"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/04/2022

Jurisprudência 2021 (174)


Embargos de executado;
intervenção de terceiros*


I. O sumário de RC 7/9/2021 (4859/19.0T8VIS-A.C1) é o seguinte:

1. Não será de rejeitar in limine a possibilidade de intervenção principal de terceiros, nos embargos de executado, se indispensável para conferir eficácia à oposição neles deduzida contra a execução.

2. Perante um incipiente enquadramento fáctico e numa fase adjetiva preliminar nada desaconselhará a intervenção em juízo de quem em primeira linha deva, pelo menos, esclarecer se e em que circunstâncias o seguro de “danos próprios”, já accionado, deverá pagar a quantia pedida na ação executiva, estando assim aberta a possibilidade de, na oposição mediante embargos, demandar ou fazer intervir a própria seguradora conjuntamente com o exequente e o tomador do seguro (executado).

3. A referida intervenção não irá servir à formação dum título executivo a favor ou contra a interveniente e não contenderá por isso nem com o fim nem com os limites da ação executiva (art.º 10º, n.º 5 do CPC).


II. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I. Em 23.01.2020, V... e A... deduziram oposição, por embargos, à execução para pagamento de quantia certa, no valor de €17 189,07, que lhes é movida por Banco S..., S. A., concluindo pela sua procedência e que deve ser “admitido o incidente de intervenção provocada, chamando-se a intervir nos presentes autos a F... - Companhia de Seguros, S. A., seguindo-se os ulteriores termos processuais”.

Alegaram, nomeadamente: são donos do veículo automóvel com a matrícula ... adquirido à sociedade C..., Lda., em 30.8.2016[...], pelo valor de €22.400; para tal aquisição celebraram o contrato de financiamento “ora dado à execução”; “concomitantemente e para obter o contrato de financiamento para aquisição a crédito”, os executados subscreveram um contrato de seguro que incluía, além das coberturas obrigatórias, “responsabilidade civil facultativa e danos próprios”, “transferido”, em 28.01.2017, para a Seguradora F... (pelo valor de €19.085 quanto ao risco de “danos próprios”) (apólice n.º ...); no dia 16.6.2019, o veículo ... foi furtado; [...] 

Observado o contraditório (art.º 3º, n.º 3 do Código de Processo Civil/CPC), por despacho 07.11.2020 a Mm.ª Juíza a quo, nos termos e para os efeitos do art.º 732º, n.º 1 do CPC, indeferiu liminarmente os Embargos de Executado, por manifesta improcedência, “tendo em consideração a natureza do título dado à execução, bem como o teor do requerimento inicial de embargos, no que concerne à existência do seguro e respectivo segurado, conjugado com as situações em que é admissível a requerida intervenção (art.º 316º, n.º 3, do Código de Processo Civil)”.

II[...]. 2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

A situação em análise não é isenta de dificuldades.

Porém, sem quebra do respeito sempre devido por entendimento contrário, afigura-se que uma leitura menos formal e ortodoxa das normas aplicáveis, aliada ao primordial desiderato de alcançar uma solução que responda com razoabilidade e justiça aos interesses em presença - respeitando-se, também, os subsídios e as orientações da doutrina e da jurisprudência ao longo das duas últimas décadas -, aponta para uma resposta diversa da encontrada em 1ª instância. [...]

4. Decorre do regime jurídico do contrato de seguro (aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16.4):

- Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente (art.º 1º).

- O sinistro corresponde à verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o accionamento da cobertura do risco prevista no contrato (art.º 99º).

5. Considerados os elementos disponíveis, nenhuma dúvida se suscita sobre a validade do título dado à execução, nem sobre o mencionado contrato de mútuo (conexo e pressuposto, ainda que inexista nos autos documento que o reproduza) e a existência de um contrato de seguro associado e que comporta, entre outras, a modalidade “danos próprios” (abarcando, designadamente, “a subtracção ilegítima do veículo seguro”/fls. 19), desde há muito presente na generalidade dos contratos de mútuo para aquisição de veículo automóvel.

