"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/02/2022

Jurisprudência 2021 (139)


Incidente de habilitação;
herdeiros; posição processual*

1. O sumário de RL 21/6/2021 (709/19.5T8LSB-A.L1-6é o seguinte:

I – A obrigação de prestar contas tem carácter patrimonial e por isso é susceptível de transmissão para os herdeiros do cabeça-de-casal.

II – Sendo herdeiros da falecida cabeça-de-casal ré na acção de prestação de contas a própria autora e os dois requeridos no incidente de habilitação de sucessores da ré, não poderia a autora ser habilitada como sucessora por se verificar a figura jurídica da “confusão” e nem podem os requeridos ser habilitados desacompanhados da autora, pois são os três, em conjunto, os sucessores dessa obrigação de prestar contas.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"B)–O Direito

[...] 2.-Se a obrigação de prestar contas pela cabeça-de-casal é intransmissível por sua morte

O art. 2095º do CC (Código Civil) estabelece:

«O cargo de cabeça-de-casal não é transmissível em vida nem em morte».

Mas daí não decorre a impossibilidade legal de transmissão da obrigação da cabeça-de-casal de prestar contas, pelo que não acompanhamos o entendimento plasmado no Ac do STJ de 29/11/2005 (P. 05B3342 - in www.dgsi.pt) citado pelo apelante.

Na verdade, como se expôs no Ac do STJ de 16/06/2011 (P. 371/05.0TVLSB.L1 - in www.dgsi.pt) «uma coisa é a intransmissibilidade do cargo do cabeça-de-casal e outra bem diferente é a própria obrigação de prestar contas por quem administra património alheio», e «Traduzindo-se a obrigação de prestar contas essencialmente no apuramento de receitas obtidas e despesas realizadas por quem administra bens alheios, com vista a apurar-se um saldo final», trata-se de obrigação de carácter patrimonial e por isso, susceptível de transmissão para os herdeiros do cabeça-de-casal (no mesmo sentido, cfr Ac do STJ de 22/03/2018 - P. 861/08.5TBBCL-E.G1.S1, e Ac da RG de 15/10/2013 - P. 3257/09.5TBBRG-A.G1, e Ac da RC de 28/06/2016 - P. 996/05.6TBACB-B.C1, designadamente, todos em www.dgsi.pt). Também neste sentido se pronunciou João António Lopes Cardoso, escrevendo que essa obrigação «é transmissível via hereditária (ibidem, art. 2025º-1), incumbindo, pois, aos herdeiros do cabeça-de-casal que dela se não desobrigou» (in Partilhas Judiciais, Vol. III, pág. 57).

Concluindo, a obrigação de prestação de contas da ré I… tem natureza patrimonial e não se extinguiu por mero efeito da sua morte, pelo que, em abstracto, é susceptível de transmissão para os seus herdeiros.

Resulta dos art. 269º nº 1 al a), 270º nº 1 e 276º nº 1 al. a) do CPC que a instância se suspende com o falecimento de uma das partes e que a suspensão apenas cessa com a notificação da decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida.

E o nº 1 do art. 351º desse Código estatui:

«A habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda, pode ser promovida tanto por qualquer das partes que sobreviverem como por qualquer dos sucessores e deve ser promovida contra as partes sobrevivas e contra os sucessores do falecido que não forem requerentes».

Sobre norma idêntica do CPC anterior (nº 1 do art. 371) explicou Lopes Cardoso:

«Vê-se que a legitimidade passiva para o incidente de habilitação coincide com a legitimidade activa, na medida em que tal incidente deve ser dirigido precisamente contra aqueles que também o podiam ter requerido. Mas não o requereram.

Enquanto, porém, a legitimidade activa não depende de todos os que podiam requerer a habilitação, a legitimidade passiva exige um litisconsórcio necessário de todos quantos a podiam requerer e não a requereram. A habilitação não produziria efeito útil se não fossem chamados todos a contestá-la.

Enquanto, porém, a legitimidade activa não depende de todos os que podiam requerer a habilitação, a legitimidade passiva exige um litisconsórcio necessário de todos quantos a podiam requerer e não a requereram. A habilitação não produziria efeito útil se não fossem chamados todos a contestá-la.

