Falta de citação;
contraditório; decisão-surpresa
I. O sumário de RE 14/7/2021 (2334/12.2TBPTM-B.E1) é o seguinte:
1 - O desrespeito do princípio do contraditório, quando ele deva ser observado, constitui uma nulidade processual prevista no artigo 195.º do CPC, pois trata-se de omissão de uma formalidade que a lei prescreve destinada a evitar decisões-surpresa.
2 - Nos termos do artigo 201.º do CPC, a arguição de qualquer nulidade pode ser indeferida, mas não pode ser deferida sem prévia audiência da parte contrária, salvo caso de manifesta desnecessidade.
3 - A arguição da falta de citação da executada e, subsidiariamente, da nulidade da sua citação, não pode considerar-se como integrando «um caso em que a audição da parte contrária é manifestamente desnecessária» até por força das consequências da sua procedência numa fase do processo em que o imóvel penhorado já se encontra vendido porquanto a procedência da arguição de falta de citação implica a nulidade de tudo o que se processe depois da petição inicial (leia-se requerimento executivo), nos termos do disposto no artigo 187.º, alínea a), do CPC e a procedência da arguição da nulidade da citação por preterição de formalidades prescritas na lei pode implicar, também, a ineficácia de todo o processado posterior à petição inicial se a falta puder prejudicar a defesa do citado.
4 – A decisão que julga procedente a arguição da falta de citação da executada sem prévia audição da exequente, constitui, por conseguinte, uma decisão-surpresa, e, nessa medida, é uma decisão nula por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC), porquanto, através dela, o tribunal pronuncia-se sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes interessadas sobre a matéria.
5 – Pelo que a parte interessada deve reagir através da interposição de recurso fundamentado na nulidade da própria decisão.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"II.5. Apreciação do objeto do recurso
No presente recurso está em causa o despacho proferido pelo tribunal de primeira instância que julgou procedente a arguição de falta de citação da executada e, consequentemente, determinou a anulação de todos os atos praticados subsequentemente à «citação inválida» (sic).
O apelante defende que a decisão violou o artigo 3.º, n.º 3, do CPC, pois que o tribunal decidiu sem lhe conceder o contraditório, o que lhe teria permitido fazer prova de que o alegado pela executada não correspondia à verdade, consubstanciando tal decisão também uma violação do princípio da igualdade das partes plasmado no artigo 4.º do mesmo diploma legal, para concluir que o tribunal de segunda instância deve considerar a executada regularmente citada ou, caso assim não se entenda, revogar o despacho recorrido, concedendo ao apelante o direito à prévia audiência, nos termos do disposto no artigo 201.º do CPC.
O artigo 3.º, n.º 3, do CPC dispõe que «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».
Explicam Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3.ª edição, Almedina, p. 7, que o referido preceito legal consagra o princípio do contraditório, na vertente proibitiva da decisão-surpresa, acrescentando: «não se trata já apenas de, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão e de, oferecida uma prova por uma parte, ter a parte contrária o direito de se pronunciar sobre a sua admissão ou de controlar a sua produção. Este direito de fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão».
As partes devem, assim, ter sempre a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões a decidir pelo juiz, salvos os casos de «manifesta desnecessidade», isto é, quando se trata de questões cuja decisão não tem, em si mesma, qualquer repercussão sobre a instância, não sendo relevante para a decisão do litígio ou questões que, pela sua natureza não compreenda o contraditório prévio, como é o caso de decisões de mero expediente ou a decisão liminar do juiz convidando o autor a aperfeiçoar a petição inicial [Paulo Ramos/Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma, 2014, 2.ª Edição, Almedina, p. 31].
«Em qualquer circunstância, a dispensa de audiência prévia por “manifesta desnecessidade” é excecional: o seu uso deve ser parcimonioso; na dúvida, deve o tribunal ouvir antes de decidir» [Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, Almedina, p. 41].
O desrespeito do princípio do contraditório, quando ele deva ser observado, constitui uma nulidade processual prevista no artigo 195.º do CPC, pois trata-se de omissão de uma formalidade que a lei prescreve destinada a evitar decisões-surpresa.
Anselmo de Castro [Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 109] ensinava que, no que deva entender por “irregularidade suscetível de influir no exame (instrução e discussão) ou na decisão da causa”, «não restam quaisquer dúvidas de que a fórmula legal abrange todas as irregularidades ou desvios ao formalismo processual que atinjam o próprio contraditório» e que, para além disso, «só caso por caso a prudência e a ponderação dos juízes poderão resolver» [...].
As nulidades processuais devem ser arguidas pelos interessados perante o juiz, como resulta do disposto nos artigos 196.º e 197.º do CPC, sendo a decisão que recair sobre a respetiva arguição impugnável por via recursiva.
Mas, uma decisão-surpresa é um vício que afeta a própria decisão, tornando-a nula, na medida em que através ela o tribunal pronuncia-se sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes interessadas sobre a matéria – assim, Teixeira de Sousa, https: //blogippc.blogspot.pt. Como assinala este autor ainda que a falta de audiência prévia constitua uma nulidade processual por violação do princípio do contraditório, aquele é consumida por uma nulidade de sentença por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão. Pelo que a parte interessada deve reagir através da interposição de recurso fundamentado na nulidade da própria decisão.
No caso sub judice, a decisão recorrida surge na sequência da arguição, pela executada (…), da falta da sua citação – e, subsidiariamente, da nulidade da sua citação – e o tribunal julgou-a procedente sem que tivesse ouvido previamente o exequente (cfr. supra II.4).
Nos termos do artigo 201.º do CPC, a arguição de qualquer nulidade pode ser indeferida, mas não pode ser deferida sem prévia audiência da parte contrária, salvo caso de manifesta desnecessidade.
É para nós manifesto que a arguição da falta de citação da executada – e, subsidiariamente, da nulidade da sua citação – não pode considerar-se como integrando «um caso em que a audição da parte contrária é manifestamente desnecessária» até por força das consequências da sua procedência numa fase do processo em que o imóvel penhorado até já se encontra vendido porquanto a procedência da arguição de falta de citação implica a nulidade de tudo o que se processe depois da petição inicial (leia-se requerimento executivo), nos termos do disposto no artigo 187.º, alínea a), do CPC) e a procedência da arguição da nulidade da citação por preterição de formalidades prescritas na lei pode implicar também a ineficácia de todo o processado posterior à petição inicial se a falta puder prejudicar a defesa do citado, nos termos do disposto no artigo 191.º, n.ºs 1 e 4, do CPC.
Destarte, a omissão do dever de audição prévia do exequente em face da arguição da executada da respetiva falta de citação/nulidade de citação, constitui a violação do dever imposto pelo artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, nulidade que afeta a decisão sob recurso, tornando-a nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.
Consequentemente, há que anular tal decisão e determinar que seja proferido o despacho omitido, isto é, o convite à exequente para se pronunciar, querendo, sobre as nulidades arguidas."
[MTS]
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