"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/04/2014

Défices legislativos na área do processo civil




1. Pode parecer estranho que, pouco tempo depois da entrada em vigor do nCPC, se fale de défices legislativos na área do processo civil. A verdade é que eles existem em duas áreas com importância prática.


2. A primeira dessas áreas é a do procedimento de injunção e da acção declarativa especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias, ambos regulados pelo regime anexo ao DL 269/98, de 1/9 (RPOP). Neste domínio, seria desejável, além do mais:

– O alinhamento do regime interno da injunção com o regime da injunção para pagamento europeia regulada pelo Reg. 1896/2006; são muitos os aspectos em que o regime interno poderia lucrar com uma aproximação ao regime europeu, nomeadamente no que respeita às garantias de notificação do requerido e aos fundamentos de reapreciação em casos excepcionais;

– O esclarecimento de várias dúvidas que se levantam no âmbito da audiência final da acção declarativa especial e que decorrem de uma pouco salutar desarmonia com o regime do nCPC; é o que se verifica quanto à necessidade de requerer a gravação da audiência (art. 3.º, n.º 3, RPOP), quanto ao limite do número de testemunhas por cada facto (art. 3.º, n.º 5, RPOP) e quanto aos fundamentos de adiamento da audiência (art. 4.º, n.º 1, RPOP).


3. Se, no caso anterior, se pode falar de uma axiological gap, há uma área em que existem verdadeiras lacunas na ordem jurídica portuguesa: essa área é aquela que respeita ao Processo Civil Europeu. A primeira coisa que talvez importe frisar é que os Regulamentos europeus que são fonte do Processo Civil Europeu são automaticamente aplicáveis na ordem interna dos Estados-membros, mas isso não significa que eles sejam auto-suficientes e que não possam (ou devam) ser completados com regras internas daqueles Estados.

A experiência de outras ordens jurídicas demonstra-o claramente. Alguns Estados-membros optam por elaborar regimes de adaptação aos regulamentos europeus (na Alemanha, cada novo Regulamento passou a originar uma nova secção no Livro 11 da ZPO, cuja epígrafe é “Cooperação judiciária na União Europeia”); no Reino Unido tem sido comum incorporar os Regulamentos europeus em legislação interna, integrando, com regras próprias, as suas lacunas.

As necessidades de regulamentação são naturalmente muito distintas em cada um dos Estados-membros, porque estão dependentes dos respectivos regimes internos. Por vezes, pode ser suficiente codificar as comunicações que os Estados-membros podem fazer sobre a aplicação dos Regulamentos europeus. Por exemplo: o art. 13.º, n.º 2, Reg. 1393/2007 permite que qualquer Estado-membro declare que se opõe à citação ou notificação no seu território por agentes diplomáticos ou consulares, excepto se o acto tiver de ser citado ou notificado a um nacional do Estado-membro de origem. A codificação da comunicação tem, pelo menos, a vantagem de garantir o seu fácil conhecimento.

Mas, muito frequentemente, é necessária uma regulamentação expressa para completar o regime europeu. Apenas três exemplos: (i) o art. 17.º, n.º 1, Reg. 1896/2006, estabelece que, se houver oposição à injunção de pagamento europeia, a acção prossegue nos tribunais do Estado-membro, de acordo com as normas do processo civil comum; com referência à ordem jurídica portuguesa impõe-se definir, para além de possíveis problemas de competência, se a acção segue a forma do processo declarativo comum ou pode seguir a forma da acção declarativa especial; (ii) o art. 5.º, n.º 7, Reg. 861/2007 dispõe que, se o pedido reconvencional for superior a € 2.000, a acção de pequeno montante e a reconvenção devem ser tratados nos termos do direito processual aplicável no Estado-membro da tramitação do processo; impõe-se definir em Portugal esses termos; (iii) os art. 50.º e 51.º Reg. 1215/2012 (Bruxelas I a) regulam os recursos no procedimento de recusa de execução (exequatur); importa saber se o recurso é admissível, sem limitações, até ao STJ ou se esse recurso fica sujeito às regras do direito interno (nomeadamente, quanto ao valor da causa e à dupla conforme).

A lacuna existe (naturalmente, numa dimensão muito maior do que o aqui referido) e impõe-se que seja preenchida. O menos importante é a forma como tal pode ser conseguido: através da incorporação no nCPC ou através de uma lei extravagante.


MTS