"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/04/2022

Jurisprudência 2021 (178)


Procedimentos cautelares;
recurso de revista


1. O sumário de STJ 14/9/2021 (338/20.0T8ESP.P1.S1) é o seguinte:

I. — O recurso de revista de acórdãos proferidos pela Relação no âmbito de procedimentos cautelares só é admissível nos casos previstos no art. 629.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

II. — O art. 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil exige que o acórdão recorrido esteja em contradição com algum acórdão anteriormente proferido pela Relação, denominado de acórdão fundamento; que os dois acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação; e que os dois acórdãos tenham sido proferidos sobre a mesma questão fundamental de direito.

III. — A contradição ou oposição de julgados há-de determinar-se atendendo a dois elementos: a semelhança entre as situações de facto e a dissemelhança entre os resultados da interpretação e/ou da integração das disposições legais relevantes em face das situações de facto consideradas.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"13. A questão da admissibilidade do recurso é uma questão prévia.

14. O art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil é do seguinte teor:

“Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”.

15. O art. 671.º, n.º 1, é correntemente interpretado no sentido de que “o âmbito do recurso de revista […] não abarca os acórdãos proferidos pela Relação no âmbito dos procedimentos cautelares” [---] — e, ainda que o art. 671.º, n.º 1, não fosse correntemente interpretado no sentido de que o âmbito do recurso de revista não abarca os acórdãos proferidos pela Relação no âmbito de procedimentos cautelares, sempre a admissibilidade do recurso deveria confrontar-se com o art. 370.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cujo teor é o seguinte:

“Das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, incluindo a que determine a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível”[---].

16. Os casos em que o recurso é sempre admissível encontram-se no art. 629.º, n.º 2, do Código de Processo Civil:

“Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:

a) Com fundamento na violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado;

b) Das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre;

c) Das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça;

d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.

17. A Requerente, agora Recorrente, Servilusa – Agências Funerárias, S.A., invoca como fundamento específico de recurso o art. 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil.

18. Esclarecido que o motivo por que não cabe recurso ordinário é o art. 370.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e, por consequência, é um motivo estranho à alçada do tribunal recorrido, o art. 629.º, n.º 2, alínea d), decompõe o fundamento da recorribilidade em três requisitos: que o acórdão recorrido esteja em contradição com algum acórdão anteriormente proferido pela Relação, denominado de acórdão fundamento; que os dois acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação; e que os dois acórdãos tenham sido proferidos sobre a mesma questão fundamental de direito[---].

19. A Requerente, agora Recorrente, Servilusa – Agências Funerárias, S.A., alega que há uma contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 27 de Abril de 2017 — processo n.º 289/14.8T8FND.C1 — quanto à seguinte questão fundamental de direito — “se a violação do direito à imagem, enquanto direito de personalidade coletiva, pressupõe a necessidade de imputações diretas e concretas com identificação expressa do visado” [cf. conclusões 5.ª e 6.ª das alegações de recurso].

20. A contradição ou oposição de julgados há-de determinar-se atendendo a dois elementos: a semelhança entre as situações de facto e a dissemelhança entre os resultados da interpretação e/ou da integração das disposições legais relevantes em face das situações de facto consideradas.

21. Em sumário do acórdão do STJ de 20 de Outubro de 2014, proferido no processo n.º 7382/07.1TBVNG.P1.S1, diz-se que “a oposição de acórdãos, quanto à mesma questão fundamental de direito, verifica-se quando, perante uma idêntica situação de facto, a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos”, e em sumário do acórdão do STJ de 2 de Março de 2017, proferido no processo n.º 488/14.2TVPRT-B.P1.S1, diz-se que

“A oposição de dois acórdãos da Relação sobre a mesma questão fundamental de direito verifica-se quando o essencial da situação de facto, à luz da norma aplicável, é idêntico nos dois acórdãos”.

22. Entre as situações de facto subjacentes ao acórdão fundamento e ao acórdão recorrido há diferenças fundamentais: — no acórdão fundamento, estava em causa o bom nome de uma sociedade comercial que tinha por objecto a actividade de construção civil e de comercialização de construções; — os Requeridos afixaram na varanda do 1º andar da moradia que compraram à Autora, virado para a via pública, um placar com cerca de 1,30 mt. de largura e 0,90 mt. de altura, pintado de branco, com os seguintes dizeres escritos a preto: “Humidade / Paredes Rachadas / Pinturas Deficientes / Garantia = ZERO” [cf. facto dado como indiciariamente provado sob o n.º 7]; — no acórdão recorrido, está em causa o bom nome de uma sociedade comercial que tem por objecto a actividade de uma agência funerária; — o Requerido fez duas publicações na sua página pessoal da rede social Facebook, em 23 de Janeiro e em 26 de Junho de 2020, cujo perfil é privado [cf. factos dados como indiciariamente provados sob os n.ºs 12, 17 e 19], e enviou uma mensagem de correio electrónico ao consultor e intermediário no contrato de cessão de quotas celebrado com a Requerente [cf. facto dado como indiciariamente provado sob o n.º 26].

23. Ora, a afixação de um placard numa varanda é uma afirmação pública, apta para atingir um conjunto indeterminado de pessoas, logo um conjunto consideravelmente maior que uma publicação numa página pessoal da rede Facebook, cujo perfil seja privado.

