Acompanhamento de maiores;
prova; poderes do juiz
1. O sumário de RP 9/9/2021 (301/14.0TBVCD.P1) é o seguinte:
I - Uma das caraterísticas da jurisdição voluntária é a possibilidade que o tribunal tem de investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar as diligências e recolher as informações, só sendo admitidas as provas que o juiz considere convenientes.
II - No processo de Acompanhamento de Maior, com algumas caraterísticas dos processos de jurisdição voluntária, o juiz tem um papel decisivo na aceitação e rejeição de meios de prova, só devendo admitir as provas que considere convenientes, necessárias à tutela do interesse do Beneficiário, implicando a adoção de mecanismos de agilização do processo.
III - O controlo da (in)conveniência na produção de determinadas provas no Processo de Acompanhamento de Maior, requeridas pelos interessados, não se faz pela via da invocação de nulidade processual por omissão de atos, pois que não está em causa a omissão de uma formalidade processual ou um devido nom rito do processo, mas uma avaliação, em substância, da vantagem ou desnecessidade de, entre outras provas, as produzir no âmbito da realização da instrução do processo.
IV - Caso a casa, por ser variável o fundamento do acompanhamento, na ponderação da influência da vontade do Beneficiário na escolha do seu Acompanhante deve considerar-se o tipo de incapacidade e o grau de discernimento do Beneficiário, designadamente para entender o ato e o interesse em causa.
V - Numa situação em que o Beneficiário sofre de uma incapacidade definitiva da ordem dos 95%, por oligofrenia profunda, dificilmente se compreende o que diz, mas refere, relativamente às duas pessoas perfiladas para o exercício do cargo de Acompanhante, suas irmãs, que uma delas é sua amiga, que a outra não é, sendo que é aquela que, de facto, lhe tem prestado os cuidados de que necessita desde o ano de 2013 --- ainda que com o pagamento de retribuição do seu trabalho pela outra --- com a confiança do pai, mantida até à sua morte, em 2020, deve ser nomeada Acompanhante esta mesma irmã, assim se preservando a situação de continuidade e do seu bem-estar.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"A questão das nulidades processuais é comum a ambos os recursos e traduz-se nos seguintes fundamentos:
a- Preterição de diligências de prova requeridas pela recorrente D…, nomeadamente audição de testemunhas;b- Omissão, sem pronúncia, da requerida (pelo Ministério Público) diligência de nova audição do Beneficiário para que se aceite ou negue a nomeação da sua irmã D… como sua Acompanhante;c- Omissão de pronúncia sobre a requerida (pelo Ministério Público) diligência de consulta dos processos e inquéritos que correram termos entre os pais do Beneficiário e as suas irmãs, no sentido de apurar da existência de outros elementos relevantes à decisão acerca da pessoa que deve exercer o cargo de acompanhamento do beneficiário;d- Omissão de notificação à recorrente de qualquer despacho de dispensa de inquirição das testemunhas que arrolou;e- Omissão de notificação à recorrente do parecer do Ministério Público que precedeu a prolação da sentença.
[...] Vejamos.
[...] No julgamento da prova, consagrou-se abertamente o princípio da livre convicção do julgador. Tende paralelamente a admitir-se que, para formar a sua convicção, as partes possam socorrer-se de todos os elementos capazes de demonstrar a existência do facto, seja ele positivo ou negativo.[...]
Desse direito decorre, por um lado, o dever de o tribunal atender a todas as provas produzidas no processo, desde que lícitas, independentemente da sua proveniência --- princípio acolhido no art.º 413º, nº 1, do Código de Processo Civil --- e, por outro, a possibilidade de utilização pelas partes, em seu benefício, dos meios de prova que mais lhes convierem, devendo a recusa de qualquer meio de prova ser devidamente fundamentada na lei ou em princípio jurídico, não podendo o tribunal fazê-lo de modo discricionário.
Há que ter sempre presente que o fim primordial do processo é a composição justa de um litígio, o que implica a procura da verdade.
[...] O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem” (art.º 3º, nº 3).
Naquela norma radica a matriz do princípio do contraditório, segundo o qual, mesmo no sentido tradicional --- em quase toda a sua dimensão, desde a reforma do processo civil de 1995 ---, qualquer das partes tem o direito de conhecer a pretensão contra si deduzida e o direito de pronúncia prévia à decisão, ainda que esta seja de conhecimento oficioso. Através dele, a lei assegura às partes o desenvolvimento do processo em discussão dialética, com as vantagens decorrentes da fiscalização recíproca das afirmações e provas por elas efetuadas.
Consagra-se o direito de as partes serem ouvidas como ato prévio a qualquer decisão que venha a ser proferida no processo, entendendo-se, hodiernamente mais do que isso, a possibilidade de as partes intervirem em juízo em termos de influenciarem (pelos argumentos de que fizerem uso) a decisão a proferir. [...]
