"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/05/2020

Jurisprudência 2019 (238)

 
Responsabilidade civil do Estado;
competência material


1. O sumário de RC 26/11/2019 (2009/18.9T8CTB.C1) é o seguinte:

Alegando os AA, como causa de pedir, que na sequência de buscas domiciliárias realizadas no âmbito de um processo judicial, em fase de inquérito, os respectivos agentes de autoridade policial levaram a cabo actos de intimidação, de ameaça e agressões físicas, de que resultaram para os AA danos morais de que pretendem ser ressarcidos, não demandando tais agentes, nem havendo notícia de queixa-crime contra os mesmos, antes demandando o Estado, por responsabilidade civil extracontratual, o tribunal competente em razão da matéria para apurar a mesma é o tribunal administrativo e não o tribunal cível (arts. 12º da Lei 67/07, de 31.12 e 4º, nº 1, f), do ETAF).

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2.2.3. Julgamos estar, no caso sub judice, perante um litígio emergente de relações jurídico-administrativas (art. 1º do ETAF). Relações jurídicas administrativas são relações (externas) entre a Administração e os particulares e entre pessoas colectivas públicas, reguladas por normas jurídicas, das quais decorrem as posições jurídicas, activas e passivas, que constituem o respectivo conteúdo3Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 8ª ed. Pág. 64 e ss.

O ETAF determina a competência da jurisdição administrativa, de forma positiva, através de enumeração, no art. 4º do referido diploma legal.

In casu, importa ter presente o disposto no art. 4º, n.º 1, als. f) e g) do ETAF.

Aí se define, na al. f), a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público como sendo da competência dos tribunais administrativos e fiscais. E na al. g), que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo acções de regresso.

Ora, o núcleo essencial da acção tem por objecto um litígio referente as questões relativas à responsabilidade civil extracontratual do Estado relativo à actuação de agentes seus aquando do seu exercício de funções, em violação – segundo o que é alegado na petição – de direitos subjectivos da autora e dos seus filhos.

A responsabilidade civil extracontratual do Estado, nos termos da al. f) e g) do n.º 1 do art. 4º do ETAF é da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

O Tribunal dos Conflitos, no acórdão de 28.10.20104 Proc. 015/10, www.dgsi.pt., apreciou a responsabilidade civil extracontratual do Estado decorrente da actuação de um juiz, no exercício das suas funções.

Este acórdão, citado na petição inicial, fundamentou a competência da jurisdição comum (cível) nos seguintes termos:

No caso concreto, temos que um particular instaurou uma acção contra o Estado Português pedindo a sua condenação numa indemnização, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por facto cometido no exercício de actividade jurisdicional, ou mais propriamente, praticado por juiz no exercício da sua função (jurisdicional).

Ora, dispondo-se no art. n° 1, al. g) do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), que «1. — Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: ... g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;…», pareceria que a questão que nos ocupa estaria, desde logo, resolvida no sentido de que a competência para conhecer da acção caberia à jurisdição administrativa. Porém, a tal regra de cariz geral opõem-se as exclusões previstas expressamente nos n°s 2 e 3 da mencionada norma legal, designadamente, no que importa à resolução da questão que nos ocupa, o disposto na al. a) do n° 3, em que se prescreve expressamente que: «Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso; …»; de tal preceito legal crê-se poder concluir, sem qualquer dificuldade, que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e a correspondente acção de regresso fundada em erro judiciário apenas deve ser conhecida pela jurisdição administrativa desde que respeitem a facto resultante da actividade dos tribunais administrativos”.


Aí mais se refere que: como explicam Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida é “atribuída à jurisdição administrativa a competência para apreciar as questões de responsabilidade resultantes do (mau) funcionamento da administração da justiça. É, no entanto, excluída a apreciação das questões de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das acções de regresso contra magistrados que daí decorram: artigo 4º, n° 3, alínea a) (In Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª edição revista e actualizada).

Sucede que, no caso em apreço, o autor intenta acção contra o Estado Português, com fundamento em responsabilidade civil, imputando a um Juiz do tribunal da jurisdição comum a prolação de uma decisão (determinando a submissão do mesmo a julgamento sumário, com a imediata detenção até à sua realização, levando a que aguardasse nos calabouços do tribunal) com manifesta negligência, ou dito, com mais precisão, ‘com negligência grosseira’, portanto, integrando erro judiciário.

Assim, parece não subsistir qualquer dúvida de que cumpre ao tribunal da jurisdição comum o conhecimento da acção que contra o Estado Português veio a ser proposta por Autor”.


Pensamos que a doutrina exposta não se aplica ao caso dos autos, na medida em que a presente acção não se funda em qualquer erro judiciário (o que seria o caso se os autores tivessem alegado que as buscas foram, por exemplo, ilegais ou executadas em habitação erroneamente), mas antes na actuação de agente policiais no exercício das suas funções legais.

