"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/11/2022

Jurisprudência 2022 (77)


Apoio judiciário; protecção jurídica;
decisão; recorribilidade


1. O sumário de STJ 30/3/2022 (12/21.0T8VCT-A.S1) é o seguinte:

I. É irrecorrível a decisão proferida sobre a impugnação judicial da decisão sobre o pedido de protecção jurídica (n.º 5 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho).

II. Sendo inadmissível o recurso, é inútil averiguar se a decisão de que o reclamante pretende interpor recurso de revista per saltum está ou não abrangida pelo n.º 1 do artigo 644.º do Código de Processo Civil.

III. Não resulta da Constituição a imposição da possibilidade de recurso de uma decisão judicial que, julgando a impugnação de uma decisão administrativa de negação de um pedido de apoio judiciário, a julgue improcedente, por falta de verificação dos pressupostos de concessão da modalidade de apoio requerida.

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I. A fls. 50 foi proferido o seguinte despacho:

1. AA vem reclamar para o Supremo Tribunal de Justiça do despacho de 22 de Novembro de 2021 que não admitiu o recurso per saltum interposto da decisão de 18 de Janeiro de 2021 do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível ... – Juiz ..., que julgou improcedente a impugnação da decisão do Instituto da Segurança Social, I. P. – Centro Distrital ..., que “indeferiu o pedido de apoio judiciário por si formulado”, por ser “irrecorrível, ao abrigo do disposto no artigo 28.º, n.º 5” da Lei do Apoio Judiciário, e não se enquadrar no n.º 1 do artigo 644.º do Código de Processo Civil

Como fundamentos da reclamação, invoca:

– Tratar-se de «uma decisão que põe termo a incidente processado autonomamente” e, portanto, abrangida pelo nº 1 do artigo 644.º do Código de Processo Civil;

– A jurisprudência constitucional, “mais precisa e concretamente, (…) os acórdãos n.º 651/2007 (admite-se que o reclamante se refira ao acórdão n.º 40/2008, tirado no proc. n.º 651/2007), n.º 43/2008 e n.º 362/2010”,

– Ter sido admitido o recurso de revista “num processo paralelo correndo pela jurisdição administrativa, o Proc. n.º 1894/18.9BEBRG-R4-R1 do Tribunal Central Administrativo Norte…”.

Notificado, o Centro Distrital ... Segurança Social não se pronunciou.

2. Nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho (Acesso ao Direito e aos Tribunais), é irrecorrível a decisão proferida sobre a impugnação judicial da decisão sobre o pedido de protecção jurídica (assim, Salvador da Costa, O Apoio Judiciário, 10.ª ed., Coimbra, 2021, pág.103).

A decisão que julgou improcedente a impugnação fundamentou a improcedência no não preenchimento dos “critérios legais estabelecidos na Lei do Apoio Judiciário”“De acordo com a situação apurada conclui-se que o requerente–impugnante, à luz dos critérios legais estabelecidos na Lei do Apoio Judiciário, apenas poderia beneficiar de uma modalidade de pagamento faseado, proposta que não foi aceite pelo mesmo. Nestes termos, da análise da situação em causa e da decisão proferida, conclui-se inexistir fundamento legal para conceder provimento à impugnação”.

3. Não resulta da Constituição a imposição da possibilidade de recurso de uma decisão judicial que, julgando a impugnação de uma decisão administrativa de negação de um pedido de apoio judiciário, a julgue improcedente, por falta de verificação dos pressupostos de concessão da modalidade de apoio requerida.

O Tribunal Constitucional tem apreciado por diversas vezes a questão de saber se o direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais (n.º 1 do artigo 20.º da Constituição) implica ou inclui o direito de recurso.

É manifesto que não vem agora ao caso tratar do direito ao recurso previsto no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição.

Não se questiona que a previsão constitucional da existência de tribunais hierarquicamente organizados implique que seja constitucionalmente inadmissível que o legislador ordinário elimine qualquer hipótese de recurso de decisões jurisdicionais (cfr., a título de exemplo, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 287/90 ou 43/2008), não obstante caber na sua liberdade de conformação a definição das regras de admissibilidade de recurso; ou que o direito de acesso ao direito e aos tribunais seja um direito fundamental, análogo aos direitos, liberdades e garantias (cfr. acórdãos citados).

Igualmente se sabe que, em diversas decisões, o Tribunal Constitucional seguiu a orientação sustentada no voto de vencido aposto ao acórdão n.º 65/88, da qual se salienta a afirmação de que “penso que há-de considerar-se constitucionalmente garantido — ao menos por decurso do princípio do Estado de direito democrático — o direito à reapreciação judicial das decisões judiciais que afectem direitos fundamentais, o que abrange não apenas as decisões condenatórias em matéria penal — como se reconhece no acórdão — mas também todas as decisões judiciais que afectem direitos fundamentais constitucionais, pelo menos os que integram a categoria constitucional dos «direitos, liberdades e garantias» (artigos 25° e seguintes da CRP).”

