Processo de acompanhamento de maior;
aplicação no tempo; legitimidade processual
1. O sumário de RC 10/12/2019 (7779/18.1T8CBR.C1) é o seguinte:
I- A Lei nº 49/2018, de 14/02, criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os tradicionais institutos da interdição e da inabilitação.
II- Essa Lei veio introduzir uma mudança de paradigma e uma nova filosofia no estatuto das pessoas portadoras de incapacidade, o qual passou a centrar-se exclusivamente na defesa dos interesses das mesmas, quer ao nível pessoal, quer ao nível patrimonial, reduzindo a intervenção ao mínimo possível, isto é, ao necessário e suficiente de molde a garantir, sempre que possível, a autodeterminação e a capacidade da pessoa maior incapacitada.
III- Este novo paradigma trouxe enormes modificações na ordem jurídica, quer em termos substantivos, quer em termos processuais.
IV- Entre as alterações processuais introduzidas pelo novo regime jurídico do acompanhamento do maior encontra-se aquela referente à legitimidade para requerer esse tipo de processos especiais.
V- A esse nível da legitimidade ativa, e no confronto com regime anterior em vigor para os institutos de interdição e de inabilitação, tal decorre da leitura do artº 141º do CC, assistiu-se a uma restrição do leque das pessoas que podem instaurar a ação especial de acompanhamento de maior, a qual passou a ficar limitada: a) ao próprio beneficiário; b) ao cônjuge ou unido de facto deste ou a qualquer seu parente sucessível, desde que estes estejam autorizados por aquele; e c) ao Ministério Público, independentemente dessa autorização.
VI- Porém, no concerne ao cônjuge, ao unido de facto ou aos parentes sucessíveis do beneficiário, a autorização deste passou ser suprida pelo tribunal quando, em face das circunstâncias, o beneficiário não a possa dar, de forma livre e consciente, ou ainda quando existir um outro fundamento atendível, devendo em tais em tais circunstâncias esse pedido de suprimento ser formulado aquando da instauração da ação e em cumulação com o pedido de acompanhamento nela requerido.
VII- Nessa Lei consagrou-se uma norma transitória (o artº 26º) para os processos pendentes, nos termos da qual ressalta que o novo regime de acompanhamento por aquela instituído se aplica imediatamente aos processos pendentes, devendo, para tal, o juiz lançar mão dos princípios da gestão processual e da adequação formal de molde a adequar a tramitação desses processos às novas regras e, sobretudo, aos princípios orientadores do novo regime consagrado.
VIII- Norma essa que, todavia, e no que concerne aos atos processuais, deve ser interpretada com o sentido e alcance não só da aplicação imediata daquela Lei a todos os atos ainda por praticar nos processos pendentes (de interdição e inabilitação), mas também do aproveitamento de todos os atos processuais já antes neles praticados.
IX- Dispondo a requerente de uma ação especial de interdição por anomalia psíquica de legitimidade aquando da sua instauração, a transmutação dessa ação para ação/processo de acompanhamento de maior - em virtude da entrada vigor citada Lei nº 49/2018, quando o processo se encontrava pendente (ainda que na fase imediatamente subsequente à citação da requerida/beneficiária, na pessoa da curadora provisória que lhe fora nomeada por impossibilidade da mesma a receber por motivos de anomalia psíquica) - não lhe retira essa sua legitimidade para ação, sem que se lhe imponha, no caso, para continuar a conservar a mesma, o suprimento judicial da autorização da beneficiária.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"[...] à data em que instaurou a ação (especial de interdição, como então era processualmente designada) a requerente dispunha de legitimidade para o efeito (à luz do artº. 141º do CPC, na sua versão então vigente).
Entretanto, no decurso da mesma (e após a requerida ter sido já citada na pessoa da curadora provisória que lhe fora nomeada/designada, enquanto sua representante legal de então, à luz do artº. 234º, nº 4, do CPC, por virtude de aquela se encontrar impossibilitada de a receber por notória anomalia psíquica de que era portadora, que não deduziu qualquer oposição no prazo legal fixado para o efeito, e o que levou depois a que viesse a ser citado o Mº Pº para, nos termos do artº. 21º do CPC, assumir a defesa daquela na ação), entrou em vigor a citada Lei nº 49/2018, que criou o regime jurídico do maior acompanhado, o qual por força do estatuído no seu artº. 26º, nº 1, passou a aplicar-se também aos processos pendentes.
Note-se que aquando da entrada em vigor da referida lei não havia ainda sido praticado no processo qualquer outro ato processual além daquele referente à citação da requerida/beneficiária, sendo que todos os subsequentes até à prolação da sentença final o foram na estrita observância daquele Lei que consagrou o novo regime.