O imperativo «deve ser promovida», além de estabelecer esse litisconsórcio necessário, impõe ao requerente o dever de, no requerimento inicial, apontar expressamente todos os interessados que a disposição menciona e solicitar a citação ou notificação deles. O juiz não pode substituir-se ao requerente; não pode mandar notificar ou citar os interessados que o mesmo requerente não indique.

Não se ter promovido a habilitação contra algum dos interessados referidos no nº 1 do artigo 371º implica a ilegitimidade dos outros.

O requerimento inicial da habilitação que não seja dirigida contra todos deve ser indeferido liminarmente (…)

Caso o requerimento incompleto passe, por inadvertência, a fieira do despacho liminar, e a habilitação prossiga apenas contra algum dos interessados que a poderiam contestar, a ilegitimidade destes, por desacompanhados, terá de ser declarada na sentença final, impedindo a procedência do incidente» (in Incidentes da Instância, pág. 302/303).

Mas no caso concreto os herdeiros da falecida cabeça-de-casal são a própria autora da acção de prestação de contas e os requeridos - o seu irmão P.. (por direito de representação da sua mãe pré-falecida, que era filha da cabeça-de-casal e do de cujus V…) e o seu tio VM… (filho da cabeça-de-casal e de V...).

Portanto, tanto a requerente como os requeridos sucederam na obrigação de prestação de contas da ré cabeça-de-casal.

Porém, a requerente é a autora na acção principal, pelo que é evidente estar verificada a figura jurídica da «confusão» prevista no art. 868º do CC, nos termos da qual «Quando na mesma pessoa se reúnam as qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, extinguem-se o crédito e a dívida».

Assim, por imperativo legal, não poderia a requerente ser habilitada como sucessora da ré cabeça-de-casal para com ela no lado passivo prosseguir a demanda, mesmo que o tivesse requerido.

Por seu lado, os requeridos não podem ser habilitados como sucessores da ré cabeça-de-casal para com eles no lado passivo prosseguir a acção, desacompanhados da outra herdeira, pois são os três em conjunto os sucessores da obrigação de prestar contas da administração dos bens pela falecida I….

Portanto, o incidente de habilitação tem de improceder."

3. [Comentário] Volta-se a tratar, a propósito do acórdão da RL, de um ponto importante: o da posição dos herdeiros como partes habilitadas (cf. Jurisprudência 2021 (131)).

Salvo o devido respeito, a posição desses herdeiros não deve ser vista como a de herdeiros da obrigação que constitui objecto do processo, nomeadamente, da obrigação de prestar contas. Seria estranho que, com base numa posição que não se transmite -- que é a de cabeça-de-casal --, alguém pudesse adquirir, por sucessão, uma obrigação que é própria de uma posição intransmissível. Como é que se pode justificar que quem não é cabeça-de-casal suceda numa obrigação que é inerente a essa qualidade?

No entanto, apesar da não transmissibilidade da obrigação de prestação de contas pelo cabeça-de-casal, é claro que uma acção de prestação pode ser continuada pelos herdeiros daquela parte. Mas isso sucede, não porque os habilitados sejam herdeiros da obrigação dessa prestação, mas antes porque são herdeiros de quem tinha essa obrigação. Isto é: o título de herdeiro atribui a alguém legitimidade para se substituir à parte falecida (título legitimante), sem que esteja em causa a sucessão na obrigação que é apreciada na acção (título sucessório). 

A habilitação destina-se a permitir a substituição de uma parte falecida pelos seus herdeiros, não a transferir, a título sucessório, o objecto do processo para os herdeiros. Há apenas a substituição de uma parte falecida por uma outra parte. Em tudo o mais (nomeadamente, quanto ao objecto), a instância permanece a mesma.

Em conclusão: a razão não está nem com quem entende que, porque a obrigação de prestação de contas é intransmissível, a acção de prestação tem de se extinguir com a morte do cabeça-de-casal, nem com quem defende que, para que a acção de prestação possa continuar contra os herdeiros do cabeça-de-casal, é necessário pressupor que estes são herdeiros da obrigação de prestação.

MTS