha sucedido. Segundo se pode compreender, a execução foi baseada numa "Declaração de Dívida" resultante do incumprimento de um designado "Protocolo de Reembolso de Suprimentos". No relatório do acórdão, lê-se o seguinte:

"1. Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que AA e BB instauraram contra CC, DD e outros, com base no documento particular intitulado declaração de dívida e no qual estes assumem ser devedores, pessoal e solidariamente com a sociedade José Rodrigues e Filhos, Lda, da quantia da quantia de € 762.800 decorrente de dívida resultante do incumprimento do designado Protocolo de Reembolso de Suprimentos, vieram os executados CC e DD, deduzir os presentes embargos.

Alegaram, para tanto e em síntese, que o exequente é acionista da executada José Rodrigues e Filhos, SA e que a dívida em causa refere-se a suprimentos/empréstimos que o mesmo fez a esta sociedade, não podendo, por isso, pedir à referida sociedade, nos termos e circunstâncias em que o fez, o pagamento de tais suprimentos e muito menos pode exigir aos embargantes o seu pagamento.

Mais alegaram que a declaração de dívida foi redigida a pedido insistente do exequente e que jamais quiseram vincular-se pessoalmente ao pagamento de tais suprimentos, tendo assinado aquela declaração de dívida a pedido do seu falecido pai e sogro, EE, e porque o exequente garantiu ser apenas uma “pró-forma”.

2. Contestaram os exequentes, alegando, em suma, que a declaração de dívida que serve de fundamento à presente execução foi livremente assinada pelos executados ora embargantes, correspondendo à sua vontade expressa naquele documento, e teve por fonte da respetiva obrigação um contrato de mútuo que celebraram com o EE, a executada FF e os embargantes CC e DD, por forma a possibilitar que o executado CC e a sociedade co-executada realizassem o empreendimento que se propunham construir.

Por razões contabilísticas e para melhor justificar o empréstimo assim contratado nas contas da sociedade co-executada, celebraram com esta o designado “contrato promessa de compra e venda de ações” e o denominado “protocolo para reembolso de suprimentos”, e, já na qualidade de “acionistas”, celebraram uma escritura para aumento de capital social da empresa.

Celebraram todos estes negócios apenas porque foi-lhes dito pelo seu advogado e pelo CC que esta era a melhor forma de formalizar o empréstimo realizado, em benefício da sociedade co-executada, sendo que nunca quiseram ser sócios desta sociedade."

A RC entendeu que os exequentes confessaram que a dívida era pessoal dos executados. O STJ entende que a contestação dos exequentes é uma "impugnação motivada" dos fundamentos dos embargos deduzidos pelos executados. Salvo melhor opinião, nenhuma das orientações merece ser acolhida:

-- Os executados afirmam que não são pessoalmente responsáveis pela dívida; os exequentes alegam que o mútuo foi prestado a título pessoal a esses executados; não se vislumbra aqui nenhuma confissão dos exequentes;

-- Para que a contestação dos exequentes contivesse uma "impugnação motivada", seria necessário que eles tivessem aceitado a versão dos embargantes e tivessem dado uma diferente qualificação jurídica a essa versão; ora, o que os exequentes fazem é precisamente o contrário.

b) No mais, dado que, no recurso de apelação, os executados não impugnaram a matéria de facto dada como não provada em 1.ª instância, a decisão do STJ não merece censura.

MTS