Será que se impunha então que a requerente para continuar a dispor de legitimidade para a ação necessitaria, face ao estatuído na nova redação dada o artº. 141º, nº 1, do CPC, de obter a autorização para o efeito da requerida/beneficiária (sua irmã), e mais concretamente de providenciar pelo suprimento dessa autorização junto do tribunal, pois que, e tal como se veio a comprovar na sentença (e já havia sido detetado aquando da tentativa da sua citação) aquela se encontrava impossibilitada, por motivos da anomalia psíquica de que sofre, de, forma livre e consciente, a dar, e que não tendo obtido esse suprimento judicial deixou de ser parte legítima na ação?
A nossa resposta é negativa, pelas razões que se passam a aduzir.
Como é sabido, a legitimidade das partes para ação, como pressuposto processual, é aferida tendo em conta a relação material controvertida tal como é configurada pelo seu autor (artº. 26º, nº 1, do CPC).
Resulta daí, desde logo, que a legitimidade das partes reporta-se ao momento em que a acão é proposta, sendo que, em obediência ao princípio da estabilidade da instância, consagrado no artº 260º do CPC, a instância deve manter-se a mesma, quanto às pessoas, ao pedido, e à causa de pedir após a citação do réu, e salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.
Portanto, quando entrou em vigor a referida lei (que alterou os pressuposto da legitimidade ativa para a ação, entretanto transmutada/convertida para ação de acompanhamento de maior) já a legitimidade das partes para ação fora definitivamente fixada.
Por outro lado, e como resulta dos princípios gerais do nosso ordenamento jurídico, as leis de natureza processual sendo, por regra, de aplicação imediata, não dispõem/regem para passado, ou seja, não têm eficácia retroativa, constituindo tal uma emanação do princípio geral consagrado no artº. 12º, nº 1, do CC, segundo o qual a lei só dispõe para o futuro (sendo que mesmo nas situações especiais em que lhe seja atribuída eficácia retroativa se presume então, como decorre no plasmado em tal normativo, que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular).
Por outro lado, e como bem, a nosso ver, se discorreu no Ac. da RG de 12/09/2019 (proc. 228 /17.4T8PTL.G1, disponível em www.dgsi.pt.), aquela citada norma transitória (do artº. 26º, nº 1, da Lei nº. 49/2018) deve ser interpretada com o sentido e o alcance não só a favor da sua aplicação imediata a todos os atos processuais a praticar ainda nos processos pendentes (de interdição e inabilitação), mas também do aproveitamento de todos os atos processuais já antes neles praticados. Interpretação essa que “é a única que se mostra compatível com a letra daquele art. 26º, nº 1, sem que se olvide que o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artº 9º, nº 3, do CC), e mais (…) conforme aos restantes critérios interpretativos, designadamente, hermenêutico, enunciados nesse art. 9º.”
Diga-se, por fim, que a prevalecer a tese do Mº Pº/apelante – da ilegitimidade da requerente - tal levaria, como exceção dilatória, à absolvição da instância da requerida/beneficiária, sem conhecimento do pedido (artºs. 576º, nºs. 1 e 2, 577º, al. e), e 278º, nº 1, al. d), do CPC), o que seria uma “machada” ou um revés enorme no princípio da celeridade que passou (com a atribuição de caráter urgente ao processo), como acima demos conta, a ser um dos princípios orientadores do novo regime do acompanhamento do maior, que em benefício exclusivo do mesmo foi instituído, de forma a dar resposta o mais prontamente possível às suas necessidades, sendo certo que, in casu, e desde o seu início, não se vislumbra outro interesse que não fosse esse que presidiu à instauração da ação pela requerente. Realce-se ainda que, como se extrai do que se deixou exarado, o Mº Pº/apelante não ataca o mérito da decisão da causa (como nunca atacou os pressupostos substantivos/materiais em que a ação se fundou quando foi instaurada, ou a idoneidade das pessoas indicadas para representar e zelar pela sua pessoa e interesses), que decretou o regime do acompanhamento da requerida/beneficiária, mas só por virtude da alegada falta de um pressuposto de natureza puramente processual, que, in casu, mesmo a verificar-se, não se vislumbra onde possa prejudicar aquela ou então em que medida a poderá vir a beneficiar. (No sentido do decidido, Vide ainda, além do Ac. da RG de 12/09/2019 atrás citado, o Ac. da RC de 17/09/2019, proc. nº. 6985/18.3T8CBR.C1, disponível em www.dgsi.pt).
Em conclusão, a requerente é parte legítima na ação, carecendo de fundamento o recurso do Mº Pº/apelante, o qual, assim, se julga improcedente."
Entretanto, no decurso da mesma (e após a requerida ter sido já citada na pessoa da curadora provisória que lhe fora nomeada/designada, enquanto sua representante legal de então, à luz do artº. 234º, nº 4, do CPC, por virtude de aquela se encontrar impossibilitada de a receber por notória anomalia psíquica de que era portadora, que não deduziu qualquer oposição no prazo legal fixado para o efeito, e o que levou depois a que viesse a ser citado o Mº Pº para, nos termos do artº. 21º do CPC, assumir a defesa daquela na ação), entrou em vigor a citada Lei nº 49/2018, que criou o regime jurídico do maior acompanhado, o qual por força do estatuído no seu artº. 26º, nº 1, passou a aplicar-se também aos processos pendentes.
