O conhecimento das questões a resolver, delimitadas pelas alegações, importa em apreciar e decidir se existe contradição entre o acórdão recorrido e os dois acórdãos identificados como fundamento pela recorrente relativamente à questão de saber se para conhecer da má-fé e abuso de direito do credor, que admitem ao garante não pagar a garantia autónoma on first demand, é admissível outra prova que não a documental e relativamente à questão de decidir se é legalmente admissível a resolução extrajudicial do contrato com base na alteração anormal das circunstancias do art. 437 do CC.
Por outro lado, é prévio ao conhecimento destas questões de decidir se o recurso é admissível e, na afirmativa, se existe a contradição sinalizada pela recorrente entre o acórdão recorrido e os que apresenta como fundamento.
Apreciando a questão da admissibilidade do recurso, lembra-se que proferido acórdão numa apelação no âmbito de uma providência cautelar, nos termos do art. 370 nº 2 do CPC, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça excepto quando se verifique uma das situações previstas nas alíneas a) a d) do nº 2 do art. 629º, do CPC, em que o recurso é sempre admissível, ou seja, quando estejam em causa violação das regras de competência absoluta, ofensa de caso julgado, decisão respeitante ao valor da causa, com o fundamento de que o mesmo excede a alçada do tribunal recorrido, decisão proferida contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e contradição de julgados. Por esta razão, invocada na presente revista pela recorrente a oposição de julgados é a mesma admissível.
A recorrida opõe à admissão do recurso que a matéria objecto do mesmo exorbita o que é possível conhecer-se no âmbito das providências cautelares, porque “o núcleo fundamental do recurso não se coloca em relação a qualquer circunstância ou pressuposto de natureza cautelar, centrando-se, pelo contrário, na questão de mérito, deixa, consequentemente, de se visar uma solução cautelar provisória para, na prática, se pretender uma decisão definitiva sobre a questão substantiva de mérito.”
Apreciando esta observação, tendo a recorrente alegado a oposição de julgados como fundamento da revista quanto ao que entende dever ser a prova admissível da “fraude ou abuso de direito” do beneficiário no acionamento da garantia (com irrelevância que à prova testemunhal deve caber), e quanto à admissibilidade da resolução contratual por alteração das circunstâncias, mediante comunicação extrajudicial dirigida à contraparte, julgamos que ambos os segmentos recursivos importam, em tese, ao conhecimento do que é pressuposto na providência cautelar, designadamente no domínio em que a decisão recorrida situou essas matérias, ou seja, na apreciação e conhecimento da existência da titularidade de um direito ou de um interesse legalmente protegido que é requisito do procedimento cautelar intentado.
Neste mesmo sentido já se decidiu neste STJ que o garante não pode ignorar “uma ordem judicial que determine o não pagamento da garantia, ainda que proferida no âmbito da justiça cautelar. O que implica que, verificada aquela condição ou desrespeitada esta ordem, o garante possa correr o risco de não conseguir reaver o que pagou.
Estando em causa uma garantia autónoma e à primeira solicitação, é no âmbito do processo cautelar que há-de ser devidamente considerada a sua autonomia relativamente ao contrato subjacente, de forma a evitar que, através de uma decisão baseada em prova de primeira aparência e respeitante a esse contrato, se altere a natureza da garantia prestada. - STJ 21/4/2010 no proc. 458/09.2YFLSB (relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza) in dgsi.pt. Ou seja, para o que aqui nos interessa, na providência cautelar pode discutir-se e decretar-se uma ordem judicial que determine a abstenção de pagar uma garantia, mesmo que esta seja on first demand, devendo obviamente acautelar-se a natureza própria desta garantia e o particular regime do seu accionamento.
Decidindo-se que não obsta à admissibilidade da revista o que a recorrida lhe opõe, adverte-se, no entanto, que o conhecimento do recurso se debruça exclusivamente sobre as questões que se dizem ter tido resposta contraditória nos acórdãos indicados como fundamento, desde que tal oposição exista.
