"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/04/2022

Jurisprudência 2021 (177)


Assembleia de condóminos; deliberações;
anulação; legitimidade passiva*


1. O sumário de RE 14/7/2021 (37/21.6T8ABF.E1) é o seguinte:

Se ao administrador compete executar as deliberações da assembleia de condóminos, nos termos do artigo 1436.º, alínea h), do Código Civil, por igualdade de razão cumpre-lhe sustentar a existência, a validade e a eficácia dessas mesmas deliberações, em representação do condomínio.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"É pelas conclusões do recurso que se delimita o se âmbito de cognição, salvo questões de conhecimento oficioso (artigo 639.º do CPC).

Discute-se a questão de saber se nas ações de impugnação das deliberações de Assembleia de Condóminos é o Condomínio que tem legitimidade para ser demandado ou se o Autor deveria de ter intentado a acção contra todos os condóminos (com excepção dos que votaram desfavoravelmente a deliberação impugnada).

Foi julgada procedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva do réu com o fundamento de que as acções de impugnação de deliberação da assembleia de condóminos devem ser propostas contra os condóminos, individualmente considerados, que aprovaram a deliberação impugnanda e não contra o condomínio representado pelo respectivo administrador.

É hoje bem conhecida a profunda divergência jurisprudencial que existe, em especial nos Tribunais Superiores e até na doutrina sobre a questão aqui em apreço.

Em síntese, enquanto uma orientação se perfila no sentido de que as ações de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos devem ser propostas contra o próprio condomínio representado pelo respetivo administrador, tendo em conta o preceituado no artigo 12.º, alínea e), do CPC, conjugado com o disposto nos artigos 1437.º, n.ºs 1 a 3, e 1436.º, alínea h), apelando aos critérios interpretativos do artigo 9.º, n.º 3, todos do CC; outra orientação vai no sentido de que o artigo 1433.º, n.º 6, do CC, embora o não refira expressamente, oferece um vetor decisivo no sentido de afastar a legitimidade do próprio condomínio e de afirmar a legitimidade dos condóminos, tornando inquestionável que a ação terá necessariamente de ser proposta contra todos aqueles que votaram a favor da aprovação da deliberação cuja anulação se pretende, ainda que representados pelo administrador ou porventura por pessoa que a assembleia designe para o efeito.

Como refere o Ac. do STJ, de 4-5-2021, proc. n.º 3107/19.7GRG-G1, disponível em www.dgsi.pt «O artigo 12.º, alínea e), do actual CPC, reproduzindo o artigo 6.º do CPC de 1961, na versão proveniente da revisão de 1995/96, atribui personalidade judiciária ao “condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador”.

Esta disposição legal remete para o artigo 1437.º do Código Civil, que prevê especificamente a “legitimidade do administrador” para agir em juízo activa e passivamente, nalguns casos, e também para o artigo 1436.º do mesmo Código que discrimina as diversas funções que competem ao administrador, nas quais se inclui a execução das deliberações da assembleia [alínea h)].

Por sua vez, o artigo 1433.º, n.º 6, do Código Civil prevê que “a representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as ações compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia designar para o efeito”.

A deliberação de condóminos é a forma por que se exprime a vontade da assembleia de condóminos (artigos 1431.º e 1432.º, ambos do Código Civil), órgão deliberativo a quem compete a administração das partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal (artigo 1430.º, n.º 1, do Código Civil), sendo o administrador o órgão executivo da administração (artigos 1435.º a 1438.º, todos do Código Civil).

Como bem se refere no acórdão da Relação do Porto, de 13/2/2017, proferido no processo n.º 232/16.0T8MTS.P1, parcialmente transcrito no acórdão deste Supremo, de 24/11/2020, já citado:

“Se a deliberação exprime a vontade da assembleia de condóminos, estruturalmente percebe-se que seja essa entidade, porque vinculada pela deliberação, a demandada em ação em que se questione a existência, a validade ou a eficácia de uma sua qualquer deliberação.

