"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/04/2022

Jurisprudência 2021 (186)


Acção directa;
iura novit curia; decisão-surpresa


1. O sumário de RG 16/9/2021 (2789/21.4T8VNF.G1) é o seguinte:

I- Ao taparem as janelas e a superfície vidrada da marquise dos requerentes, encostando-lhes na vertical umas chapas metálicas opacas, que tapam por completo os vidros e as janelas da marquise, os requeridos agem em ação direta, porém, sem estarem reunidos os requisitos para tal (art. 336º CC).

II- Apesar de, no seu articulado de oposição, os requeridos não terem invocado esse instituto jurídico, isso não significa que o Tribunal não possa decidir o litígio com esse fundamento, pois da leitura da referida oposição resulta que o que moveu os requeridos foi justamente reagir contra a construção da marquise pelos requerentes, que consideraram violadora dos seus direitos. Só que deviam tê-lo feito por recurso aos Tribunal, e não tapando a marquise com chapas, por sua livre iniciativa.

III- Não faz qualquer sentido, nestas circunstâncias, invocar que o recurso pelo Tribunal ao instituto da ação direta ilegal constitui uma decisão surpresa, que violou o princípio do contraditório.

IV- A regra da proibição das decisões surpresa tem de ser conjugada com a regra iura novit curia, sendo que só no concreto, caso a caso, será possível decidir qual deve prevalecer.


2. No relatório e na fundamentação escreveu-se o seguinte:

"I- Relatório

R. F. e L. A. intentaram procedimento cautelar comum contra V. N. e A. C. peticionando o decretamento da seguinte providência: «Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exª. doutamente suprirá, deve o presente procedimento cautelar ser julgado procedente e provado e, em consequência, ser determinada a imediata remoção das chapas metálicas colocadas pelos Requeridos a cobrir toda a face exterior da marquise dos Requerentes, notificando-se aqueles para procederem à remoção de todas essas chapas no prazo de cinco dias, com as demais cominações legais, designadamente, a eventual incorrência na prática do crime de desobediência qualificada, tudo com as demais consequências legais». [...]

Foi proferida decisão final, que julgou o procedimento cautelar totalmente procedente, e determinou que os requeridos V. N. e A. C., no prazo 5 (cinco) dias, procedam à remoção das chapas metálicas referidas em 16) e que se encontram encostadas à marquise descrita em 10) e erigida no logradouro da fracção dos requerentes R. F. e L. A. [...]

IV

[...] a sentença recorrida analisa o direito dos requerentes cuja violação poderia estar em causa, dizendo que poderíamos estar perante a constituição de uma servidão de vistas (ou inominada) por usucapião, que imporia aos requeridos o terem de respeitar um afastamento de 1,50 metros (art.º 1362.º do CC). Mas logo a seguir reconhece que tal pressuporia o decurso de uma situação possessória com, pelo menos, 15 anos de existência, o que no caso, não se verifica, visto que a situação descrita data, no máximo, do ano de 2011.

Mas em vez de considerar a pretensão cautelar improcedente, a sentença considerou que “a conduta dos requeridos, ainda assim, corresponde ao exercício ilícito de acção directa (art. 336º CC), na medida em que a reposição da legalidade da situação apenas poderá ser obtida por via judicial, dado que a acção directa apenas é justificada «com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo”. E assim concedeu a providência peticionada.

Os recorrentes não se conformam porque, essencialmente, dizem que foram confrontados com uma decisão-surpresa, porque o Tribunal, oficiosamente, conheceu questões que não foram invocadas pelas partes, sem, contudo, ter dado a possibilidade das mesmas se pronunciarem, violando flagrantemente o princípio do contraditório, previsto no artigo 3º,3 CPC.

Porém, a nosso ver, não lhes assiste qualquer razão.

O que dispõe o art. 3º, 3 CPC é o seguinte:

3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

Mas em estreita conjugação com esta norma devemos ter presente a do art. 5º, 3 do mesmo Código:

3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

Comentando o regime legal, escrevem Abrantes Geraldes e outros (Código de Processo Civil anotado) que “ao princípio do contraditório subjaz a ideia de que repugnam ao nosso sistema processual civil decisões tomadas à revelia de algum dos interessados, regra que apenas sofre desvios quando outros interesses se sobreponham. (…) A liberdade de aplicação das regras do direito (art. 5º,3) ou a oficiosidade no conhecimento de determinadas excepções, sem outras condicionantes, potenciariam decisões que, em divergência com as posições jurídicas assumidas pelas partes, constituiriam verdadeiras decisões-surpresa (STJ 17-6-14, 233/2000). A regra do nº 3 pretende impedir que a coberto desse princípio, as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objecto de qualquer discussão. (…) A audição das partes apenas pode ser dispensada em casos de manifesta desnecessidade (conceito indeterminado que deve ser encarado sob uma perspectiva objectiva), quando se trate de indeferimento de nulidades (art. 201º e sempre que as partes não possam, objectivamente e de boa-fé, alegar o desconhecimento das questões de direito ou de facto a decidir ou as respectivas consequências). (…) Na formulação do nº 3 foram adoptados conceitos indeterminados ou cláusulas gerais cuja maleabilidade permite assegurar a instrumentalidade do processo face ao direito substantivo sem, no entanto, dispensar critérios rigorosos e convincentes relativamente à sua delimitação a partir da análise ou resolução de casos concretos. Cabe ao Juiz um papel fundamental na compatibilização dos diversos interesses que no processo se interligam (STJ) 19-5-16, 6473/03”.