Analisando a existência da contradição de julgados que admite a revista especial do art. 629 al. d) do CPC, como é jurisprudência constante do STJ, a contradição jurisprudencial imprescindível implica que, cumulativamente se verifique:
- o não cabimento de recurso ordinário impugnativo do acórdão recorrido por motivo alheio à alçada do tribunal;
- a existência de, pelo menos, dois acórdãos em efetiva oposição, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito fundamental, tendo por objeto idêntico núcleo factual, ali versados;
- a anterioridade do acórdão-fundamento, já transitado em julgado;
- a não abrangência da questão fundamental de direito por jurisprudência anteriormente uniformizada pelo STJ.
Acresce ainda como importante que a contradição de julgados que releva como condição da admissibilidade do recurso de revista é a oposição frontal sobre a mesma questão fundamental de direito, no sentido de que as decisões em confronto tenham convocado um quadro normativo ou regras de conteúdo e alcance substancialmente idênticos e tenham subjacente um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspectiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas.
A identidade exigível, como sublinha Abrantes Geraldes – in Recursos em processo civil , 6ª edição p. 74 – tem de se “situar “entre a questão de direito apreciada no acórdão da relação que é objecto de recurso e no outro aresto (acórdão da Relação ou do Supremo que sirva de contraposto), não bastando que neles se tenha abordado o mesmo instituto jurídico, tal pressupõe que os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica sejam coincidentes , isto é que a subsunção jurídica feita em qualquer das decisões tenha operado sobre o mesmo núcleo factual, sem se atribuir relevo a elementos de natureza acessória”. Por isso a contradição “deve ser frontal e não apenas implícita ou pressuposta, a questão de direito deve apresentar-se com essencial para o resultado que foi alcançado em ambos os acórdãos sendo irrelevante a divergência que respeitar apenas a alguns argumentos sem valor decisivo ou em torno de meros obiter dicta.”
Analisando agora o objecto das contradições apontadas, de acordo com estas exigências de requisitos, são duas as questões relativamente às quais a recorrente sustenta haver oposição entre o acórdão recorrido e outros que identifica como fundamento.
No primeiro momento refere que, para considerar abusivo o chamamento da garantia bancária on first demand e considerar legítima a recusa do banco em pagá-la, o Tribunal a quo não se bastou com a mera comunicação de resolução do contrato pela Modarte, tendo para o efeito apreciado prova testemunhal e, com base nela, dado por provados factos que entendeu levarem à conclusão de que estavam verificados, no caso concreto, os pressupostos da alteração anormal das circunstâncias.
Por sua vez o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21 de Fevereiro de 2013, Proc. 863/12.7TVLSB-A.L1-2, quanto a saber se a prova da “fraude” ou de “abuso de direito” do beneficiário no accionamento do exercício da garantia se coaduna com a produção de provas suplementares, nomeadamente a prova testemunhal para estabelecer a fraude ou o abuso do beneficiário, entendeu que a prova da “fraude” ou de “abuso de direito” do beneficiário no accionamento do exercício da garantia não se coaduna com a produção de provas suplementares, nomeadamente a prova testemunhal. [...]
Não só com base n[...]a matéria provada, bem assim como na restante igualmente fixada como assente (designadamente a referente à pandemia e proibição de abertura dos estabelecimentos), veio a decisão recorrida a julgar preenchidos os requisitos da alteração anormal das circunstâncias que nos termos do art. 437 do CC admitem a resolução do contrato por parte da recorrida com esse fundamento, considerando legalmente admissível essa resolução extrajudicial.
Decorre desta breve exposição que a prova que o tribunal recorrido aditou como provada a destinou, juntamente com outra, à apreciação da eventual existência de alteração anormal das circunstâncias em que as partes tinham celebrado o contrato para daí extrair a legalidade da resolução e não para se pronunciar relativamente à prova da “fraude” ou de “abuso de direito” do beneficiário no accionamento do exercício da garantia.
Como se escreveu na decisão recorrida, não é “possível apreciar a questão fulcral deste processo, ou seja, a existência de um comportamento abusivo, por parte da Beneficiária da garantia bancária, sem avaliar da existência dos pressupostos da resolução por alteração anormal das circunstâncias. (…).
