Coloca-se, assim, a questão de saber se o Conselho da Europa beneficia de imunidade de jurisdição e, por via disso, se os tribunais portugueses estão impedidos de tramitar e julgar a presente ação.
No sentido afirmativo pronunciou-se a sentença recorrida que, aderindo ao entendimento explanado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02.06.2020 (processo nº 15998/18.4T8LSB.L1) [...], considerou que, segundo os princípios gerais de Direito Internacional Público, as Organizações Internacionais gozam de imunidade de jurisdição absoluta e, por isso, os tribunais portugueses estão impedidos de julgar a atuação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos no exercício das suas funções, enquanto órgão do Conselho da Europa, pelo que, concluindo pela verificação da exceção dilatória de jurisdição do Conselho da Europa, geradora da incompetência absoluta, em razão da nacionalidade, dos tribunais portugueses, nos termos do disposto nos artigos 96, alínea a), 97º, 99º, nº 1, 576º, nº 2 e 577º, alínea a), todos do CPC, absolveu da instância o réu Conselho da Europa.
Contra este entendimento, insurge-se a autora, sustentando que a tese seguida na sentença recorrida está em contradição com o artigo 1º do Acordo Geral sobre Privilégios e Imunidades do Conselho da Europa, a que o Governo português aderiu através do Decreto 41/82, de 7.04, o qual estabelece que «o Conselho da Europa goza de personalidade jurídica» e «tem capacidade para ser parte em juízo».
Mais argumenta que a «imunidade de jurisdição » de que goza em Portugal o Conselho da Europa e que vem consagrada no artigo 3º do Acordo Geral sobre Privilégios e Imunidades do Conselho da Europa, é apenas a das «imunidades e privilégios necessários ao exercício das suas funções », como resulta da conjugação desta norma com o disposto no artigo 40º, alínea a), do Estatuto do Conselho da Europa, podendo, por isso, os tribunais portugueses julgar a atuação do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, enquanto órgão daquele Conselho.
Argumenta ainda resultar, “a contrario sensu” do disposto no artigo 21º do referido Acordo Geral, que «qualquer litígio entre o Conselho e particulares» que não seja relativo a «matéria de fornecimentos, trabalhos ou compras imobiliárias efectuadas por conta do Conselho» pode ser dirimido nos tribunais portugueses, uma vez que apenas «fica sujeito a arbitragem administrativa » o litígio relativo a esta matéria.
Conclui, assim, que a sentença recorrida viola, de forma clara e inequívoca, não só o disposto no artigo 1º do «Acordo Geral sobre Privilégios e Imunidades do Conselho da Europa» e na alínea a) do artigo 40º do Estatuto do Conselho da Europa, como também o artigo 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, que consagra o acesso ao direito e o direito à tutela jurisdicional efetiva.
Vejamos.
Não há dúvida que no caso dos autos assume relevo a específica qualidade do réu demandado na presente ação, ou seja, o Conselho da Europa enquanto Organização Internacional, fundada a 5 de maio de 1949 e cujo Estatuto foi assinado em Londres em 05.05.1949.
O Conselho da Europa é a principal organização de defesa dos Direitos Humanos na Europa. Os seus objetivos são, de acordo com o disposto no artigo 1º do seu Estatuto, a defesa dos direitos humanos, o desenvolvimento democrático e a estabilidade político-social na Europa.
Dele faz parte o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, criado em 1959 sob a designação de Tribunal Europeu dos Direitos do Homem para “assegurar o respeito dos compromissos que resultam, para as Altas Partes Contratantes” da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (atualmente designada como Convenção Europeia dos Direitos Humanos) e seus protocolos e que, desde 1998, configura o único sistema internacional de proteção dos direitos humanos de natureza exclusivamente jurisdicional, garantindo o acesso direto de todos os indivíduos a um tribunal internacional permanente para apresentar queixas por alegada violação dos direitos previstos na CEDH e apreciando e decidindo todos os casos à luz de critérios estritamente jurídicos.
São quarente e sete os Estados que se integram no Conselho da Europa, incluindo Portugal que, através da Lei nº 9/76, de 31 de dezembro, aprovou o Tratado de Adesão ao Conselho da Europa e, pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, aprovou para ratificação o texto da CEDH (e dos seus protocolos), elaborada no âmbito do Conselho da Europa, assinada em Roma, no dia 4 de novembro de 1950, e entrada em vigor na ordem internacional no dia 3 de setembro de 1953.
Daqui decorre que todas as normas constantes destas convenções e acordos internacionais vigoram na ordem interna portuguesa e vinculam internacionalmente o Estado Português, nos termos do disposto no artigo 8º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
Assim, quanto à matéria em causa, estipula o artigo 40.º, alínea a), do Estatuto do Conselho da Europa que «O Conselho da Europa, os representantes dos Membros e o Secretariado gozam, nos territórios dos Membros, das imunidades e privilégios necessários ao exercício das suas funções.».