É justamente o caso dos acórdãos 40/08 (proc. n.º 651/2007), 43/2008 e 362/10, citados pelo reclamante e respeitantes à questão que agora está em causa.

Assim, no acórdão n.º 43/2008, de 23 de Janeiro de 2008, cujo objecto consistia na “ questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa dos artigos 26.º, n.º 2, e 28.º, nº 1, da Lei 34/2004, de 29 de Julho, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso da decisão do tribunal de comarca que decida a impugnação judicial da decisão negativa da segurança social., decidiu-se que “a protecção constitucional aos direitos fundamentais não impõe um controlo por um tribunal  hierarquicamente superior da decisão do tribunal  que decidiu a impugnação” do indeferimento do pedido de apoio judiciário.

Seguiu-se neste acórdão n.º 43/2008 a fundamentação adoptada no proc. n.º 651/2007 (acórdão n.º 40/2008, também de 23 de Janeiro de 2008), ambos tirados a propósito da versão do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004 anterior à alteração introduzida pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, que lhe acrescentou o n.º 5, e que decidiu “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 28.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, interpretado no sentido de que não é admissível recurso da decisão judicial que julgue improcedente a impugnação da decisão administrativa que indeferiu pedido de concessão de apoio judiciário”.

O acórdão n.º 362/2010, de 6 de Outubro de 2010, já relativo à actual versão do artigo 28.º, decidiu manter “a decisão reclamada, que não julgou inconstitucional a norma constante do n.º 5 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, na redacção dada pela Lei 47/2007, de 28 de Agosto, com o sentido de que não é passível de recurso a decisão do tribunal de comarca que aprecie a impugnação judicial de indeferimento do pedido de apoio judiciário pela Segurança Social, negando-lhe provimento”.

4. Sendo inadmissível o recurso, nos termos do n.º 5 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, é inútil averiguar se a decisão de que o reclamante pretende interpor recurso de revista per saltum está ou não abrangida pelo n.º 1 do artigo 644.º do Código de Processo Civil.

5. Quanto à decisão que admitiu o recurso de revista “num processo paralelo correndo pela jurisdição administrativa, o Proc. n.º1894/18.9BEBRG-R4-R1 do Tribunal Central Administrativo Norte…”, esclareceu o Supremo Tribunal Administrativo, na decisão junta pelo reclamante: “É patente que estava em causa admitir ou não admitir o recurso de revista interposto pelo ora reclamante, mas também é patente que a decisão de «não admissão» está toda ela baseada na decisão proferida sobre a questão do «justo impedimento». Tanto assim, que o ora reclamante apenas fundamenta a presente «reclamação» em erro de julgamento sobre essa questão. Destarte, a circunstância de estar posto em causa um «acórdão» da 2.ª instância e não um «despacho do relator», e o facto de o objecto litigado ser, directamente, a decisão sobre o «justo impedimento», e apenas reflexamente, a de «não admissão da revista», conduz a que o acórdão 02.07.2021 seja passível, ele próprio, de recurso de revista, e não de reclamação (...)”.

Não tem portanto, paralelo com a presente reclamação.

6. Nestes termos, indefere-se a reclamação.

Custas pelo reclamante.

II. AA veio reclamar deste despacho, sustentando (a) a “admissibilidade do recurso de apelação convolado em revista”, b) a “admissibilidade do recurso de revista per saltum concretamente interposto”.

II. Relativamente à questão a), o reclamante sustenta que o despacho reclamado “não interpreta a norma conjugada dos n.ºs 4 e 5 do artigo 28.º da lei n.º 34/2008 no sentido materialmente correcto, nem constitucionalmente conforme, nem, ademais, conforme ao direito eurocomunitário directamente aplicável”

Quanto à questão b), alega que o objecto do recurso de revista per saltum «é apenas a apreciação da nulidade da sentença, devendo “o julgamento da matéria de facto controvertida” “ter lugar, subsequentemente, no tribunal singular a quo”.

O Centro Distrital ... Segurança Social não se pronunciou.

III. Entende-se que a interpretação correcta dos n.ºs 4 e 5 do artigo 28 da Lei n.º 34/2008 é a que consta do despacho reclamado, que se reitera, nada havendo a acrescentar (questão a)).

No que toca à questão b), diz-se igualmente que os acórdãos do Tribunal Constitucional citados pelo reclamante foram analisados no despacho reclamado, no que se refere à posição tomada sobre a questão de constitucionalidade colocada, análise que igualmente se reitera.

No que toca às versões inglesa, espanhola, francesa e italiana do n.º 3 do artigo 15.º da Directiva 2002/8/CE do Conselho, de 27 de Janeiro de 2003, entende-se que não consagram a necessidade de dois graus de recurso judicial da decisão de rejeição dos pedidos de apoio judiciário. Não se vê, assim, como sustentar a desconformidade do regime português de irrecorribilidade da sentença, previsto no n.º 5 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho.

IV. Nestes termos, indefere-se a reclamação."

[MTS]