"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/04/2022

Jurisprudência 2021 (179)


Convenção de arbitragem;
incompetência absoluta*


1. O sumário de STJ 23/1/2021 (175/17.0TNLSB.L1.S1) é o seguinte:

I. A convenção de arbitragem é o acordo das partes em submeter a resolução de um ou mais litígios determinados ou determináveis a arbitragem, excluindo, desse modo, a competência dos tribunais estaduais.

II. A convenção de arbitragem transnacional não se confunde com a competência internacional dos tribunais portugueses, que se traduz na competência dos tribunais portugueses para conhecer de situações que, apesar de possuírem, na perspetiva do ordenamento português uma relação com ordens jurídicas estrangeiras, apresentam igualmente uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa, nem com a competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses que ocorre quando a ordem jurídica portuguesa não admite a privação de competência por pacto de jurisdição nem reconhece decisões proferidas por tribunais estrangeiros que se tenham considerado competentes.

III. A preterição do tribunal arbitral por força de uma cláusula compromissória determina a incompetência absoluta do tribunal judicial, nos termos do artigo 96º, alínea b) do Código de Processo Civil.

IV. Comparando a delimitação dos casos de incompetência absoluta definidos na alínea a) e na alínea b) do artigo 96º, do Código de Processo Civil, impõe-se concluir que o regime especial de recorribilidade a que aludem os artigos 629, nº 2 alínea a) e 671º, nº 3, parte inicial, do Código de Processo Civil reporta-se única e exclusivamente ao casos de violação das regras de competência em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia, não sendo de aplicar quando esteja em discussão a preterição de tribunal arbitral prevista na alínea b) do citado artigo 96º.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"8. Em 04.06.2021, pela relatora foi proferido despacho que, tendo em conta que o regime especial de recorribilidade a que aludem os referidos artigos 629, nº 2 al. a) e 671º nº 2, alínea a), e nº 3, parte inicial reporta-se única e exclusivamente aos casos de violação das regras de competência em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional, não sendo de aplicar quando esteja em discussão a preterição de tribunal arbitral a que alude a al. b) do citado art. 96º e com vista a assegurar o princípio do contraditório estabelecido no art. 3º, nº 3 do CPC, determinou a notificação da recorrente para, querendo, pronunciar-se sobre esta questão no prazo de 10 dias.

9. Exercendo o contraditório, veio a autora sustentar inexistir dupla conforme, uma vez que o Tribunal da Relação pronunciou-se sobre a questão da nulidade da convenção arbitral por violação da competência exclusiva dos tribunais portugueses e o Tribunal Marítimo de Lisboa não chegou a abordar esta questão, persistindo na defesa de que, por estar em causa a violação das regras de competência internacional e material consagradas no art. 7º, nº 1, da Lei nº 35/86, de 4 de setembro, será sempre admissível recurso nos termos do disposto no art. 629º, nº 2, al. a) e no art. 671º, nº 3, parte inicial, ambos do CPC.

Mais argumenta que, mesmo que assim não se entenda, sempre seria de admitir, por convolação, o recurso como sendo de revista, a título excecional, nos termos do art. 672º, nº 1, als. a) e b), do CPC, por estarmos perante questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, se mostra necessária para uma melhor aplicação do direito e em que estão em causa interesses de particular relevância social.

10. A ré/recorrida respondeu, pugnando pela inadmissibilidade do recurso de revista interposto pela autora, argumentando, no essencial, que tendo a autora optado pela interposição de recurso de revista nos termos gerais, sem ter interposto, ainda que subsidiariamente, recurso de revista, a título excecional, e sem ter indicado e concretizado, nas respetivas alegações, alguma das razões que, nos termos do nº 2 do art. 672º, se revelam imprescindíveis para admissibilidade da revista excecional, impossível se torna a convolação do recurso de revista “normal” para revista “excecional”.

11. Em 25.06.2021, foi proferido, pela ora relatora, o despacho de não admissão do recurso de revista, que aqui se transcreve:

«(…) II. Conforme já se deixou dito, a presente revista vem interposta do Acórdão da Relação de Lisboa que, julgou improcedente a apelação interposta pela autora e confirmou a decisão da 1ª instância que julgou procedente a invocada exceção dilatória da incompetência absoluta do tribunal por preterição de tribunal arbitral e, consequentemente, declarou o Tribunal Marítimo de Lisboa incompetente para julgar a presente causa, absolvendo a ré da instância.