Face aos elementos disponíveis (v. g., a fls. 9 a 11), o executado tem a qualidade de “tomador” (e beneficiário); o objecto do seguro/risco seguro (que inclui a responsabilidade civil obrigatória e facultativa, os danos próprios – entre os quais, “Furto ou Roubo” – e outras coberturas acordadas) respeita ao aludido veículo de matrícula 57-MO-32, sendo que tais coberturas (parcialmente impostas pela exequente ao “tomador”/mutuário - adesão ao contrato de seguro que o banco mutuante exige ao seu devedor) também “interessam” à entidade financiadora/exequente; ademais, entendendo-se, porventura, que a dita, e atípica, “reserva de propriedade” a seu favor constitui uma outra “garantia” do crédito (não se tratando de reserva clássica[...] mas mera reserva garantia[...]), a exequente terá o inerente benefício.

6. A questão dos embargos (levada ao presente recurso) surge ou acaba desencadeada pelo (alegado) evento - “Furto ou Roubo” - que se pretende ligado àquela relação contratual que envolve e/ou se repercute na esfera jurídico-patrimonial das partes da acção executiva em apreço, desde logo, os executados, que o invocam como circunstância impeditiva, modificativa ou extintiva do dever de prestar, não sendo inatacável o direito que o título confere.[...]

O contrato de seguro encontra-se intrinsecamente ligado (conexo) ao referido contrato de mútuo, e se, este, não é (formalmente) título executivo no Processo Executivo de que os presentes autos constituem incidente declarativo, dúvidas não restam, também, de que a livrança dada à execução corporiza, sobretudo, uma das garantias do cumprimento daquele contrato [cf. II. 1. b), supra e o art.º 22º, n.º 1 do DL n.º 133/2009, de 02.6[13] - diploma que procedeu à transposição para a ordem jurídica interna da Diretiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23.4, relativa a contratos de crédito aos consumidores, na parte referente às alterações introduzidas pela Diretiva n.º 2011/90/UE da Comissão, de 14.11].

7. Por conseguinte, salvo o devido respeito por entendimento contrário, não será de acolher o entendimento expresso no despacho recorrido, baseado numa estrita e ortodoxa compreensão do título[...] (formalmente) apresentado na presente execução.

E pese embora a existência do referido título executivo com função de garantia, relevam, sobremaneira, dois contratos típicos distintos (contrato de crédito e o contrato de seguro) ligados entre si por um nexo funcional[...]; daí, a interpretação negocial não pode deixar de ser sistémica, convocando os princípios, como o da justiça contratual, da boa fé, da segurança, do equilíbrio das prestações.[...]

Na verdade, toda a descrita amplitude do risco coberto pelo aludido contrato de seguro tem a sua razão de ser na existência daquele contrato de crédito e nas condições impostas para a sua celebração e execução (garantia exigida pelo credor bancário e garantia dos mutuários contra a ocorrência dos eventos aleatórios previstos no contrato), pelo que, nas (já) apuradas circunstâncias, desconsiderá-lo, em sede executiva, não se afigura conforme aos referidos princípios.

Verificado o evento que desencadeia o accionamento da cobertura do risco prevista no contrato, a vontade usual das partes será a de que o credor se pague primeiro à custa do segurador, sendo que a exigência de que o mutuante procure, primeiro, a satisfação do seu crédito junto do segurador, não deixa sem tutela aquele credor, pois sempre poderá demonstrar que não lhe é comprovadamente possível obter aquela satisfação junto do segurador, porque, por exemplo, o contrato de seguro é inválido ou não se verificam as condições convencionadas para que aquele se constitua no dever de prestar a que se vinculou pelo contrato - entendimento que tem encontrado adequado acolhimento na doutrina e jurisprudência, com especial destaque para os seguros de vida e de acidentes pessoais.[...]

8. Assim deverá suceder, ainda que (aparentemente) inexista a habitual sintonia e comunhão de interesses entre a Seguradora e a Instituição Bancária.

