"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/05/2020

Jurisprudência 2019 (240)


Deserção da instância;
contagem do prazo*

1. O sumário de RP 10/12/2019 (21927/15.0T8PRT.P1) é o seguinte:

I - A deserção da instância depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:

i) A inércia de qualquer das partes em promover o andamento do processo, imputável a título de negligência;

ii) A paragem do processo por tempo superior a seis meses, a contar do momento em que a parte devia ter promovido esse andamento;

iii) A prolação de despacho prévio de advertência à parte para a necessidade de exercício do seu impulso processual.

II - Em decorrência do princípio da boa gestão processual e do dever de prevenção que dele emerge, o prazo de 6 meses conta-se, não a partir do dia em que a parte deixou de praticar o ato que condicionava o andamento do processo, mas a partir do dia em que lhe é notificado o despacho que alerte a parte para a necessidade do seu impulso processual.

III - A decisão de extinção da instância por deserção não faz caso julgado material, já que não houve qualquer decisão de mérito sobre a questão de natureza substantiva que se discutia nos autos, não precludindo qualquer direito que esteja em discussão na ação, podendo o direito invocado pela recorrente ser discutido noutro meio processual.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nos termos do disposto no nº 1, do artigo 281º do Código de Processo Civil, a instância considera-se deserta quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

Decorre do normativo que se transcreveu, que a deserção da instância depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:

a) - A inércia de qualquer das partes em promover o andamento do processo, imputável a título de negligência;

b) - A paragem do processo por tempo superior a seis meses, a contar do momento em que a parte devia ter promovido esse andamento [...].

Como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª edição, Almedina, 2018, pág. 572 e 573], o prazo de 6 meses conta-se, não a partir do dia em que a parte deixou de praticar o ato
que condicionava o andamento do processo, mas a partir do dia em que lhe é notificado o despacho que alerte a parte para a necessidade do seu impulso processual.

Concluem os citados autores, apoiados em vasta jurisprudência, que a falta de advertência constitui nulidade processual. [...]

Acresce assim, face à posição claramente maioritária da doutrina e da jurisprudência, um terceiro requisito para que possa ocorrer a deserção da instância: o despacho prévio de advertência à parte para a necessidade de exercício do seu impulso processual.

Vejamos a tramitação fulcral nos autos, com particular relevo para a decisão sobre a questão recursória:

i) Em 19.12.2018 foi prestada informação nos autos, pela autora (ora recorrente) “C…, Unipessoal, Lda.”, do falecimento do co-autor B….

ii) Em 21.12.2018 foi proferido o seguinte despacho:

«Suspendo a instância até que sejam habilitados os sucessores da parte falecida − art. 270.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e art. 22.º, n.º 2, da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto.

Faz-se notar que o mandato do Ilustre Causídico subscritor não caducou relativamente à coautora.

Por não ser viável, em tempo útil, tramitar e decidir o incidente de habilitação de herdeiros, desmarcam-se, sine die, as sessões da audiência final já agendadas.
Notifique.

Os autos aguardam que a demandante (ou sucessores do autor falecido) assim os impulsione. Esclarece-se que:

a) o processo aguarda o impulso da demandante;

b) a inércia desta determinará a extinção da instância decorridos seis meses e um dia sobre a data da notificação deste despacho;

c) não haverá novo convite à prática do ato, sendo declarada deserta a instância, logo que decorrer o prazo apontado (art. 281.º, n.º 1);

d) qualquer circunstância que impeça a parte de praticar o ato deverá ser imediatamente comunicada ao tribunal.».

iii) Não se registou qualquer atividade processual nos autos, tendo sido proferido em 11.07.2018, o seguinte despacho:

iv) Em 21.12.2018 foi proferido o despacho recorrido – que declarou a deserção da instância.
 