Por outro lado, mal se percebe que os condóminos, pessoas singulares ou coletivas, dotados de personalidade jurídica, careçam de ser representados judiciariamente pelo administrador do condomínio. De facto, a representação judiciária apenas se justifica relativamente a pessoas singulares desprovidas total ou parcialmente de capacidade judiciária ou relativamente a entidades coletivas, nos termos que a lei ou respetivos estatutos dispuserem, ou ainda relativamente aos casos em que as pessoas coletivas ou singulares se venham a achar numa situação de privação dos poderes de administração e disposição dos seus bens por efeito da declaração de insolvência”.

Por isso, entende-se que, quando no n.º 6 do artigo 1433.º do Código Civil se faz referência aos condóminos, o legislador incorreu nalguma incorreção de expressão, dizendo menos do que queria, pois parece ter tido em mira uma entidade colectiva – a assembleia de condóminos –, o condomínio vinculado pelas deliberações impugnadas e cuja execução compete ao administrador, como já se viu.

Se ao administrador compete executar as deliberações da assembleia de condóminos, nos termos do artigo 1436.º, alínea h), do Código Civil), por igualdade de razão cumpre-lhe sustentar a existência, a validade e a eficácia dessas mesmas deliberações, em representação do condomínio.

Concluímos, assim, com o devido respeito por outros entendimentos, que a legitimidade passiva na ação de impugnação de deliberação da assembleia de condóminos, compete ao condomínio, representado pelo administrador.

Esta solução, como refere Miguel Mesquita, é a que permite um exercício mais ágil do direito de ação, pois que os “pressupostos processuais não devem servir para complicar, desnecessariamente, o conhecimento do pedido e a resolução dos litígios, finalidades precípuas do processo civil”.

Com ela afastam-se problemas que resultariam da obrigatoriedade de demandar, em litisconsórcio necessário, os condóminos que votaram a favor da deliberação inválida, seja pelo elevado número de condóminos de certos edifícios, seja pela impossibilidade prática, na esmagadora maioria das vezes, de proceder à sua identificação, como sucede no caso dos autos, na versão apresentada pela recorrente.

A citação do administrador não evitaria esse problema, porquanto se trata de apurar a legitimidade passiva para a acção, ou seja, quem devia ser demandado e não quem os representa, sendo que, na tese que sustentamos, também o administrador representa o condomínio. Trata-se de saber quem deve figurar como parte, do lado passivo, e não o seu representante, questões distintas, como é evidente.

Atento o pedido formulado – de anulação da deliberação da assembleia de condóminos - de acordo com a tese que sustentamos, cremos não haver dúvidas de que a legitimidade passiva é do condomínio, ainda que representado pelo seu administrador».

Sufragamos na íntegra a fundamentação constante do acórdão supra mencionado (no mesmo sentido cfr. Ac. RP, proc. n.º 232/16.0T8MTS.P1, Ac. RC, proc. n.º 146/19.1T8NZR.C1, Ac. RL, proc. n.º 9441/17.3T8SBL.L1.2 todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Por todo o exposto, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, substituindo-a por outra que declara a legitimidade passiva do R. Condomínio do Edifício (…).


*3. [Comentário] Salva a devida consideração, tal como se referiu em Jurisprudência 2021 (82) (aliás, abandonando uma anterior orientação), não se pode concordar com o decidido no acórdão.

Pode agora acrescentar-se que o argumento de que "o legislador incorreu nalguma incorreção de expressão" perdeu, entretanto, qualquer força persuasiva. Com efeito, a L 8/2022, de 10/1, alterou vários artigos do CC em matéria de propriedade horizontal, deixando intocado o disposto no art. 1433.º, n.º 6, CC.

O que infelizmente aconteceu foi que -- como já referiu (clicar aqui) -- se perdeu uma oportunidade para tornar claro o que, no meio de enormes confusões, vinha a ser interpretado de forma inaceitável. Mas isso é outra história.

MTS