"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/04/2014

Pactos de jurisdição e swaps: demasiado “nacionalismo” e pouco “europeísmo”?


 
1. Foi amplamente noticiado na comunicação social que, por acórdão proferido em 10/4/2014, a RL considerou nula uma convenção de competência (ou um pacto de jurisdição) constante de um contrato de swap celebrado entre uma empresa e um banco e segundo a qual os litígios que pudessem emergir do cumprimento do contrato teriam de ser decididos nos tribunais ingleses. De acordo com o relato feito na comunicação social, a RL entendeu que “a validade de uma cláusula que elege um foro como sendo o competente para dirimir um litígio tem que ser analisada à luz dos inconvenientes que a mesma envolve para os potenciais aderentes", tendo sido nesta base que a considerou nula.

2. Dando crédito ao que foi referido na comunicação social, o acórdão da RL não seguiu a orientação do TJ na matéria em causa e defendeu uma posição que é contrariada pela doutrina que se pronunciou sobre o tema.

Tendo a convenção de competência sido celebrada por pessoas com domicílio na União Europeia e tendo sido designado como competente o tribunal de um Estado-membro (em concreto, o tribunal de Londres), há que aplicar à análise da validade da referida convenção o disposto no art. 23.º Reg. 44/2001 (que sucedeu ao semelhante art. 17.º CBrux).

Acontece que sobre o carácter exclusivo da aplicação do art. 23.º Reg. 44/2001 (ou do art. 17.º CBrux) na análise da validade dos pactos de jurisdição existe não só uma importante jurisprudência do TJ, como também uma numerosa doutrina. Foi precisamente tudo isto que, aparentemente, o acórdão da RL contrariou.

3. Começando pela jurisprudência do TJ, importa considerar o que foi referido em TJ 16/3/1999 (C-159/97, Castelletti/Trumpy), n.º 50 ss., ainda sobre o art. 17.º CBrux:

“50. Resulta do exposto que a escolha do tribunal designado só pode ser apreciada à luz de considerações ligadas às exigências estabelecidas pelo artigo 17.°
51. Foi por estas razões que o Tribunal de Justiça concluiu em várias ocasiões que o artigo 17.° da convenção abstrai de qualquer elemento objectivo de conexão entre a relação controvertida e o tribunal designado (acórdãos de 17 de Janeiro de 1980, Zelger, 56/79, Recueil, p. 89, n.° 4; MSG [C-106/95], já referido, n.° 34; e Benincasa [C-269/95], já referido, n.° 28).
52. Deve, por consequência, responder-se às terceira, sétima e sexta questões que o artigo 17.°, primeiro parágrafo, segunda frase, terceira hipótese, da convenção deve ser interpretado no sentido de que a escolha do tribunal designado numa cláusula atributiva de jurisdição só pode ser apreciada à luz de considerações ligadas às exigências estabelecidas pelo artigo 17.° da convenção. São estranhas a estas exigências quaisquer considerações relativas aos elementos de conexão entre o tribunal designado e a relação controvertida, ao mérito da causa e às normas substantivas em matéria de responsabilidade aplicáveis no tribunal escolhido."


A orientação do TJ é bastante clara: (i) os requisitos de validade da convenção de competência só podem ser aqueles que constam do art. 17.º CBrux (agora do art. 23.º Reg. 44/2001 e, a partir de 10/1/2015, do art. 25.º Reg. 1215/2012), pelo que o direito dos Estados-membros não pode acrescentar outros requisitos de validade a essa convenção; (ii) para que a escolha do tribunal seja válida não é necessário que exista uma qualquer conexão entre o objecto do litígio e o tribunal designado. Quando o acórdão da RL for conhecido, haverá que analisar que relevância é que o mesmo deu à jurisprudência do TJ e com que fundamentos afastou a sua aplicação no caso concreto.