Esta última referência é, quanto a nós, a mais importante.

Quer dizer, no fundo que a necessidade ou desnecessidade de cumprimento do contraditório quando está em causa a aplicação de regras de direito, só pode ser aferida casuisticamente, perante as circunstâncias do litígio em concreto.

E, em concreto, não vemos nada que permita dizer que mal andou o Tribunal recorrido em ter fundamentado a decisão no instituto da acção directa ilegal. [...]

Desde logo, todos os factos necessários para a decisão foram alegados pelas partes e são os que resultaram provados. O Tribunal não andou a inventar factos novos, não introduziu na matéria de facto algum facto que as partes não tivessem atempadamente alegado.

Só por aqui já sai enfraquecida a tese da decisão-surpresa. [...]

Para ter uma noção nítida do efeito e do significado das referidas chapas nada melhor do que olhar para as fotografias que os requerentes juntaram aos autos. É um daqueles casos em que uma imagem diz mais que mil palavras. E torna-se certeira a afirmação constante da sentença recorrida, segundo a qual “a atitude dos requeridos, consistente na tapagem das janelas e toda a superfície envidraçada da marquise, com a consequente subtracção de ar e luz àquele espaço e, por inerência, ao interior da habitação, atesta contornos de inequívoca retorsão (fruto de desentendimento entre as partes com repercussões criminais) e, como tal, o exercício do direito de tapagem que, eventualmente, poderiam invocar (art.º 1356.º do CC), pelo modo como foi levado a cabo, sempre seria violador dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito, por ser evidentemente ofensivo da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante, considerando a desproporção grave entre a vantagem obtida com a colocação daquelas chapas e o sacrifício imposto aos requerentes (art.º 334.º do CC)”. [...]

Da leitura do requerimento inicial apenas emerge a afirmação de que, repetindo, “a conduta dos requeridos restringe a possibilidade de fruição pelos Requerentes, na sua plenitude, do aconchego e conforto da sua habitação, e retira ao seu lar as normais condições de conforto, bem-estar e salubridade. A manutenção da situação actualmente existente, de vedação da luz e arejamento que eram propiciados pela marquise dos Requerentes e pelas janelas aí existentes causa uma lesão grave e dificilmente reparável à fruição plena do direito de propriedade dos mesmos”.

Assim sendo, é inteiramente legítima a abordagem que a sentença recorrida fez ao problema, da perspectiva da acção directa que atingiu o direito de propriedade dos requerentes.

Escreve o M.mo Juíz a quo: “no entanto, apesar de não se poder afirmar a constituição de uma servidão predial de vistas ou inominada, certo é que a conduta praticada pelos requeridos, consistente na colocação de chapas metálicas contra a marquise dos requeridos, tapando as janelas lá existentes e cobrindo a totalidade da superfície vidrada, ainda assim corresponde ao exercício ilícito de acção directa (art.º 336.º do CC), na medida em que a reposição da legalidade da situação apenas poderá ser obtida por via judicial, dado que a acção directa apenas é justificada «com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo».  [...]

Mas vejamos o que significa a acção directa.

Artigo 336º
Acção directa

1. É lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo.
2. A acção directa pode consistir na apropriação, destruição ou deterioração de uma coisa, na eliminação da resistência irregularmente oposta ao exercício do direito, ou noutro acto análogo.
3. A acção directa não é lícita, quando sacrifique interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar.

É óbvio que nunca poderia a conduta dos requeridos ser coberta por este instituto jurídico, pois sempre faleceria o requisito da impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais. Ou seja, se os requeridos/recorrentes entendiam que algum direito seu estava a ser violado pela construção da marquise, o que tinham de fazer era intentar uma acção (ou procedimento cautelar) com vista a fazer valer o seu direito. Nunca poderiam era fazer o que fizeram, com as supra-referidas chapas a vedar a marquise dos requerentes.

Aqui chegados, vejamos qual a tese oferecida pelos requeridos na oposição à providência. Da leitura dessa peça processual apenas retiramos de útil os artigos 16º, 42º, 43º e 44º.

No primeiro pode ler-se: “Pelo que, constitui um verdadeiro abuso de direito por parte dos requerentes, usurparem uma área comum entre eles e os requeridos e depois exigir um qualquer direito sobre a mesma”.

