"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/04/2022

Jurisprudência 2021 (182)


Depoimento de parte;
admissibilidade

1. O sumário de RL 16/9/2021 (13245/19.0 T8SNT-B.L1-8) é o seguinte: 

- Os pressupostos da admissibilidade do depoimento de parte do representante de pessoa colectiva devem ser aferidos em relação à própria parte, e não ao seu representante.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A factualidade com relevo para o conhecimento do objeto do presente recurso é a constante do relatório que antecede.

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo apelante e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do NCPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do NCPC).

Assim, a questão a decidir é a da (in)admissibilidade do depoimento de parte.

O depoimento de parte constitui o meio de prova através do qual se pretende fundamentalmente a obtenção de confissão judicial, mediante reconhecimento pelo depoente da realidade de um facto que lhe é desfavorável e é favorável à parte contrária (cfr. artigo 352º, n.º 1 e seguintes do Código Civil),

Nos termos do disposto no artº 453º, n.º 2 do CPC pode requerer-se o depoimento de parte de representantes de pessoas coletivas, o qual apenas revestirá o valor de confissão nos precisos termos em que aquele possa obrigar a sua representada – corolário do princípio geral estatuído no n.º 1 do artigo 353º do Código Civil, segundo o qual “a confissão só é eficaz, quando feita por pessoa com capacidade e poder para dispor do direito a que o facto confessado se refira”.

E nos termos do estabelecido no n.º 1 do art.º 163.º do CC, a representação de pessoa coletiva em juízo “cabe a quem os estatutos determinarem ou, na falta de disposição estatutária, à administração ou a quem por ela for designado”.

Não se pode concordar com o fundamento sufragado pelo tribunal recorrido de que o presidente do Conselho de Administração do banco embargado, atenta a dimensão deste, nada saberá quanto à “questão particular dos autos”.

O embargante alegou factos que integram o preenchimento abusivo da livrança dada à execução, a inexistência de título, a prescrição da livrança, o pagamento de prestações do contrato de mútuo que lhe subjaz e a consequente redução do montante da dívida, o incorreto cálculo dos juros. Muitos desses factos, sobre os quais requereu que recaísse o depoimento de parte do embargado, e de acordo com a alegação, foram praticados pelo embargado, pelo que se impõe concluir que é de admitir tal meio de prova, cabendo ao representante da parte inteirar-se sobre os mesmos, a fim de prestar o requerido depoimento.

Não se verifica qualquer circunstância que permita concluir que o depoimento de parte do representante do embargado se traduzirá em ato inútil, em virtude da dimensão do banco embargado, sublinhando-se que este nem sequer deduziu oposição. Subjacente ao despacho recorrido encontra-se o fundamento de os factos objeto do meio de prova requerido não serem pessoais nem do conhecimento do representante da parte.

Nos termos do disposto no artº 454, nº 1 do CPC “o depoimento só pode ter por objeto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento.”

No entanto, “a memória que possibilita a confissão é a da própria sociedade, devidamente representada” [José Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, pag.124, nota 38], e não a da pessoa singular que a representa.

“Mas, quem verdadeiramente presta o depoimento é a própria parte, pelo que os factos pessoais que relevam são aqueles de que a própria parte tem conhecimento ou de que deva ter conhecimento. (…)

Mas, na aferição do requisito “facto pessoal” deve ter-se presente que este se refere à própria parte e não ao seu representante legal. (…)

E não se diga que o requerido depoimento de parte é um acto inútil pelo facto do actual Presidente do Conselho de Administração não ter conhecimento pessoal dos factos. É que quem verdadeiramente presta o depoimento é a própria parte, sobre factos que são do conhecimento pessoal desta e de que o Presidente do Conselho de Administração tem obrigação de conhecer.

Por outro lado, temos de convir que o Presidente do Conselho de Administração é a pessoa a quem, em princípio, compete representar a empresa que dirige, perante terceiros, não se vendo razão para que o não faça perante os tribunais, quando tal lhe é pedido pelo Tribunal. Ademais, quando se trata de depor sobre matéria de que a empresa que dirige tem conhecimento directo e pessoal e de que ele próprio também tem obrigação de conhecer.” [Ac. da Relação de Lisboa, de 10/01/2007, disponível in www.dgsi.pt].

“A sociedade financeira, quiçá a anónima, como as grandes sociedades prestadoras de serviços em massa à generalidade dos consumidores, não pode esconder-se, para evitar a prestação de depoimento de parte, de informações ou de esclarecimentos, na imensidão da sua estrutura complexa e difusa, muito menos pretextar o desconhecimento concreto dos negócios que com ela se concluem, modificam ou extinguem. À acutilância com que propõe e vende os seus serviços deve justamente corresponder proporcional capacidade e eficácia para sobre eles e sua dinâmica se pronunciar em tribunal por ocasião dos respectivos litígios.

Partiu o tribunal recorrido do pressuposto, porventura tendo em mente a forma societária da autora, a sua dimensão e ramo de actividade, que se não vislumbra qualquer intervenção directa dos seus representantes nos factos sobre que foi pedido o seu depoimento, daí concluindo que os mesmos não são do seu conhecimento pessoal.

Ora, tal pressuposto não está demonstrado, nem sequer foi sugerido pela própria apelada que nenhuma oposição deduziu, nem parece poder sequer presumir-se. Mal estaria a sociedade, se os negócios com ela concluídos, modificados ou extintos não fossem do conhecimento das pessoas que integram os seus órgãos administrativos ou, pelo menos, daquelas que, mesmo não fazendo parte deles, a representam e decidem sobre a sua aceitação e termos.” [Ac. Relação de Guimarães de 15/12/2016, disponível em www.dgsi.pt].

O direito à prova, constitucionalmente consagrado enquanto expressão do direito de acesso à justiça (artº 20º da Constituição da República Portuguesa), não é um direito absoluto, admitindo compressão. Todavia, a recusa de qualquer meio de prova deve ser fundamentada na lei ou em princípio jurídico.

No caso sub judice, a lei prevê expressamente o depoimento de parte de pessoas coletivas. Mostram-se reunidos os pressupostos da sua admissibilidade, os quais devem ser aferidos em relação à própria parte, e não ao seu representante, pelo que é de admitir o depoimento de parte do banco embargado, a prestar pela pessoa que para tal tenha poderes, nos termos do disposto no artº 163º do CC.

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, devendo, em 1ª instância, ser substituída por outra que admita o depoimento de parte do representante do embargado e ordene a sua prestação à matéria respetiva, a aferir em função do requerido pelo embargante."

[MTS]