Obrigação de indemnização;
indemnização em dinheiro; reconstituição natural*
1. O sumário de RG 13/7/2021 (169/19.0T8AVV.G1) é o seguinte:
Se o efeito prático-jurídico pretendido pelos autores é obter a reconstrução do muro que foi derrubado pela ré, é lícito ao Tribunal a quo convolar o pedido deduzido, para o decretamento do efeito jurídico que para a situação discutida era adequado.
2. No relatório e na fundamentação do acórdão consta o seguinte:
"I. Relatório.
J. C. e I. R. intentaram contra X – Operações sobre Imóveis, Lda. a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, no Juízo Local Cível de Arcos de Valdevez, Comarca de Viana do Castelo, pedindo a condenação daquela a pagar-lhes a quantia de 14.000,00 €, a título de indemnização, acrescidos dos juros moratórios calculados à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento. [...]
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“III. DECISÃO.
Pelo exposto, na procedência parcial da acção, este Tribunal decide:- Condenar a R. X – Operações sobre Imóveis, Lda. a reconstruir o muro referido no ponto 5 do elenco de factos provados, com as características descritas no ponto 19 do mesmo elenco, fixando-se para o efeito o prazo de quarenta dias;- Absolver a R. X – Operações sobre Imóveis, Lda. do mais peticionado.Custas por AA. e R. na proporção do respectivo decaimento, fixando-se em 30% a responsabilidade dos primeiros e em 70% a da segunda – artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, e 607.º, n.º 6, ambos do CPC.Registe e notifique.”. [...]
IV. Do objecto do recurso.
1.4. Do direito.
No que respeita à excepção de prescrição invocada, a sua procedência (bem como do recurso, com esse fundamento) dependeria da alteração da matéria de facto, que como vimos não se verificou.
Vejamos agora a segunda questão suscitada.
Entende a apelante que face à forma como a presente acção foi configurada e ao pedido nela formulado, o Tribunal recorrido só poderia condenar no pagamento de quantia certa (por ser essa a natureza da obrigação peticionada), e já não condenar a ré no cumprimento de obrigação de prestação de facto, daí que se imponha a sua revogação na parte em que condenou a ré a reconstruir o muro referido no ponto 5 do elenco de factos provados, com as características descritas no ponto 19 do mesmo elenco, fixando para o efeito o prazo de quarenta dias.
Como se afirma no já acima citado Ac. desta Relação de Guimarães, de 29/04/2021, disponível in www.dgsi.pt: “através do pedido (cfr. artigo 3.º n.º 1 do CPC) as partes “circunscrevem o thema decidendum, isto é, indicam a providência requerida, não tendo o juiz que cuidar de saber se perante a real situação conviria, ou não, providência diversa. Trata-se de uma esfera em que domina o princípio do dispositivo, o qual, em termos paralelos, também vigora em sede da sustentação fáctica da pretensão. Em ambos os casos prevalece a estratégia assumida pelo autor, sem que nela se deva imiscuir o juiz. Consequentemente, a sentença deve inserir-se no âmbito do pedido (e da causa de pedir), não podendo o juiz condenar (ou fazer a apreciação que corresponder ao tipo de ação em causa) em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir” (v. Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Filipe Pires de Sousa, ob. cit., página 728).
Contudo, como salientam estes Autores (ob. cit. páginas 728 a 730), a prática judiciária revelou situações cuja resolução implicou alguma atenuação da rigidez desta regra tendo-se admitido, designadamente, a reconfiguração jurídica do específico efeito peticionado pelo autor considerando-se ser lícito ao tribunal atribuir ao autor, por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter, tendo-se em atenção que essa será por vezes, a única forma de resolver o litígio de forma definitiva.
Conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/04/2016 (Proc. n.º 842/10.9TBPNF.P2.S1, Relator Conselheiro Lopes do Rego, disponível em www.dgsi.pt): “1. O que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado. 2. Assim, é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efectivamente, na sua estratégia processual, curou de formular”.
Tem vindo ainda a ser entendido que a interpretação do pedido não deve cingir-se aos estritos dizeres da formulação do petitório, devendo antes ser conjugada com o sentido e alcance resultantes dos fundamentos da pretensão.