Note-se que aquando da entrada em vigor da referida lei não havia ainda sido praticado no processo qualquer outro ato processual além daquele referente à citação da requerida/beneficiária, sendo que todos os subsequentes até à prolação da sentença final o foram na estrita observância daquele Lei que consagrou o novo regime.
Será que se impunha então que a requerente para continuar a dispor de legitimidade para a ação necessitaria, face ao estatuído na nova redação dada o artº. 141º, nº 1, do CPC, de obter a autorização para o efeito da requerida/beneficiária (sua irmã), e mais concretamente de providenciar pelo suprimento dessa autorização junto do tribunal, pois que, e tal como se veio a comprovar na sentença (e já havia sido detetado aquando da tentativa da sua citação) aquela se encontrava impossibilitada, por motivos da anomalia psíquica de que sofre, de, forma livre e consciente, a dar, e que não tendo obtido esse suprimento judicial deixou de ser parte legítima na ação?
A nossa resposta é negativa, pelas razões que se passam a aduzir.
Como é sabido, a legitimidade das partes para ação, como pressuposto processual, é aferida tendo em conta a relação material controvertida tal como é configurada pelo seu autor (artº. 26º, nº 1, do CPC).
Resulta daí, desde logo, que a legitimidade das partes reporta-se ao momento em que a acão é proposta, sendo que, em obediência ao princípio da estabilidade da instância, consagrado no artº 260º do CPC, a instância deve manter-se a mesma, quanto às pessoas, ao pedido, e à causa de pedir após a citação do réu, e salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.
Portanto, quando entrou em vigor a referida lei (que alterou os pressuposto da legitimidade ativa para a ação, entretanto transmutada/convertida para ação de acompanhamento de maior) já a legitimidade das partes para ação fora definitivamente fixada.
Por outro lado, e como resulta dos princípios gerais do nosso ordenamento jurídico, as leis de natureza processual sendo, por regra, de aplicação imediata, não dispõem/regem para passado, ou seja, não têm eficácia retroativa, constituindo tal uma emanação do princípio geral consagrado no artº. 12º, nº 1, do CC, segundo o qual a lei só dispõe para o futuro (sendo que mesmo nas situações especiais em que lhe seja atribuída eficácia retroativa se presume então, como decorre no plasmado em tal normativo, que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular).
Por outro lado, e como bem, a nosso ver, se discorreu no Ac. da RG de 12/09/2019 (proc. 228 /17.4T8PTL.G1, disponível em www.dgsi.pt.), aquela citada norma transitória (do artº. 26º, nº 1, da Lei nº. 49/2018) deve ser interpretada com o sentido e o alcance não só a favor da sua aplicação imediata a todos os atos processuais a praticar ainda nos processos pendentes (de interdição e inabilitação), mas também do aproveitamento de todos os atos processuais já antes neles praticados. Interpretação essa que “é a única que se mostra compatível com a letra daquele art. 26º, nº 1, sem que se olvide que o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artº 9º, nº 3, do CC), e mais (…) conforme aos restantes critérios interpretativos, designadamente, hermenêutico, enunciados nesse art. 9º.”
Diga-se, por fim, que a prevalecer a tese do Mº Pº/apelante – da ilegitimidade da requerente - tal levaria, como exceção dilatória, à absolvição da instância da requerida/beneficiária, sem conhecimento do pedido (artºs. 576º, nºs. 1 e 2, 577º, al. e), e 278º, nº 1, al. d), do CPC), o que seria uma “machada” ou um revés enorme no princípio da celeridade que passou (com a atribuição de caráter urgente ao processo), como acima demos conta, a ser um dos princípios orientadores do novo regime do acompanhamento do maior, que em benefício exclusivo do mesmo foi instituído, de forma a dar resposta o mais prontamente possível às suas necessidades, sendo certo que, in casu, e desde o seu início, não se vislumbra outro interesse que não fosse esse que presidiu à instauração da ação pela requerente. Realce-se ainda que, como se extrai do que se deixou exarado, o Mº Pº/apelante não ataca o mérito da decisão da causa (como nunca atacou os pressupostos substantivos/materiais em que a ação se fundou quando foi instaurada, ou a idoneidade das pessoas indicadas para representar e zelar pela sua pessoa e interesses), que decretou o regime do acompanhamento da requerida/beneficiária, mas só por virtude da alegada falta de um pressuposto de natureza puramente processual, que, in casu, mesmo a verificar-se, não se vislumbra onde possa prejudicar aquela ou então em que medida a poderá vir a beneficiar. (No sentido do decidido, Vide ainda, além do Ac. da RG de 12/09/2019 atrás citado, o Ac. da RC de 17/09/2019, proc. nº. 6985/18.3T8CBR.C1, disponível em www.dgsi.pt).
Em conclusão, a requerente é parte legítima na ação, carecendo de fundamento o recurso do Mº Pº/apelante, o qual, assim, se julga improcedente."
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