Nos termos da alínea b) deste mesmo artigo, foi assinado em Paris em 2 de setembro de 1949, o Acordo Geral sobre os Privilégios e Imunidades do Conselho da Europa, aprovado por Portugal pelo Decreto nº 41/82, de 07.04, cujo artigo 1º, na tradução em português do texto original, preceitua que «o Conselho da Europa goza de personalidade jurídica. Tem capacidade para contratar, adquirir e alienar bens móveis e imóveis e para ser parte em juízo».
E estabelece no seu artigo 3º, ainda segundo a versão portuguesa, que « O Conselho e os seus bens e haveres gozam, onde quer que se encontrem e quem quer que seja o seu detentor, de imunidade de jurisdição, a menos que o Comité de Ministros a ela tenha, em determinado caso, expressamente renunciado. A renúncia não pode, porém, estender-se a medidas de carácter cominatório ou executivo.”.
Ora, basta conjugar o disposto neste artigo 3º, com a norma contida no artigo 40º, alínea a) do Estatuto do Conselho da Europa para facilmente se concluir ser inquestionável que o Conselho da Europa goza de imunidade de jurisdição nos territórios dos seus Estados membros [...].
Só assim não será nos casos concretos em que haja renúncia expressa dessa imunidade por parte do Comité de Ministros.
De salientar que, embora a tradução em português do referido artigo 3º possa, eventualmente, criar a dúvida sobre se essa imunidade reporta-se apenas e tão só “aos bens e haveres do Conselho”, basta atentarmos nas versões oficiais em francês e inglês, para afastar quaisquer dúvidas sobre a imunidade de jurisdição do próprio Conselho, enquanto organização internacional.
Na verdade, dispõe este artigo, na sua versão original, que «Le Conseil, ses biens et avoirs, quels que soient leur siège et leur détenteur, jouissent de l'immunité de juridiction, sauf dans la mesure où le Comité des Ministres y a expressément renoncé dans un cas particulier. Il est toutefois entendu que la renonciation ne peut s'étendre à des mesures de contrainte et d'exécution.»
Do mesmo modo, estabelece-se, na versão inglesa, que «The Council, its property and assets, wheresoever located and by whomsoever held, shall enjoy immunity from every form of legal process except in so far as in any particular case, the Committee of Ministers has expressly authorised the waiver of this immunity. It is, however, understood that no waiver of immunity shall extend to any measure of execution or detention of property.».
É que, diferentemente do que acontece na versão oficial portuguesa, as versões oficiais francesa e inglesa, contemplam uma vírgula depois da palavra “Conselho”, o que permite, só por si, concluir de forma clara e inequívoca, que, segundo o disposto no artigo 40.º, alínea a), do Estatuto do Conselho da Europa e no artigo 3º do «Acordo Geral sobre Privilégios e Imunidades do Conselho da Europa, o Conselho da Europa goza de imunidade de jurisdição.
Daí que, nesta parte, se discorde do entendimento explanado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02.06.2020 (processo nº 15998/18.4T8LSB.L1), a que aderiu a sentença recorrida, no sentido de que “nem do Estatuto do Conselho da Europa, nem do Acordo Geral sobre os Privilégios e Imunidades do Conselho da Europa resulta expressamente que o Conselho da Europa, enquanto tal, goza de imunidade de jurisdição ”; que “inexiste norma expressa que consagre a imunidade de jurisdição do Conselho da Europa” e que para apurar essa imunidade “ há que lançar mão dos princípios gerais de Direito Internacional público sobre a imunidade de jurisdição das Organizações Internacionais”, pois, como acabamos de referir existe norma expressa a reconhecer-lhe tal imunidade.
Mas, à parte desta divergência, a verdade é que, carece de total fundamento a afirmação feita pela recorrente de que a sentença recorrida violou as disposições do artigo 40.º, alínea a), do Estatuto do Conselho da Europa e do artigo 3º do «Acordo Geral sobre Privilégios e Imunidades do Conselho da Europa.
Do mesmo modo não se vislumbra que a decisão recorrida ao reconhecer imunidade de jurisdição ao Conselho da Europa esteja em contradição com o artigo 1º do Acordo Geral sobre Privilégios e Imunidades do Conselho da Europa, na medida em que este artigo reconhece, expressamente, que o «Conselho da Europa goza de personalidade jurídica» e «tem capacidade para ser parte em juízo».