Um outro aspecto que suscita curiosidade é o de averiguar se a RL ponderou suscitar a apreciação prejudicial do TJ. Recorde-se o regime relevante: “Sempre que uma questão desta natureza [isto é, respeitante à interpretação dos Tratados ou à validade ou interpretação dos actos adoptados pelas Instituições, órgãos ou organismos da União] seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre ela” (art. 267.º, § 2.º, TFUE). Só em função do texto do acórdão será possível verificar se a RL avaliou solicitar a apreciação prejudicial do TJ e, em caso afirmativo, quais os motivos que foram determinantes para que não o fizesse.

4. Como se referiu, a orientação seguida pela RL é contrária à generalidade da doutrina que se pronunciou sobre a questão da validade dos pactos de jurisdição abrangidos pelo art. 17.º CBrux / 23.º Reg. 44/2001.

Começando pelo comentário de referência ao Reg. 44/2001, nele afirma-se, sobre a matéria em análise, o seguinte:

No seu campo de aplicação, o art. 23.º decide exclusivamente [realce no original] sobre a admissibilidade, a forma e os efeitos de uma convenção de competência. Por isso, a escolha do tribunal designado só pode ser apreciada com base em considerações que estejam em conexão com os requisitos do art. 23.º. […] O preceito renuncia a exigir qualquer conexão objectiva entre o tribunal escolhido e o objecto do litígio. Não importam as considerações nem sobre as relações entre o tribunal acordado e o objecto litigioso, nem sobre a adequação da cláusula de escolha do foro, nem sobre o direito material em vigor no tribunal escolhido” (Kropholler/von Hein, Europäisches Zivilprozessrecht, 9.ª ed. (2011), Art. 23 EuGVO 17).

A mesma orientação encontra-se em muita outra doutrina. A título de exemplo pode ser referida a seguinte:

– “Within the boundaries of the Regulation the parties are free to choose any court they wish. Art. 23 does not require any objective connection between the chosen court and the parties of their dispute. The choice of a “neutral” forum with no connection at all to the dispute is perfectly valid – for instance London jurisdiction for parties domiciled in France or Germany – and might provide the very advantage the parties have intended by their choice” (Magnus/Mankowski, Brussels I Regulation, 2.ª ed. (2012)/Magnus, Art. 23 47);

-- Il n’est pas nécessaire que les parties choisissent un tribunal ayant un lien quelconque avec l’affaire : cette solution, reçue en droit international privé français commun, a été formellement consacré pour la Cour de Justice dans l’arrêt Zelger […] qui, au point nº 4, déclare que l’article 17 [da CBrux] «(…) fait abstraction de tout élément objectif de connexité entre le rapport litigieux et le tribunal désigné». Cette solution a l’avantage de permettre  aux parties de choisir un tribunal «neutre» par rapport à leurs intérêts respectifs(Gaudemet-Tallon, Compétence et exécutions des jugements en Europe, 4.ª ed. (2010), 140);

- “O Regulamento Bruxelas I visa, no seu campo de aplicação, uma regulamentação unitária e completa [realce no original] da competência internacional. Isto também vale especificamente para a admissibilidade das convenções de competência, pois que só desta forma é possível assegurar os interesses das partes numa regulação previsível da competência. Inaplicáveis, em especial, são, por isso, no quadro do art. 23.º, as múltiplas regras internas que – de forma directa ou indirecta – contêm pressupostos de eficácia suplementares para as convenções de competência” (Brüssel I-Verordnung/unalex Kommentar (2012)/Hausmann, Art. 23 24); 

-- “O art. 23.º regula completamente a admissibilidade da convenção de competência no Processo Civil Europeu” (Hess, Europäisches Zivilprozessrecht (2010), 313);

-- Na doutrina portuguesa, cf., no mesmo sentido, S. Henriques, Os Pactos de Jurisdição no Regulamento (CE) n.º 44 de 2001 (2006), 81 s.

5. Só o conhecimento do texto do acórdão da RL permitirá confirmar se as observações agora feitas são realmente ajustadas ao seu conteúdo. Num certo sentido, era até desejável que assim não sucedesse: seria sinal de que o “europeísmo” tinha realmente prevalecido sobre o “nacionalismo”. 


MTS