Do confronto entre a fundamentação fáctico-jurídica do julgado em 1ª Instância e a assumida no acórdão recorrido resulta claramente que ambas são essencialmente idênticas, na medida em que tiveram em conta o mesmo quadro factual e julgaram procedente a invocada exceção de preterição do tribunal arbitral com base nas mesmas normas jurídicas.

Estamos, assim, perante uma situação de dupla conformidade que, nos termos do disposto n.º 3 do artigo 671.º do CPC, obsta à interposição do recurso de revista.

Invoca, porém, a recorrente como fundamento do recurso de revista o disposto no artigo 629º, nº 2, al. a) e no artigo 671º nº 2, alínea a), e nº 3, parte inicial, ambos do Código de Processo Civil, por, no seu entender, a decisão que julgou procedente a exceção de preterição do tribunal arbitral, consubstancia violação das regras de competência absoluta do tribunal, integrando, por isso, um dos casos em que é sempre admissível recurso.

Ora, a este respeito, cumpre referir que, se é certo que, desde o advento do Código de Processo Civil de 2013, a preterição do tribunal arbitral por força de cláusula compromissória convencionada, é determinante da incompetência absoluta do tribunal judicial, nos termos do disposto no art. 96º, al. b) do CPC, a verdade é que, tendo em conta a delimitação dos casos de incompetência absoluta definidos na alínea a) do citado art. 96º, facilmente se conclui que o regime especial de recorribilidade a que aludem os referidos artigos 629, nº 2 al. a) e 671, nº 2, al. a) reporta-se única e exclusivamente aos casos de violação das regras de competência em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia e das de competência internacional, não sendo de aplicar quando esteja em discussão a preterição de tribunal arbitral a que alude a al. b) do citado art. 96º [Neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed., Almedina, pág.47 e Paulo Pimenta, in, “Processo Civil Declarativo, 2ª ed. pág. 138, nota 302.].

Isto porque, tal como escreve Abrantes Geraldes [In, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed., Almedina, pág.47], com a ressalva feita no art. 629º, nº 2 al. a), do CPC, «o legislador pretendeu acautelar a observância das regras de competência absoluta inerente à nacionalidade, matéria e hierarquia (art. 96º, al. a)), relevando o interesse público inerente ao facto de o Estado Português poder exercer a jurisdição, de o litígio se inscrever na ordem jurisdicional dos tribunais judiciais e de, dentro destes, ser respeitada a competência em razão da hierarquia e da matéria», razões que, como é bom de ver, não se colocam relativamente aos tribunal arbitrais, que encontram fundamento no princípio da autonomia privada e da liberdade contratual.

Daí que nesta linha de entendimento, por nós já seguida nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.11.2018 (processo nº 22574/16.4T8LSB.L1.S1) e de 23.04.2020 (processo nº 1556/187T8PVZ.P1.S1)[---], seja também de concluir pela inadmissibilidade do recurso de revista com base neste fundamento, que, por isso, se rejeita, ao abrigo do disposto no art. 641º, nº 2, al. a), do CPC.

***

III. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, não se admite o recurso de revista interposto.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.».

12. Vem, agora, a recorrente, reclamar deste despacho para a conferência, ao abrigo do disposto no art. 652º, nº 3 do CPC, pugnando pela admissibilidade do recurso de revista interposto e remetendo para a argumentação por ela tecida e supra descrita nos pontos 7 e 9.

13. A recorrida respondeu, pugnando pela manutenção do despacho reclamado.

14. Cumpre, pois, apreciar e decidir.

***

II - Do mérito da reclamação

[...] Sobre a epígrafe “Competência internacional”, dispõe o citado art. 7º, no seu nº 1, que «Não é válido, em questões de direito marítimo internacional, o pacto destinado a privar de jurisdição os tribunais portugueses, quando a estes for de atribuir tal jurisdição por força do disposto no artigo 65.º [Correspondente ao atual artigo 62º, do CPC.] do Código de Processo Civil».

Ora, a este respeito, importa, desde logo, referir que não se pode confundir “pactos de jurisdição” com “pactos de arbitragem”, pois são realidades bem diversas.

O pacto de jurisdição é o acordo das partes sobre a jurisdição nacional competente.