Desde logo porque, contrariamente ao que parece sugerir a recorrente, não só não se pode confundir a personalidade e capacidade judiciárias do Conselho da Europa, com a imunidade de jurisdição nos tribunais nacionais dos Estados-membros do Conselho da Europa, como também a suscetibilidade de ser parte e de estar, por si, em juízo não exclui a imunidade de jurisdição.
A imunidade de jurisdição das organizações internacionais tem como pressuposto que tais entidades formadas pela reunião de Estados soberanos possuem titularidade de direitos e deveres internacionais, não podendo nenhum destes Estados exercer jurisdição sobre elas. [...]
A razão de ser da imunidade das organizações internacionais radica, assim, na necessidade funcional, ou seja, na necessidade de as mesmas cumprirem, com independência, os objetivos e funções previstas no seu tratado constitutivo, afastando-se, deste modo, a ingerência dos Estados membros e a aplicação do seu direito interno.
Esta imunidade de jurisdição do Conselho da Europa, expressamente prevista no artigo 40.º, alínea a), do Estatuto do Conselho da Europa e no artigo 3º do « Acordo Geral sobre Privilégios e Imunidades do Conselho da Europa, é vinculativa para os Estados que dele fazem parte e que assinaram a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pelo que não pode o mesmo ser convocado para comparecer perante qualquer tribunal dos Estados membros contratantes, a menos que o Comité de Ministros tenha consentido no exercício da jurisdição.
Vale tudo isto por dizer que, sendo Portugal um Estado membro do Conselho da Europa, inquestionável se torna estarem os tribunais portugueses impedidos de julgar a atuação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos no exercício das suas funções, enquanto órgão daquele Conselho.
E nem se diga, como o faz a recorrente, resultar, à contrário, do disposto no artigo 21º do referido Acordo Geral que «qualquer litígio entre o Conselho e particulares » que não seja relativo a « matéria de fornecimentos, trabalhos ou compras imobiliárias efectuados por conta do Conselho » pode ser dirimido nos tribunais portugueses, pois nem mesmo quanto a esta matéria excecional, o citado artigo atribui competência aos tribunais nacionais para dirimir estes litígios, estabelecendo apenas que os mesmos ficam sujeitos «a arbitragem administrativa, cujas modalidades serão fixadas por despacho do Secretário-Geral aprovado pelo Comité de Ministros».
Do mesmo modo não se vislumbra que a sentença recorrida, ao entender que a imunidade de jurisdição de que goza o Conselho da Europa limita a atuação jurisdicional dos tribunais portugueses, impedindo-os de julgar a atuação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos no exercício das suas funções, viola o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
Isto porque a imunidade de jurisdição não tem o condão de impedir qualquer ação judiciária, indicando apenas que o tribunal escolhido (no caso os tribunais portugueses) é inadequado.
E porque o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva não reconhece aos cidadãos o direito de escolherem livremente o tribunal para julgamento do litígio, cabendo, antes, a cada Estado determinar a competência dos seus tribunais e aderir a convenções internacionais, sem que os particulares possam deixar de respeitar a opção legislativa tomada.
Assim, sendo Portugal membro do Conselho da Europa e tendo aderido ao Acordo Geral sobre os Privilégios e Imunidades do Conselho da Europa, dúvidas não restam que o mesmo está obrigado a respeitar a imunidade de jurisdição do Conselho da Europa prevista nos artigos 40.º, alínea a), do Estatuto do Conselho da Europa e 3.º do referido Acordo Geral, a qual constitui uma exceção dilatória, geradora da incompetência absoluta dos tribunais nacionais, obstativa do conhecimento do mérito da causa e determinante da absolvição do Conselho da Europas da instância, nos termos dos artigos. 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, 576º, nº 2 e 577.º, alínea a), todos do Código de Processo Civil.
Daí nenhuma censura merecer a sentença recorrida ao considerar verificada esta exceção, ficando, por isso, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pela recorrente."
*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, a imunidade de jurisdição não pode ser qualificada como uma situação de incompetência absoluta pela simples razão de que, no recorte legal daquela incompetência (art. 96.º CPC), em parte alguma se refere uma incompetência em função das pessoas e, menos ainda, da pessoa do demandado.
Neste sentido, não é muito feliz a afirmação do STJ de que "a imunidade de jurisdição não tem o condão de impedir qualquer ação judiciária, indicando apenas que o tribunal escolhido (no caso os tribunais portugueses) é inadequado". O problema não é de escolha pelo demandante de um tribunal que não seja o "inadequado", mas antes de inadmissibilidade da acção em qualquer tribunal no qual seja invocada aquela imunidade. Perante a imunidade de jurisdição do demandado não há tribunais "adequados" e tribunais "inadequados".
A imunidade de jurisdição é uma excepção dilatória inominada (art. 576.º, n.º 2).
MTS