De facto, vem sendo defendida a necessidade de interpretar o princípio do dispositivo em moldes mais flexíveis que, sem violação dos limites expressos no artigo 609º, permita de forma definitiva solucionar o litígio entre as partes, quando o decidido se contenha ainda assim no âmbito da pretensão formulada.
Como se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/02/2015 (Proc. n.º 607/06.2TBCNT.C1.S1 Relator Conselheiro Abrantes Geraldes disponível em www.dgsi.pt) “(…) também o art. 609º, nº 1, carece de um esforço interpretativo, contando, além do mais, com os contributos de diversos Assentos e Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência do STJ.
Entre tais arestos, destaca-se o Assento nº 4/95, in D.R. de 17-5, ao admitir que numa acção em que seja deduzida uma pretensão fundada num contrato cuja nulidade seja oficiosamente decretada o réu seja condenado a restituir o que tenha recebido no âmbito desse contrato, por aplicação do art. 289º do CC, desde que do processo constem os factos suficientes.
A conjugação entre o princípio do dispositivo e os limites do pedido encontra também largo desenvolvimento na fundamentação do ACUJ nº 13/96, in D.R., I Série, de 26-11, ainda que no caso se tenha vedado ao tribunal a actualização oficiosa da quantia peticionada.
Outro importante elemento auxiliar da interpretação emerge do ACUJ nº 3/01, in D.R., I Série-A, de 9-2, que firmou a jurisprudência segundo a qual numa acção de impugnação pauliana em que tenha sido erradamente formulado o pedido de declaração de nulidade ou de anulação do acto jurídico impugnado o juiz deve corrigir oficiosamente esse erro e declarar a ineficácia que emerge do direito substantivo. (…)
Na integração do caso não podem ainda descurar-se os objectivos apontados pelas sucessivas reformas processuais, designadamente quando delas emerge a sobreposição de aspectos de ordem material a outros de ordem formal, ou a necessidade de atribuir ao processo a necessária eficácia que permita alcançar uma efectiva e célere resolução de litígios.
Importa ponderar também o que emana da doutrina que, fazendo coro com os referidos objectivos, aponta para a flexibilização do princípio do pedido, como é defendido por Miguel Mesquita, em anotação a um aresto sobre direitos reais, na RLJ, ano 143º, págs. 134 e segs. intitulada precisamente “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno CPC”.
Assim, se é verdade que a sentença deve inserir-se no âmbito do pedido, não podendo o juiz condenar (rectius apreciar) nem em quantidade superior, nem em objecto diverso do que se pedir, tal não dispensa um esforço suplementar que permita apreender realmente o âmbito objectivo do pedido que foi formulado na presente acção (…) Tomando de empréstimo as palavras de Miguel Mesquita na mencionada anotação em torno da necessidade de compreender o princípio do dispositivo de um modo mais flexível, ajustado à realidade social e aos avanços que se têm sentido também no processo civil, se acaso a Relação tivesse adoptado a mesma “postura rígida e inflexível relativamente ao pedido, bem ao estilo oitocentista”, acabaria por absolver os RR. do pedido, “decisão que seria, sem dúvida alguma, do imediato agrado dos RR., mas que redundaria numa vitória de Pirro” (pág. 147).
Ora, como refere o mesmo autor, “o interesse público da boa administração da justiça nem sempre coincide com os interesses egoístas das partes, fazendo, pois, todo o sentido, num processo moderno, a intervenção do juiz destinada a alcançar a efectividade das sentenças” (pág. 150). Desiderato que, com muita razoabilidade e bom senso, foi conseguido pela Relação quando, reconhecendo para o muro uma situação de compropriedade, concluiu que se deveria pôr um esclarecedor ponto final no conflito”.
No caso dos autos, os autores pediram a condenação da ré no pagamento da quantia de 14.000,00 €, a título de indemnização, acrescidos dos juros moratórios calculados à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Tal quantia corresponde ao que alegaram ser o preço devido pela reconstrução do muro que a ré derrubou, e que, apesar de se comprometer a reconstruir, não o fez.
O tribunal a quo veio a julgar a acção parcialmente procedente e condenou a ré a reconstruir o muro referido no ponto 5 do elenco de factos provados, com as características descritas no ponto 19 do mesmo elenco, fixando-se para o efeito o prazo de quarenta dias
A ré apelante entende, como se disse já que, o Tribunal recorrido só poderia condenar no pagamento de quantia certa (por ser essa a natureza da obrigação peticionada), e já não condenar a ré no cumprimento de obrigação de prestação de facto.