O legislador privilegiou a intervenção do tribunal, pela oficiosidade dos atos na instrução dos processos, sem prejuízo do contraditório. O que se procura é a melhor solução, alijada de peias normativas e de forma, orientada pelo conceito do interesse do Beneficiário.
No que especificamente respeita ao processo de Acompanhamento de Maiores, não sendo propriamente um processo de jurisdição voluntária (art.ºs 986º e seg.s) resulta do art.º 891º, nº 1, que, além de urgente, lhe é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos daquela jurisdição (voluntária) no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes. [...]
Interessa aqui particularmente o que respeita ao exercício dos poderes do juiz, no que se destacam os art.ºs 894º e 897º, nº 1, segundo o qual, “findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos”. De acordo com o nº 2 deste último artigo, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre.
Assim, do processo de jurisdição voluntária emana também, de algum modo, para o processo de Acompanhamento de Maior, a ideia de que não se trata propriamente da decisão de uma controvérsia entre as partes, mas uma atividade de assistência e de fiscalização em relação a atos realizados pelos particulares, sendo a intervenção requerida pela parte interessada. Pode existir controvérsia entre os interessados mas o essencial, nestes casos, é que haja um interesse fundamental tutelado pelo Direito e ao juiz se tenha atribuído o poder de escolher a melhor forma de o gerir ou de fiscalizar o modo como se pretende satisfazê-lo. [...]
O tribunal, gerindo o processo, tem como dever último atender ao que, objetivamente, deve ter-se como relevante para a prossecução daquele desiderato e ao que mais julgar necessário.
O exercício dos poderes do juiz segundo o critério de conveniência não significa a atribuição de poderes discricionários e menos ainda arbitrários, mas de poderes orientados, vinculados pela prossecução do fim último do processo, que é a justa composição do litígio, a prevalência da verdade material sobre a verdade formal, e que, nos autos aqui em causa, se deve concretizar com prossecução da defesa do interesse do Beneficiário, descobrindo a verdade dos factos para que seja colocado na melhor situação de proteção possível. Os poderes do juiz devem respeitar o princípio da imparcialidade, sob pena de estarmos a falar de arbitrariedade.
O juiz tem aqui um papel decisivo na aceitação e rejeição de meios de prova, só devendo admitir as provas que considere convenientes, necessárias. Isto é, deve rejeitar as provas impertinentes, desnecessárias, inúteis, supérfluas, de modo a que a instrução seja, tanto quanto possível, simples e urgente, implicando a adoção de mecanismos de agilização do processo. O tribunal pode optar pelas providências que melhor prossigam o interesse posto a seu cargo, por serem as mais adequadas à situação concreta.
Mais importante do que aquilo que as partes alegam, são os documentos que elas juntam e o tribunal recolhe por sua livre iniciativa, assim como as diligências de prova, e o que de todos esses meios resulta provado (independentemente de ter sido alegado ou devidamente alegado). [...]
De acordo com o art.º 411º, onde se encontra a regra essencial do princípio do inquisitório, “incumbe ao Juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.” Para atingir a justa composição do litígio, o juiz deve ordenar todas as diligência necessárias. [...]
No caso presente, em que se aplica, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária (art.º 891º, nº 1), o tribunal, sem autoritarismo judicial, deve ordenar as provas que considere convenientes, ainda que não indicadas pelo Requerente ou pelo Requerido, como deve também rejeitar a produção de provas por eles indicadas se as achar impertinentes ou desnecessárias.
Às partes assiste o direito de ser informadas sobre os motivos das decisões judiciais, para que as compreendam e controlem dentro dos limites da lei, segundo o princípio do Estado de direito.
Assim caraterizado o Processo de Acompanhamento de Maiores, analisemos à sua luz, mais proximamente, os fundamentos de nulidade invocados, pela ordem que se segue. [...]
- Omissão de notificação à recorrente de qualquer despacho de dispensa de inquirição das testemunhas que arrolou
Não há omissão de despacho de dispensa de inquirição de testemunhas, nem omissão da sua notificação.
Por respeito à urgência processual, o tribunal proferiu aquela decisão na própria sentença, consignando-a, na sua parte inicial, nos seguintes termos:
“(…) Assim, uma vez que os elementos já recolhidos nos autos se mostram suficientes à prolação de decisão, passa-se de imediato a proferir decisão sobre a requerida nomeação de Acompanhante ao beneficiário C…. (…)”.
Considerou, assim, a desnecessidade da produção de mais provas.
Notificada que foi a sentença, notificada ficou também a decisão de, por desnecessidade, não se admitir a produção de mais provas no processo.
Poderia argumentar-se que esta decisão não está fundamentada. Porém, não só estaria em causa uma nulidade diferente da que foi invocada (nulidade daquela decisão, ao abrigo dos art.ºs 613º, nº 3 e 615º, nº 1, al. b)), como, na realidade, a sua fundamentação resulta dos próprios termos da sentença, designadamente da respetiva motivação da decisão da matéria de facto, de onde resulta, ao menos implicitamente, que o tribunal entendeu poder decidir conscienciosamente, de acordo com o interesse do Beneficiários, sem necessidade de atender a outras provas.