Poder-se-á entender estarmos quando muito perante responsabilidade resultantes do (mau) funcionamento da administração da justiça, porém, essa (com excepção do erro judiciário) é enquadrável na competência dos tribunais administrativos.

Na presente acção os autores pretendem que o Estado responda por ofensas praticadas por agentes policiais e não responsabilizar directamente tais agente pelas ofensas.

A presente acção subsume-se, quer no pedido, quer na causa de pedir, tal como a petição inicial está configurada, a uma acção da competência dos tribunais administrativos.

O desrespeito pelas regras de competência em razão da matéria determina incompetência absoluta deste tribunal, o que implica a absolvição da ré da instância, nos termos dos arts. 577º, al. a), 576º, n.º 2 e 99º, n.º 1 do CPC.”.

A decisão recorrida é acertada, não havendo censura a fazer à mesma.

Os AA limitam-se nas suas alegações e conclusões de recurso a reproduzir o que já tinham dito na sua p.i., sem atentar, devidamente, na argumentação jurídica do tribunal a quo que é apresentada para o caso particular em apreço, para o nosso caso em concreto.

Há, então, que realçar duas dessas linhas de argumentação e acrescentar ainda, por um lado, uma nota a rebater a invocação de um determinado acórdão do STJ, por parte dos recorrentes, e de outra parte, a trazer a colação um outro fundamento jurídico, para demonstrar a correcção do sentenciado.

- na verdade, a acção dos recorrentes não foi intentada contra os agentes policiais que praticaram os actos censurados, porventura, com enquadramento criminal – é isso que defendem os apelantes ao invocarem o art. 129º do C. Penal, que dispõe que “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.” e ao dizerem-no expressamente na parte final da sua resposta à excepção deduzida pelo Estado -, mas antes contra o Estado Português, sob a tutela de quem os mesmos actuaram.

Não correu – segundo o que resulta dos articulados – termos qualquer processo criminal que tenha tido origem ou fundamento nos actos que fundamentam a responsabilidade civil em causa nos autos. Não há notícia sequer de qualquer queixa-crime por parte dos AA contra os ditos agentes policiais.

Assim, estando em causa a responsabilidade civil do Estado, carece de fundamento a alegação do princípio de adesão - art. 71° do CPP, que dispõe que “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.” e o adjuvante art. 72º, nº 1, b), trazido à colação pelos apelantes, que estatui que: “1 - O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando: (…)
 
b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento;“, já que isso só poderia ser considerado se os demandados fossem os agentes do crime, o que não é o caso;

- o acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 28.10.2010, Proc.015/10, em www.dgsi.pt., citado pelos apelantes na sua p.i. e nas alegações de recurso, apreciou a responsabilidade civil extracontratual do Estado decorrente da actuação de um juiz, no exercício das suas funções [e decidiu muito bem, face aos normativos do ETAF que convocou, os arts. 4º, nº 1, g) e 3º, nº 2, a), na redacção à altura vigente, emergente da Lei 59/2008, de 11/9, actuais arts. 4º, nº 1, f) e 4º, nº 2, a)]. Situação bem diferente da nossa. É, por isso, ininvocável na nossa hipótese, como a decisão recorrida demonstrou e bem.

- os recorrentes invocaram, ainda, nas suas alegações, o acórdão do STJ de 21.4.2010, Proc.173/2001, em www.dgsi.pt, para sustentar a sua posição. Há que rebater tal invocação, pois os mesmos não atentaram, mais uma vez, que tal aresto não é de considerar no caso concreto, pois o mesmo aplicou-se a uma situação em que estava vigente o velho DL 48.051, de 21.11 (aplicável à responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública), que foi revogado pela Lei 67/07, de 31.12, e não o actual ETAF.

- finalmente há que trazer à discussão jurídica esta última Lei 67/07, que aprovou o regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, e que no Capítulo III, dedicado à Responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, sob o art. 12º, com a epígrafe Regime geral, estatuiu que “Salvo o disposto nos artigos seguintes, é aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça, designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável, o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa.”. Como os arts. segs. 13º, referente à responsabilidade por erro judiciário, e 14º, referente à responsabilidade dos magistrados, não interessam para o nosso caso, aplicando-se, por isso, a dita regra geral, emerge a necessidade de saber quem é o tribunal competente em razão da matéria para tal responsabilidade. E aqui o critério é ditado pelo apontado art. 4º, nº 1, f), do ETAF, que atribui competência aos tribunais administrativos para questões que tenham por objecto “Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional ….” (sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo, este último referente a erro judiciário, que não respeita à nossa hipótese.) – no mesmo sentido pode ver-se Emídio J. Costa e Ricardo J. A. Costa, Da Responsabilidade civil do Estado e dos Magistrados por danos da função jurisdicional, Quid Juris, 2010, págs. 181/183."
 
[MTS]