9. A oposição à execução por meio de embargos - verdadeira acção declarativa que corre por apenso ao processo de execução - visa a extinção da execução (impedir que a acção executiva tenha seguimento), mediante o reconhecimento da actual inexistência do direito exequendo ou da falta dum pressuposto, específico ou geral, da acção executiva (que pode ser o próprio título executivo); apresenta-se como uma contra-acção tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo e/ou da acção que nele se baseia; é o meio processual pelo qual o executado exerce o seu direito de defesa perante o pedido do exequente, idóneo à alegação dos factos que em processo declarativo constituiriam matéria de excepção (para além de servir fins de impugnação).[...]

10. Por norma, a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figura como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor (art.º 53º, n.º 1).

No entanto, a própria lei admite desvios à regra geral da determinação da legitimidade, permitindo, por exemplo, a exequibilidade da sentença contra terceiros, a coligação (v. g., coligação passiva de executados) em determinadas situações (art.ºs 54º a 56º) e a alteração subjectiva por via de habilitação.

A problemática da admissibilidade dos incidentes de terceiros na acção executiva tem sido objecto de indagação jurisprudencial e doutrinária, e, em princípio, não há razões para recusar, sem mais, a aplicação do incidente de intervenção principal provocada na execução, apelando-se às circunstâncias do caso.[...]

E desde há muito se propugna que, em princípio, não será de rejeitar ´in limine` a possibilidade de, nos ´embargos de executado`, dada a sua natureza e finalidade, ser pedida a intervenção principal de terceiros, desde que esta seja indispensável para conferir eficácia à oposição neles deduzida contra a execução.[...]

11. A possibilidade de coligação na acção executiva - considerada por alguma doutrina[...] -, respeitará, in casu, os princípios ditos em II. 2., supra e o comando interpretativo do n.º 1 do art.º 9º do Código Civil[...], porquanto obedece ao mesmo devir que é lei de todas as coisas, no sentido de encontrar a solução que melhor corresponda aos interesses da vida.[...]

12. Nesta fase inicial de alegação dos elementos de facto, e não importando analisar as circunstâncias descritas no documento de fls. 11 verso e seguintes (“auto de notícia” elaborado pela GNR, em 19.6.2019), dir-se-á que se vislumbram os pressupostos objectivos que condicionam o eventual funcionamento do seguro e que os embargantes/executados informaram, tempestivamente, os factos relevantes.

Ademais, perante um incipiente enquadramento fáctico e numa fase adjectiva preliminar, nada desaconselhará a intervenção em juízo de quem em primeira linha deve, pelo menos, esclarecer se e em que circunstâncias o seguro, já accionado, deverá pagar a quantia pedida na acção executiva. Está assim aberta a possibilidade de, na oposição mediante embargos, demandar ou fazer intervir a própria seguradora.[...]

De resto, a referida intervenção não irá servir à formação dum título executivo a favor ou contra a interveniente e não contenderá por isso nem com o fim nem com os limites da acção executiva (art.º 10º, n.º 5).[...]".

*3. [Comentário] Salva a devida consideração, não se pode acompanhar a orientação da RC.

Como bem se diz no acórdão, não está em causa a admissibilidade da intervenção de terceiros nos embargos de executado. O que pode estar em causa -- e efectivamente está em causa -- é a admissibilidade da intervenção de um terceiro para assumir a posição de parte passiva nuns embargos de executado numa situação que não cumpre o estabelecido em nenhum dos números do art. 316.º CPC. Não se vislumbra como é que, no caso concreto, se pode justificar que o segurador possa ser considerado um litisconsorte de qualquer das partes da execução.

Acresce que não é fácil aceitar que a acção executiva sirva para "esclarecer se e em que circunstâncias o seguro, já accionado, deverá pagar a quantia pedida na acção executiva". A relação entre o segurador e o tomador ou segurado é completamente estranha à relação entre o exequente (credor) e o executado (tomador ou beneficiário), pelo que não se percebe muito bem que reflexos é que pode vir a ter na execução o eventual reconhecimento de que o executado deve ser ressarcido pelo segurador.

MTS