Não ocorre também esta nulidade.
- A nulidade por preterição de diligências de prova requeridas pela recorrente D…, nomeadamente a audição das testemunhas que arrolou
Com o requerimento inicial do incidente de nomeação de acompanhante (requerimento de 31.8.2020) e com a resposta dada pelas irmãs do Beneficiário, F… e E… (requerimento de 7.9.2020), foram apresentados róis de testemunhas, tal como se apresentaram vários documentos.
O tribunal não ouviu nenhuma das testemunhas, mas tomou declarações ao Beneficiário (o que, aliás, é obrigatório – art.º 897º, nº 2) e às suas três irmãs D…, F… e E…, as pessoas que, no círculo social e familiar do C…, melhor conhecimento têm da sua situação e que se perfilam para o exercício do cargo de Acompanhante.
Está agora em causa saber se, nos termos da lei do processo, o tribunal estava obrigado a ouvir as testemunhas arroladas pela recorrente, ou seja, se, não as tendo ouvido, se afastou do seu dever de proceder, se omitiu um ato processual ou uma formalidade que devia ter praticado.
Ora, é a própria lei do processo que, nos termos do art.º 897º, nº 1, determina que o juiz ordena as diligências que considere convenientes. O juízo de conveniência, próprio da jurisdição voluntária, está ligado ao interesse relativo a cada meio de prova, à substância da prova e ao conteúdo do direito que o processo visa tutelar. O que a lei do processo determina é a realização de diligências instrutórias, e essas não foram omitidas. Se as provas recolhidas são insuficientes, se não têm interesse ou se há conveniência ou necessidade na produção de outras provas, é matéria que envolve juízos de valor que têm que ser situado no devido lugar, designadamente no âmbito da impugnação da decisão proferida em matéria de facto, fazendo funcionar o disposto no art.º 662º, nºs 1 e 2.
De acordo com a lei do processo, na jurisdição voluntária, o juiz pode deixar de produzir prova indicada pelos interessados, segundo um critério de conveniência. Não constitui nulidade processual a sua não produção, porque não se trata de omissão de uma formalidade (processual).
É este o nosso entendimento.
Mas ainda que fosse devido verificar aqui se era conveniente inquirir as testemunhas arroladas pela Requerente/recorrente e, por consequência, também as testemunhas arroladas pelas suas irmãs F… e E… [...], tal análise sempre seria feita à luz dos elementos que, ainda assim, o processo disponibiliza e considerando sempre o interesse do Beneficiário que o processo visa acautelar e proteger.
Os autos evidenciam dissidências entre a D… e as irmãs F… e E… relativamente à ocupação da casa onde habita, por direito próprio, o irmão C…; não apenas um interesse altruísta no acompanhamento daquele, mas questões pessoais e egoístas de ordem económica, ligadas ao exercício de direitos relacionados com atos de disposição de seus pais e a bens e direitos que compõem as suas heranças.
Depois dos progenitores terem doado, em 1998, a casa de habitação à filha D…, com reserva do direito de habitação a favor dos dois filhos deficientes, ficando ela também obrigada a ajudar os doadores nos cuidados a dispensar-lhes e a vigiar e a assistir aqueles irmãos sempre que os pais estivessem ausentes, houve necessidade de os doadores instaurarem uma ação judicial contra a D… (proc. nº 814/10.3TBVCD) que culminou com a transação judicial de 6.5.2013 [...] em que esta se obrigou a suportar o salário de uma empregada doméstica contratada para cuidar dos dois irmãos deficientes e a vigiar o desempenho dessa empregada; aliás, em conformidade com a obrigação que já anteriormente assumira no contrato de doação para a hipótese de não poder ser ela a prestar pessoal e diretamente os cuidados a favor dos doadores e dos dois irmãos necessitados.
Posteriormente, o entretanto falecido B…, por via dos testamentos que efetuou, alegou a falta de cumprimento de obrigações assumidas pela recorrente na doação relativamente aos cuidados a prestar em benefício dos doadores e dos irmãos deficientes e passou a manifestar-se mais confiante na prestação de tais cuidados pelas filhas E… e F…, dispondo por isso a seu contento nos anos de 2014 e 2016 (o filho G… faleceu em novembro do ano de 2019), reconhecendo-lhes o direito de frequentar a todo o tempo, e mesmo habitar, sem qualquer impedimento nem distúrbio, a casa de habitação onde os então já interditos residiam (e residem), com a condição da prestação dos cuidados até à sua morte.
Estas provas apontam claramente a última vontade do pai dos interessados, como sendo a de que a salvaguarda dos cuidados a prestar aos filhos portadores de deficiência e por causa dela, agora apenas ao filho sobrevivo C…, aqui Beneficiário, fosse garantida pelas irmãs E… e F…, devendo deixar de o ser pela filha D… em quem os confiara, deixando de confiar."
[MTS]
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