Alega a recorrente que se verifica a “mera coligação de autores”, existindo assim “duas acções cumuladas no mesmo procedimento”, pelo que “falecendo um dos autores, e ninguém se habilitando a suceder-lhe, quanto a esse autor e ao pedido por si formulado, a instância pode extinguir-se, mas mantém-se quanto às restantes partes”.

Salvo o devido respeito, revela-se manifesta a improcedência do recurso.

Vejamos porquê.

Desde logo, cumpre esclarecer – pese embora a sua irrelevância para a apreciação da questão recursória – que não se verifica a coligação, mas antes o litisconsórcio, na medida em que, havendo pluralidade de partes há uma única relação material controvertida[...].
Na sua argumentação, a recorrente esquece a imperatividade das disposições legais ínsitas nos artigos 269.º e 270.º, ambas do Código de Processo Civil.

Dispõe o n.º 1, alínea a), do CPC, que a instância se suspende «Quando falecer ou se extinguir alguma das partes».

Imperativamente, preceitua o n.º 1 do artigo 270.º: «Junto ao processo documento que prove o falecimento ou a extinção de qualquer das partes, suspende-se imediatamente a instância, salvo se já tiver começado a audiência de discussão oral ou se o processo já estiver inscrito em tabela para julgamento. Neste caso a instância só se suspende depois de proferida a sentença ou o acórdão.».

Finalmente, prescreve o n.º 3 do citado normativo: «São nulos os atos praticados no processo posteriormente à data em que ocorreu o falecimento ou extinção que, nos termos do n.º 1, devia determinar a suspensão da instância, em relação aos quais fosse admissível o exercício do contraditório pela parte que faleceu ou se extinguiu.».

Perante o quadro normativo enunciado, e a sua clara imperatividade, não se vislumbra como poderia a ação prosseguir, mantendo-se a instância “quanto às restantes partes”.

Na nossa prática forense, esquecemo-nos muitas vezes de que o critério de reprovabilidade com referência à litigância de má fé, em vigor no processo civil após as últimas revisões, passou a abranger, nomeadamente as situações em que se interpõe recurso da decisão, apesar de ser de todo pacífica a solução jurídica do caso, como bem refere o Conselheiro Abrantes Geraldes (in Temas da Reforma do Processo Civil, 1.º Volume, 2.ª edição, págs. 97 e 98).

Revela-se, por demais evidente, a total ausência de razão da recorrente que, relativamente a este segmento decisório, litiga no limite da lide temerária."

*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se acompanha a orientação de que o prazo de seis meses que determina a deserção da instância se conta, não a partir do dia em que a parte deixou de praticar o ato que condiciona o andamento do processo, mas a partir do dia em que é notificado o despacho que alerte a parte para a necessidade do seu impulso processual.

Os motivos da discordância são os seguintes:

-- A orientação defendida inutiliza por completo o ónus legal que recai sobre a parte de praticar o acto de que depende o andamento do processo; esse ónus deixa de ter por base um fundamento legal, para passar a ter um fundamento judicial: a decisão do juiz que alerta a parte para o ónus da prática do acto;

-- Aquela orientação leva a concluir que a negligência da parte que subjaz à deserção da instância nos termos do art. 281.º, n.º 2, CPC só se pode verificar depois do despacho do juiz; ora, não é isso que o regime legal estabelece: a deserção da instância pressupõe a negligência da parte em não dar o impulso processual, pelo que o despacho que o juiz deve proferir antes de decretar a deserção da instância não é para "limpar" a negligência da parte nos seis meses anteriores, mas antes para que esta possa justificar a não realização do acto nesse prazo.

b) Seja como for, não parece que a RP tenha retirado qualquer consequência da orientação que (aparentemente) adoptou (pelo menos como obiter dictum), dado que confirmou a decisão de deserção da instância recorrida.

c) A comprensão do sentido do acórdão é dificultada pelo lapso quanto à data de 21.12.2018, que aparece como sendo aquela em que foram proferidos o despacho de suspensão da instância e o despacho que decretou a sua deserção.

MTS