"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/05/2020

Jurisprudência 2019 (230)


Processo penal; pedido de indemnização civil;
insolvência do demandado


1. O sumário de RP 4/12/2019 (3037/16.4T9GDM-B.P1) é o seguinte:

I – De acordo com o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2018, de 26/9/2018, a declaração de insolvência do demandado não determina automaticamente a inutilidade superveniente da lide do pedido de indemnização civil deduzido em processo penal, assim como não impede a dedução desse pedido.

II – A causa de pedir no pedido de indemnização civil deduzido em processo penal é constituída pelos factos que integram a prática do crime em apreço.

III - É de admitir um pedido de indemnização civil em processo penal em que o demandado é acusado da prática de um crime de insolvência dolosa, se tal pedido não se alicerça num incumprimento contratual do arguido e demandado, mas num comportamento delituoso relacionado com a partilha de um património (que incluía um imóvel penhorado) em que o arguido e demandado detinha meação, partilha essa realizada de modo a que o demandante não visse satisfeito o seu crédito, mesmo depois de este crédito ter sido reclamado e reconhecido judicialmente após ter sido decretada a insolvência do arguido e demandado.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Estabelece o Código Penal (art.º 129º) que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil (pretendendo remeter para o disposto no art.º 483º do Código Civil, onde se regula a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos [...]).

Por sua vez, consagra o Código de Processo Penal o princípio da adesão (art.º 71º), segundo o qual a ação civil de indenização fundada na prática de um crime deve ser deduzida no respetivo processo penal, enxertado na ação penal.

Este princípio da adesão não tem, porém, natureza absoluta, resultando da parte final do referido art.º 71º do Código de Processo Penal (só podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei) que o mesmo comporta exceções, prevendo o art.º 72º do Código de Processo Penal as situações excecionais em que o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado (não enxertado na ação penal), mas sendo apenas essas as situações em que tal pode acontecer.

É claro que o pedido de indemnização civil, quando feito no processo penal, se circunscreve necessariamente aos danos exclusivamente resultantes da prática do crime, o mesmo é dizer, a causa de pedir do pedido civil é constituída pelos factos que integram o crime, estando tal subjacente ao referido princípio da adesão (nessa medida, o art.º 74º, nº 1 do Código de Processo Penal, refere que o lesado – a pessoa que tem legitimidade para deduzir pedido de indemnização civil – é a pessoa que sofreu danos com ocasionados pelo crime) [...].

Sabido que o processo de insolvência é um processo de execução universal (afastando qualquer execução singular – art.º 88º, nº 1 do CIRE), tendo como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência (cfr. art.º 1º, nº 1 do CIRE), e sabido que durante a pendência de processo de insolvência os credores só podem exercer os seus direitos nesse processo e segundo os meios processuais regulados no CIRE (cfr. arts. 47º, 85º, 89º, 90º, 128º, 146º, nº 1 e 230º do CIRE), tem-se discutido sobre a utilidade de ação pendente contra o insolvente com vista a reconhecer direito de crédito, quando é declarada a insolvência, levando a conclusão dessa discussão a saber da utilidade/possibilidade de instauração de ação com esse objetivo após a declaração de insolvência.

Assim, o Acórdão do STJ nº 1/2014, de 08.05.2013 [Publicado no DR, I série, nº 39, de 25.02.2014], uniformizou jurisprudência nos seguintes termos (em processo em que estava em causa a declaração da ilicitude de despedimento, com a consequente condenação na reintegração da trabalhadora e condenação no pagamento das prestações vencidas e vincendas): transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art.º 287.º do CPC.

A ideia subjacente é que, como durante a pendência do processo de insolvência os credores só podem exercer os seus direitos nesse processo e segundo os meios processuais regulados no CIRE, deixa de ter utilidade o prosseguimento de ação declarativa tendente ao reconhecimento de créditos laborais (tendo os mesmos que ser objeto de reclamação no processo de insolvência).

Mais tarde, tendo presente a especificidade do pedido de indemnização civil enxertado no processo penal (acima referida), o STJ (acórdão nº 5/2018, de 26.09.2018 [Publicado no DR 1ª série, nº 209, de 30 de outubro de 2018]), fixou a seguinte jurisprudência: a insolvência do lesante não determina a inutilidade superveniente da lide do pedido de indemnização civil deduzido em processo penal, tendo no seu texto sido concluído o seguinte, que se reproduz [Ponto 4, na pág. 5124]:

Por força do princípio de adesão, o titular do direito a indemnização, fundada na prática de crime, apenas no processo penal pode ver reconhecido o seu direito a ser indemnizado e determinado o quantitativo da indemnização pelos prejuízos causados (nos termos do disposto nos arts. 71º a 84º, do CPP). Só após o reconhecimento do direito e a determinação do quantitativo indemnizatório é que se torna claro qual o crédito de que emerge a obrigação de indemnizar. E somente quando não ocorra o cumprimento desta obrigação e após o vencimento da dívida [isto é, tratando-se de obrigação resultante de ato ilícito, como tal não sujeita a interpelação, o vencimento do obrigação só se dá quando o crédito se torna líquido, o que pressupõe que o pedido de indemnização seja julgado procedente pela sentença condenatória, pelo que o vencimento da obrigação ocorre, neste caso, a partir da citação, data a partir da qual o devedor se constitui em mora (artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil) (cf. Inocêncio Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª ed., 2010, Coimbra, Coimbra Editora, p. 256-7)] assiste ao credor o direito intervir no processo de insolvência para obter o pagamento da dívida pelo produto da liquidação dos bens do devedor. Deverá, então, ser reclamado o crédito no processo de insolvência no prazo fixado ou posteriormente até ao encerramento do processo de insolvência (cf. arts. 1º, 3º, 47º, 90º, 128º, 146º, nº 1, e 230º, do CIRE).

A declaração de insolvência do responsável civil não tem por efeito a apensação do processo penal ao processo de insolvência, a qual se limita às ações mencionadas nos arts. 85.º e 86.º, do CIRE, para julgamento pelo tribunal da insolvência, cuja competência nunca se estende ao processo penal.

O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal, cujo conhecimento é da competência do tribunal penal, não se confunde com uma ação declarativa para reconhecimento de crédito, a que se refere o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2014.

Na falta de composição extrajudicial do litígio, sendo o processo penal o único meio de o lesado ver reconhecido o seu direito a indemnização, a declaração de insolvência do demandado não constitui motivo gerador de inutilidade superveniente da ação civil “enxertada” naquele processo."
 


[MTS]