Procedimento cautelar comum;
periculum in mora
1. O sumário de RP 9/9/2021 (3272/21.3T8PRT.P1) é o seguinte:
I - No procedimento cautelar comum, o periculum in mora tem que ser analisado e apreciado relativamente ao direito que é invocado pelo requerente, e não já em relação a qualquer outro direito que seja sucedâneo ou substitutivo daquele.
II - Apresentando o requerimento inicial insuficiente explicitação dos factos que interessam à procedência do procedimento cautelar, deve o Juiz fazer uso dos princípios da cooperação e da justa composição da lide, para, em despacho de aperfeiçoamento, convidar o requerente a suprir essas insuficiências de alegação.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"É consabido que a composição provisória que a providência cautelar visa atingir se pode consubstanciar numa de três finalidades: 1) garantir um direito; 2) definir uma regulação provisória ou 3) antecipar a tutela requerida.
Segundo A. Abrantes Geraldes Temas da Reforma do Processo Civil, Volume III: “As medidas deste tipo excedem a natureza simplesmente cautelar ou de garantia que caracteriza a generalidades das providências (…) o efeito destas providências não se limita a assegurar o direito que se discute na acção principal, nem tão pouco a suspender determinada actuação, garantindo-se, desde logo, e independentemente do resultado a alcançar na acção principal, um determinado efeito que acaba sempre por ter carácter definitivo”.
O artigo 362.º do CPC prevê de forma expressa tal possibilidade – a de se poder alcançar uma medida com efeitos antecipatórios da decisão definitiva, prevendo-se, até, a possibilidade de, em determinadas situações, a decisão cautelar se poder consolidar como definitiva composição do litígio, através da chamada inversão do contencioso (artigo 369.º do CPC), evitando-se a duplicação de procedimentos, repetindo na acção principal a apreciação da mesma controvérsia que já tinha sido debatida e decidida no procedimento cautelar.
Ora nos autos, tem razão a requerente/apelante quando, nas suas alegações, salienta que “mesmo sem que tenha sido realizado julgamento, se deve ter como provado que o arrendado sofre infiltrações de água que aparentemente provirão do telhado de cobertura ou dos vãos das janelas dos pisos superiores, ou das fachadas fissuradas, e que, muito recentemente, ruiu parte do tecto, estando em risco de ruir o restante a qualquer momento, fazendo desabar o tecto de outros compartimentos do locado com iminente perigo para a integridade física de quem ali se encontre”.
Tem igualmente razão, quando afirma que tais factos bastam para que se possa concluir que se está perante lesões continuadas, impondo-se prevenir a continuação ou a repetição dos actos lesivos, ou seja, o que se pretende é prevenir a continuação de infiltrações no arrendado e a possibilidade da sua ruína total.
Mais, aceitamos como correcta a ideia de que os danos já ocorridos tendem a agravar-se, podendo surgir outros novos, se em tempo útil não for concedida a providência destinada a evitar a repetição ou a persistência das situações lesivas.
Deste modo, também nós concluímos que numa situação de manifesta urgência como é a dos autos, a presente via cautelar se mostra adequada para antecipar o juízo a formular na acção principal.
Ou seja, a presente providência é o caminho processual adequado para que a (inquilina) Requerente consiga que o senhorio (a Requerida) realize no locado e no seu prédio as obras necessárias a repô-lo em condições de utilização.
Assim sendo e diversamente do que foi entendido na decisão recorrida, consideramos não estar perante pedidos que não têm natureza cautelar, podendo sim os mesmos e tendo nomeadamente em conta as regras previstas no nº 1 do art.º 362º do CPC, ser tidos em conta no âmbito da presente providência.
Quando muito e considerando-se que os mesmos padecem das irregularidades apontadas na decisão recorrida, deve a Requerente ser convidada a vir aos autos suprir tais imprecisões, aperfeiçoando o seu articulado inicial, nos termos legalmente previstos, prosseguindo posteriormente os autos para realização de audiência de discussão e julgamento e posterior decisão final.
Assim sendo, merece reparo o segmento da decisão na qual se julgou parcialmente nulo o processado e se absolveu a Requerida, nesta parte, da instância cautelar, salvo quanto pedidos de restituição da maquinaria do sistema de ar condicionado (pedido compreendido na alínea f) do petitório) e ao franqueamento do acesso ao terraço de cobertura (pedido compreendido na alínea cc) do petitório).
E merece igualmente reparo a mesma decisão quando julgou improcedentes tais pedidos (os da alínea f), b) e cc) da petição inicial e deles absolveu a Requerida.
Na tese do Tribunal “a quo” não foram alegados factos que caracterizem o periculum in mora, relativamente aos pedidos sobre os quais não existe impedimento ao conhecimento de mérito.