Independentemente do seu maior ou menor grau de publicidade, a afixação de um placard relativo aos defeitos de construção de um edifício e tenderá a tornar mais fácil a identificação da pessoa colectiva visada — só poderá ser a construtora —, dispensando as “imputações directas e concretas”.

24. Em todo o caso, ainda que porventura estivesse preenchido o requisito da semelhança das situações de facto, não estaria preenchido o requisito da dissemelhança entre os resultados da interpretação e/ou da integração das disposições legais relevantes.

25. O acórdão recorrido não afirma, em abstracto, que “a violação do direito à imagem, enquanto direito de personalidade colectiva, pressupõe a necessidade de imputações diretas e concretas com identificação expressa do visado”.

26. Em contraste com uma afirmação em abstracto, o Tribunal da Relação ……. começa por afirmar o princípio de que a decisão deve decorrer de uma ponderação e de uma valoração globais dos direitos e dos interesses conflituantes da Requerente e do Requerido, para chegar à conclusão de que “as excepções ao direito de liberdade de expressão — consagrado no artigo 10.º, n.º 1 do CEDH — têm de ser interpretadas muito restritamente e sempre atendendo à existência de uma ‘necessidade social imperiosa’” e de que, “recorrendo às regras da experiência, neste momento não se vislumbra no caso a ‘necessidade social imperiosa’ a que se refere o TEDH, justificativa da derrogação da liberdade de expressão”.

27. O facto de o Requerido AA não identificar expressamente a Requerente Servilusa – Agências Funerárias, S.A., nem nas publicações na sua página pessoal da rede social Facebook de 26 e de 29 de Junho de 2020 nem no e-mail de 21 de Julho de 2020, relevaria por significar que as afirmações feitas não podem ou não devem, sem mais, interpretar-se como referidas à Requerente, e só por significar que as afirmações feitas não podem ou não devem, sem mais, interpretar-se como referidas à Requerente Servilusa – Agências Funerárias, S.A. — não relevaria no sentido de excluir, automática e necessariamente, a lesão do bom nome ou do crédito da Requerente.

28. Em lugar da afirmação de que, em abstracto, “a violação do direito à imagem, enquanto direito de personalidade coletiva, pressupõe a necessidade de imputações diretas e concretas com identificação expressa do visado”, o acórdão recorrido contém, tão-só, a afirmação de que, em concreto, a ausência de imputações directas e concretas, ou de uma identificação expressa do visado, contribui para que o resultado de uma ponderação e de uma valoração globais seja no sentido de dar prioridade à liberdade de expressão do Requerido.

29. Finalmente, o Supremo Tribunal de Justiça tem exigido, constantemente, que a questão, sobre que a contradição recai, seja uma questão fundamental ou essencial para a decisão do caso [Cf. designadamente os acórdãos do STJ de 7 de Março de 2017 — processo n.º 1512/07.0TBLSD.P2.S1 — e de 2 de Maio de 2019 — processo n.º 1650/06.7TBLLE.E2.S1.]:

“A contradição de julgados relevante para a aplicação do art. 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil […]”, diz-se, p. ex., em acórdão de 2 de Maio de 2019, “tem de referir-se a questões que se tenham revelado essenciais para a sorte do litígio em ambos os processos, desinteressando para o efeito questões marginais ou que respeitem a argumentos sem valor determinante para a decisão emitida”.

30. Ora, ainda que houvesse alguma contradição entre o acórdão recorrido e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27 de Abril de 2017 — processo n.º 289/14.8T8FND.C1 — quanto à questão fundamental de direito concretizada em averiguar “se a violação do direito à imagem, enquanto direito de personalidade colectiva, pressupõe a necessidade de imputações diretas e concretas com identificação expressa do visado”, a questão não seria essencial ou fundamental para a decisão do caso.

31. O acórdão recorrido alega expressamente que, ainda que as afirmações feitas nas publicações de 26 e de 29 de Junho de 2020 ou no e-mail de 21 de Julho de 2020 pudessem e devessem interpretar-se como referidas à Requerente Servilusa – Agências Funerárias, S.A., não estaria provado um perigo concreto de que o Requerido AA praticasse no futuro comportamentos lesivos do bom nome ou do crédito da Requerente:

“… ainda que objectivamente, o uso dessas palavras [contidas no e-mail de 21 de Julho de 2020] possa ser considerado ofensivo da honra e da consideração devidas à requerente-recorrida, no pressuposto do recorrente se referir à requerente-recorrida, independentemente da veracidade dos fatos nos quais se sustenta esse uso, certo é que no caso dos autos, não resulta em termos indiciários que tal facto isolado constitua qualquer perigo concreto de que o recorrente vai repetir essa conduta e em que termos. […]

Apesar de a mensagem privada de 21/07/2020 poder ser difamatória da imagem da requerente atento o uso de termos ofensivos, não é causal da proibição pretendida por não faz supor que possa vir a existir igual atuação em termos públicos e nos meios sociais”.

Em coerência, o acórdão recorrido conclui que, ainda que “a violação do direito à imagem, enquanto direito de personalidade colectiva, não pressuponha a necessidade de imputações diretas e concretas com identificação expressa do visado”, sempre a providência cautelar requerida pela Servilusa – Agências Funerárias, S.A., deveria ser indeferida.

32. O facto de não estarem preenchidos os pressupostos do art. 629.º, n.º 2, do Código de Processo Civil determina que do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação …… não caiba recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (cf. art. 370.º, n.º 2, em ligação com o art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)."

[MTS]