Como referimos já, importa interpretar o princípio do dispositivo em moldes flexíveis para que, sem violação dos limites expressos no artigo 609º do CPC, permita de forma definitiva solucionar-se o litígio entre as partes, quando o decidido se contenha ainda assim no âmbito da pretensão formulada.
Ora, o que caracteriza a pretensão do autor (enquanto elemento individualizador da acção), não é a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico (é que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – cfr. artigo 5º n.º 3 do CPC), mas antes o efeito prático-jurídico por ele pretendido.
Por outro lado, como se afirma no Ac. do STJ de 31.05.2016 (processo 741/03.0TBMMN.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt), citado na decisão apelada, onde também se faz apelo à doutrina escrita sobre o assunto (Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 10.ª edição, reelaborada, Almedina, 2006, págs. 772 e 773; Pereira Coelho, in Obrigações, Sumários das Lições ao Curso de 1966/67, Coimbra, 1967, pág. 174):
“Efetivamente, configurando-se a restauração natural como princípio primário da indemnização, ditada no interesse de ambas as partes, e a indemnização por equivalente como o modo imperfeito da reparação, tendo o autor pedido na ação o sucedâneo da indemnização pecuniária, pode o tribunal condenar, em temos de reposição natural, sem que tal importe a violação do princípio do pedido…O objetivo da indemnização que o autor solicita na acção, sob a formulação de um pedido de expressão pecuniária, consiste em pôr “a cargo do lesante a prática de certos actos, cuja finalidade comum é criar uma situação…que se aproxime o mais possível daquela outra situação…em que o lesado provavelmente estaria, de acordo com a sucessão normal dos factos, no momento em que é julgada a ação de responsabilidade, se não tivesse tido lugar o facto que lhe deu causa”.
Assim sendo, entendemos que é lícito ao tribunal, partindo dos factos alegados pelas partes e julgados provados, alterar a qualificação jurídica, e convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado e, procedendo a “uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido” atribuir ao autor o bem jurídico que ele pretendia obter (cfr. Ac. RG acima citado).
Ora, no caso dos autos, o efeito prático-jurídico pretendido pelos autores é obter a reconstrução do muro que foi derrubado pela ré, razão pela qual entendemos que o Tribunal a quo licitamente convolou o pedido deduzido, para o decretamento do efeito jurídico que para a situação discutida era adequado.
É que, a condenação da ré a reconstruir o muro por si derrubado, reconstitui a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, na terminologia do artigo 562º, do Código Civil, sem constituir, concomitantemente, causa de enriquecimento ilícito dos lesados à custa do devedor que, dentro dos limites da expressão monetária do pedido, logrará repor o «status quo ante», cumprindo o objectivo da lei, que concede preferência à indemnização específica.
Improcede, pois, a apelação.
*3. [Comentário] Não se discorda da solução tomada no acórdão, mas, salvo o devido respeito, discorda-se totalmente do iter decisório.
A RG tece bastantes considerações sobre a vinculação do tribunal ao pedido formulado pelos Autores, mas, com a devida consideração, tudo isso era irrelevante. Com efeito, afirma-se no relatório do acórdão o seguinte:
"Regularmente citada para o efeito, veio a ré contestar a acção alegando, por um lado, que o crédito indemnizatório reclamado prescreveu à luz do disposto no 498.º, n.º 1, do Código Civil, e, por outro, que, em virtude da consagração do princípio da reconstituição natural como forma de cumprimento da obrigação de indemnização, sempre poderia opor aos autores o direito de reparar o muro, reconstituindo a situação anterior à lesão, pois que a indemnização em dinheiro tem carácter subsidiário."
Nesta base, não era necessário discorrer sobre o princípio dispositivo e sobre a convolação do pedido dos Autores. Em conjugação com o disposto no art. 566.º, n.º 1, CC (aliás, não citado no acórdão), bastava ter dado a devida relevância à referida defesa da Ré. Se assim tivesse sucedido, não seria nada problemática a condenação da Ré na reconstituição do muro.
MTS