«Tem um efeito atributivo, quando fundamenta a competência dos tribunais de um Estado que não seriam competentes por aplicação dos critérios de competência legal. Tem um efeito privativo de competência, quando suprime a competência dos tribunais de um Estado que seriam competentes por aplicação dos critérios de competência legal».

Diferentemente, «a convenção de arbitragem é o acordo das partes em submeter a resolução de um ou mais litígios determinados ou determináveis a arbitragem».«Tem um efeito positivo – fundamentar a competência do tribunal arbitral – e um efeito negativo – excluir a competência dos tribunais estaduais » [Cfr. Luís de Lima Pinheiro, in “Temas de Direito Marítimo – III. Pactos de Jurisdição e Convenções de Arbitragem em matéria de Transporte Marítimo de Mercadorias”, https://portal.oa.pt/upl/{67540703-e86b-4bd8-8e74-81c02f60f0f6}].

De sublinhar que, contrariamente ao sustentado pela recorrente, o artigo 1º, nº1 da Lei nº 63/2011, de 14.12 (LAV) apenas exclui do objeto da arbitragem os litígios submetidos, exclusivamente, por lei especial a tribunal judicial[---] , o que não acontece no caso dos autos.

Daí ser de concluir que a convenção de arbitragem transnacional nada tem a ver com a competência internacional dos tribunais portugueses, que, como é consabido, traduz-se «na competência dos tribunais da ordem jurídica portuguesa para conhecer de situações que, apesar de possuírem, na perspetiva do ordenamento português uma relação com ordens jurídicas estrangeiras, apresentam igualmente uma conexão relevante com a (…) portuguesa» [Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, Lx, 1997, 2ª ed., págs. 108 e 109] e que pode ser afastada por um pacto de jurisdição e não obsta ao reconhecimento de decisões proferidas por tribunais estrangeiros.

E muito menos se confunde com a competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses que, no dizer de Luís de Lima Pinheiro, ocorre «quando a ordem jurídica portuguesa não admite a privação de competência por pacto de jurisdição nem reconhece decisões proferidas por tribunais estrangeiros que se tenham considerado competentes» [Cfr. Acórdãos do STJ, de 08.11.2018 (processo nº 22574/16.4T8LSB.L1.S1), de 30.04.2020 (processo nº 7459/16.2T8LSBA.L1.S1) e de 22.04.2021 (processo nº 2654/19.5T8LSB.L1.S1), todos acessíveis in www.dgsi/stj.pt.].

Mas sendo assim, como é de facto, evidente se torna, tal como se afirmou no despacho reclamado, que, não obstante a preterição do tribunal arbitral por força de cláusula compromissória convencionada, ser determinante da incompetência absoluta do tribunal judicial, nos termos do disposto no art. 96º, al. b) do CPC, a verdade é que ela não se inclui nos casos de incompetência absoluta definidos na alínea a) do citado art. 96º, ou seja, nos casos de violação das regras de competência em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia, não estando, por isso, abrangida pelo regime especial de recorribilidade a que aludem os referidos artigos 629, nº 2 al. a) e 671º, nº 3, parte inicial.

De resto, é neste sentido que se vem afirmando a mais recente jurisprudência deste Supremo Tribunal [Cfr. Acórdãos do STJ, de 08.11.2018 (processo nº 22574/16.4T8LSB.L1.S1), de 30.04.2020 (processo nº 7459/16.2T8LSBA.L1.S1) e de 22.04.2021 (processo nº 2654/19.5T8LSB.L1.S1), todos acessíveis in www.dgsi/stj.pt].

Daí que, seguindo esta linha de entendimento e corroborando toda a fundamentação do despacho reclamado, seja de concluir pela inadmissibilidade do recurso de revista interposto."

*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se acompanha a orientação do acórdão.

A convenção arbitral retira competência material aos tribunais judiciais para apreciarem a questão. Logo, a apreciação sobre se o tribunal competente é o tribunal judicial ou arbitral é uma apreciação sobre a competência em função da matéria e, por isso, subsumível ao disposto no art. 629.º, n.º 2, al. a), CPC.

Também não é feliz a afirmação de que "a convenção de arbitragem transnacional nada tem a ver com a competência internacional dos tribunais portugueses". Se, através de uma convenção arbitral, os tribunais portugueses deixam de possuir uma competência internacional que, noutras circunstâncias, possuiriam, não é certamente impossível dizer que essa convenção vale simultaneamente como pacto de jurisdição.

MTS