Mais, da alegação da Requerente não resulta, sequer, que estejamos perante uma lesão grave e dificilmente reparável.
Podemos desde já dizer que não sufragamos tal entendimento.
E para sustentar a nossa opinião, vamos recorrer aos argumentos contidos no Acórdão desta Relação de 24.09.2009, relatado pelo Desembargador Teixeira Ribeiro, processo 4481/09.9TBMAI.P1, em www.dgsi.pt. e cujos segmentos que consideramos mais relevantes para o caso dos autos, passamos agora a transcrever:
“a) – Da suficiência da matéria de facto alegada quanto ao “periculum in mora”
Os procedimentos cautelares são, genericamente, expedientes processuais, de tramitação simplificada e célere, destinados a prevenir a lesão, pela natural demora da intervenção judiciária comum e definitiva, de um direito que já existe ou está em vias de ser reconhecido. Por isso, bastam-se com a prova sumária da probabilidade séria da existência do direito (summaria cognitio) e do fundado receio da sua lesão – Artºs 387º, nº1 e 392º, nº1, ambos do Cod. Proc. Civil (diploma a que pertencem as demais disposições que doravante se citarem sem menção de origem).
Salvo os procedimentos nominados e com a sua regulação processual especificada em atenção à natureza dos direitos substantivos em causa, todas as demais providências cautelares podem ser requeridas segundo a disciplina que se designa de procedimento cautelar comum (naturalmente não especificadas), regulado nos Artºs 381º a 392º, como a que temos em apreço, que não encontra no direito adjectivo tramitação específica para o direito que pretende acautelar.Segundo essa disciplina, o decretamento de uma providência cautelar comum depende da verificação dos seguintes requisitos:a) – probabilidade séria da existência de um direito;b) – fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável nesse direito;c) – inadequação ao caso concreto de qualquer uma das providências cautelares previstas nos artºs 393º e segts.Surgindo a providência cautelar como expediente provisório, preliminar ou incidentalmente dependente de uma causa ulterior e final em que verdadeiramente se reconhece ou exerce o direito material, ela tem natureza instrumental e exige, para ser decretada, que o seu requerente demonstre sumariamente a existência do direito ameaçado (que pode ser um qualquer direito subjectivo, como o direito de propriedade, ou um interesse juridicamente tutelado, mais ou menos difuso), de molde a preservar-se a eficácia e utilidade daquela providência ulterior (assegurada pela causa final e principal), sabido como é que a preparação e formação, a maior partes das vezes lenta e demorada, da decisão definitiva poderá expor o presumido titular do direito a riscos sérios de dano jurídico, somente evitáveis através da providência cautelar – cfr, entre outros, José Alberto dos Réis, in “Código de Processo Civil”, Anotado, 3ª Edição, Reimpressão, pag. 623-627; Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, 2ª Edição, pag. 23-25, e António Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, III Volume, Procedimento Cautelar Comum, pag.56-78. (…)Esta alegação, se bem que não completamente exangue de afirmações conclusivas ou de conceitos de direito e carecida de maior explanação concreta da realidade que poderia assumir para deixar de merecer completamente os reparos feitos na decisão recorrida, parece-nos, ressalvada a máxima consideração por opinião adversa, que é, pelo menos, bastante para que, ao contrário do que ali se sustentou, fazer prosseguir a tramitação dos autos com vista ao sumário apuramento dos factos alegados (com audição das testemunhas arroladas pela Requerente), ou para tomar a opção da prolação do despacho de aperfeiçoamento nos termos do disposto no Artº 508º, nºs 1, b) e 3, que, no caso, não chegou a ocorrer.Não que se dispense a prova do periculum in mora por o legislador presumir que a demora da acção principal causa prejuízo grave e de difícil reparação, como acontece nas situações legalmente previstas de apreensão de veículos automóveis sequente à sua alienação com reserva de propriedade (nos termos dos Artºs 15º, nºs 1 e 2, 16º, do Dl. Nº54/75, de 12 de Fevereiro) ou que foram objecto de locação financeira (nos termos do Artº 21º, nºs 1,2 3 e 4, do Dl. Nº149/95, de 24 de Junho), mas porque – estando alegado que a Requerida mantém em seu poder e está a utilizar a viatura, apesar da resolução do contrato (quando devia proceder à sua entrega), completamente fora da álea do contrato que celebrara, sem qualquer controlo e contrapartida para a Requerente – não poderá essa conduta deixar de ser considerada lesão grave e de difícil reparação ao direito de propriedade