No segundo pode ler-se: “Logo, por não se tratarem [sic] de janelas, o direito dos requerentes de manter estas aberturas não impede que os requeridos, proprietários do prédio vizinho, possam construir a todo o tempo no seu prédio ainda que vede tais aberturas”.

No terceiro: “Relativamente as chapas metálicas dos requeridos, instaladas no interior do seu logradouro, trata-se de uma estrutura amovível que está localizada a metro e meio das janelas do prédio dos requerentes”.

E no quarto: “E, ainda que as aberturas existentes na marquise dos requerentes sejam consideradas pelo Tribunal como sendo janelas, e seja reconhecida a servidão de vistas – o que não se concebe –, sempre se dirá que tal instituto aplicar-se-á apenas às referidas aberturas e não sobre toda a marquise, o que, também, inviabiliza o pedido dos requerentes”.

Quem ler com atenção estes artigos da oposição dos requeridos percebe com nitidez que eles, apesar de não invocarem nem uma vez a expressão “acção directa”, demonstram que foi isso mesmo que os moveu: repare-se que os requeridos argumentam longamente contra a construção da marquise pelos requerentes, avançam argumentos no sentido de que tal construção foi ilegal, dizendo que aqueles usurparam uma área comum entre eles e os requeridos, que agiram em abuso de direito, e -o mais revelador de todos os argumentos-, afirmam que nada os impede de construir a todo o tempo no seu prédio, ainda que vedando as aberturas da marquise dos requerentes.

E, registe-se que os requeridos não avançam nenhuma razão concreta, do seu interesse próprio, para terem colocado aquelas chapas no sítio onde colocaram, que não seja a resposta pura e simples à atitude dos requerentes de construção da marquise. Se isto não é a invocação da acção directa, embora sem citar o art. 336º CC, não sabemos o que é. O direito dos requerentes que terá sido posto em causa foi o seu direito de propriedade, e não uma qualquer servidão, de vistas ou outra qualquer. Daí que bem andou o Tribunal recorrido quando considerou que os requeridos actuaram exclusivamente para responder a um acto dos requerentes que consideraram violador dos seus direitos, quando o que deveriam ter feito era recorrer aos meios coercivos normais, leia-se, os Tribunais. Em vez disso quiseram “fazer justiça pelas próprias mãos”, o que tinha de levar, incontornavelmente, à decisão recorrida. [...]

E assim, não assiste qualquer razão aos recorrentes quando vêm dizer que: “a ausência do contraditório, no tocante ao instituto da acção directa, acarretou num grande prejuízo aos recorrentes, que ficaram impossibilitados de arguir teses e, por conseguinte, da alegação prévia e análise dessa alegação pelo Tribunal a quo”; que “estas teses seriam formuladas numa série de quesitos que, por força do agir inesperado do Julgador a quo, ao proferir uma “decisão surpresa”, ficaram sem respostas”; ou ainda quando afirmam, “out of the blue”, que “a interpretação conferida pelo Tribunal a quo, ao disposto no artigo 1356.º do CC, relativamente à colocação das chapas metálicas opacas no logradouro, é inconstitucional por violar o princípio da igualdade e o direito de propriedade, consagrados, respectivamente, nos artigo 13.º e 62.º, ambos da CRP, uma vez que atribuiu-se uma qualificação jurídica diferente para a conduta dos recorridos”.

Na realidade, como demonstrámos, os requeridos/recorrentes não fizeram outra coisa na sua oposição que não seja invocar que agiram em defesa dos seus direitos que consideraram ofendidos pelos requerentes, sem todavia mencionar uma única vez o art. 336º CC.
Pelo que não podem, de todo, vir invocar a existência de decisão-surpresa.

Para terminar, diga-se que é irrelevante como argumento para contrariar a decisão recorrida, o facto provado sob o nº 20: “Entre a porta e janelas existentes na fachada do edifício [referidas em 6)] e as chapas indicadas em 16) dista, pelo menos, 1,50 metros”.

Não é por isso que a providência foi decretada.

A providência foi decretada porque o Tribunal concluiu, e bem, que existia uma probabilidade séria da existência do direito de propriedade dos requerentes nos termos supra descritos, e porque ficou claramente provado que tal direito foi directamente ofendido pela acção dos requeridos, que têm vindo a impedir os requerentes de receberem luz natural e de beneficiarem de arejamento, com a inerente deterioração do conforto habitacional e do bem-estar físico dos requentes e das crianças que compõem o seu agregado familiar, danos esses já em curso e que se agravariam, quiçá irremediavelmente, caso tivéssemos que aguardar pelo decurso e desfecho da acção principal.

Assim, a única solução legalmente admissível é a colocação dos prédios na situação que estavam antes dos requeridos se terem arrogado o poder de fazer justiça pelas suas mãos, e aguardar a decisão definitiva do litígio na acção judicial competente."

[MTS]