Na verdade, se chegarmos à conclusão de que foi lícita a resolução do contrato de arrendamento, nos termos do disposto no art.º 437.º do Código Civil, então a Requerente nada deve à Requerida e, por conseguinte, a exigência do pagamento da garantia bancária é inequivocamente abusiva.”
Cremos ser correcto distinguir, como se distinguiu, o momento da análise e decisão, mesmo no juízo de aparência que nas providências cautelares é possível realizar, quanto à existência de alteração anormal das circunstâncias, daquele outro, posterior e no qual, aceite e decidida essa alteração e a admissibilidade da resolução, esta se apresente como oponível ao garante em termos de o acionamento da garantia ser considerado abusivo.
Com esta explicação concluímos que, no acórdão recorrido, não se configurou como admissível outra prova que não a líquida e inequívoca para demonstrar a existência de fraude manifesta e abuso de direito ou má-fé patente por parte do credor, prova essa que como se refere no acórdão fundamento só poderia ser documental. O que se referiu e decidiu (no acórdão recorrido), diferentemente, foi que se impunha em primeiro lugar na providência cautelar averiguar a existência de alteração anormal das circunstâncias, nos termos do art. 437 do CC, para decidir se a resolução extrajudicial era válida e só depois, perante esse juízo de validade e legalidade, concluir que, nessa conformidade, essa resolução é oponível ao garante como evidência da má fé por parte do credor. Isto é, a prova inequívoca, que o acórdão recorrido não desmentiu nem desautorizou como necessária, situou-a na existência válida de resolução extrajudicial.
Como o configuramos, com esta distinção, não existe contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento neste primeiro segmento suscitado quanto à exigência probatória. Na decisão recorrida, repete-se, a prova fixada, quer a que tem origem documental quer a testemunhal, é mobilizada para a questão de apreciar e decidir a alteração anormal das circunstâncias. Ao invés, no acórdão fundamento não se discute a validade da resolução do contrato em geral, nem por alteração anormal das circunstâncias em especial, antes se problematiza a alegação de, tendo sido prestada a garantia no âmbito de um contrato de agência, e sido accionada “a garantia bancária”, existir ou não abuso manifesto de direito, dada a existência de créditos e contra créditos recíprocos, bem como a novação da dívida (garantida). E o essencial da decisão proferida foi de não se ter provado o contrato/acordo novatório que se dizia existir como obstáculo ao accionamento da garantia, por não se ter feito prova segura e líquida da conclusão de tal acordo não bastando testemunhas a referir que o tinha sido.
Em resumo, o acórdão fundamento, versando sobre a possibilidade de o garante recusar a soma objecto da garantia em caso de “fraude” ou de “abuso de direito” do beneficiário apenas em face de prova líquida ou inequívoca que permita a percepção imediata e segura, sem necessidade de outras provas ou ouvir terceiros, para estabelecer a fraude ou o abuso do beneficiário, pronunciou-se no sentido de a alegação de um contrato/acordo com essa finalidade não ter sido julgado provado na sua existência por inexistência de uma prova manifesta e documental.
Na decisão recorrida, admitindo-se como se admitiu na providência cautelar a apreciação de alteração anormal das circunstâncias nos termos do art. 437 do CC (e não estando esta questão concreta suscitada no recurso porque a contradição de decisões suscitada pela recorrente a ela não reporta), é o resultado dessa análise e consequente decisão, a admissão e legalidade da resolução extrajudicial efectivada, que constituirá a prova de que existe fraude, abuso ou má-fé do beneficiário que pode obstar ao accionamento da garantia.
Por estas razões se entende não existir contradição de acórdãos entre o recorrido e do TRL de 21 de Fevereiro de 2013, Proc. 863/12.7TVLSB-A.L1-2, por não verificar nos termos sobreditos oposição sobre a mesma questão fundamental de direito, no sentido de as decisões em confronto terem convocado um quadro normativo ou regras de conteúdo e alcance substancialmente idênticos e terem subjacente um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspectiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas."
[MTS]