sobre a viatura cuja entrega está a ser pedida por aquela. Com efeito, o periculum in mora tem que ser analisado e apreciado relativamente ao direito que é invocado pelo requerente, e não já em relação a qualquer outro direito que daquele seja sucedâneo ou substitutivo, como o direito à indemnização pelos prejuízos daí decorrentes.Na verdade, estando em causa um bem móvel, cuja utilização implica, de forma notória, a sua depreciação e que, a curto prazo, poderá mesmo conduzir à sua total inutilização ou destruição, entendemos que a utilização do veículo por parte da Requerida até à decisão da acção determina, só por si, e independentemente do apuramento de qualquer outro facto que ainda esteja por fazer (dos alegados), o risco de a Requerente ficar privada, total e definitivamente, do seu direito de propriedade e das utilidades que ao mesmo são inerentes.(…)Ao pressuposto de se exigir ao decretamento da providência a verificação do requisito do fundado receio de que a demora da decisão definitiva cause lesão grave irreparável ou de difícil reparação ao direito do requerente não obsta o facto de a lesão poder ser minorada (ou “reparada”) pela entrega de uma quantia em dinheiro (conforme Artºs 1043º e 1044 do Código Civil), pois, a ser assim, raras seriam as situações de lesão (grave) que não pudessem ser reparadas (dado que até a perda do direito à vida é, no nosso sistema jurídico, “compensável”...!).O que a Requerente pretende (lê-se no supra citado Aresto) com o procedimento cautelar – e é esse o seu direito – “é a entrega do veículo para, além do mais, salvaguardar a sua integridade (como máquina adequada a determinados fins), e não uma indemnização pela sua inutilização ou deterioração ou por dele não poder dispor, nomeadamente na celebração de novo contrato de aluguer”.(…)b) – Do despacho de aperfeiçoamento do requerimento inicialNa linha de tudo o que antes ficou dito, o requerimento inicial da providência não é completamente desprovido de factos concretos relevantes (que, até agora, estão apenas alegados) para o conhecimento do respectivo pedido, de modo a poder afirmar-se que é inepto por falta absoluta de causa de pedir ou manifestamente improcedente.O Mmº Juiz da 1ª Instância chega a reconhecer isso, quando na decisão recorrida escreveu - “Os factos alegados pela requerente são manifestamente insuficientes para que possamos dizer estar perante um fundado e justificado receio de perda da garantia patrimonial do crédito por parte da requerente...”. [...]Se assim é, se os factos estão menos bem explicitados e são insuficientes para, uma vez apurados (ainda que sumariamente), ditar a procedência da providência cautelar, bem poderia então, antes ou depois de ouvir a Requerida (conforme dispensasse ou não a sua audição), ter convidado a Requerente a aperfeiçoar o seu requerimento inicial, visando suprir essas insuficiências, nos termos das disposições conjugadas dos Artºs 234º, nº4, b), 234º-A, nº1, e 508º, nºs1, b), 2 e 3. Tudo aconselhava a que, dentro do salutar princípio da cooperação e da justa composição da lide (Artº 266º, nºs 1 e 2) a que assim procedesse, sendo, no entanto, duvidoso que assim tivesse que actuar vinculadamente, como vem sendo defendido tanto pela doutrina como pela jurisprudência mais seguidas sobre esta matéria - cfr., entre outros, José Lebre de Freitas, ob. Citada, pag. 23 e 353 a 355; Lopes do Rego, in “Comentários Ao Código de Processo Civil”, 2ª Edição, Volume I, pag. 220; e Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, III Volume, 3ª edição, pag.183-187, e os Acórdãos, desta Relação, de 29/06/2006 (procº nº0633389), in www.dgsi.pt/jtrp, e da Relação de Lisboa, de 20/05/2008 (proc.nº 4024/2008-1), in www.dgsi.pt/jtrl.De todo o modo, e pelas razões já expostas, o requerimento inicial continha suficiente fundamento para que a instrução do procedimento requerido tivesse prosseguido, com ou sem despacho de aperfeiçoamento, para a audição das testemunhas indicadas pela Requerente, motivo pelo qual o agravo vai merecer provimento.”
Aplicando tais considerações ao caso dos autos, cabe concluir que também aqui o requerimento inicial da providência não é completamente desprovido de factos concretos relevantes (que, até agora, estão apenas alegados) para o conhecimento do respectivo pedido, de modo a poder afirmar-se que é inepto por falta absoluta de causa de pedir ou manifestamente improcedente.
Ou seja, deve considerar-se que a matéria ali contida é suficiente para o prosseguimento da providência requerida, com ou sem despacho de aperfeiçoamento, para a produção da prova produzida pelas partes, revogando-se assim a decisão recorrida."
[MTS]
[MTS]