"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/05/2020

Jurisprudência 2019 (233)


Audiência prévia;
justo impedimento*

1. O sumário de RL 11/12/2019 (11749/17.9T8LSB.L2.L1-7) é o seguinte:

I– Deve aplicar-se à audiência prévia a regra geral prevista para as audiências de julgamento e que está consignada no artigo 603º, nº 1, do Código de Processo Civil, enquadrada na figura de cariz genérico e abrangente do justo impedimento consagrado no artigo 140º do mesmo diploma legal, o que significa que, existindo, comprovadamente, uma situação de justo impedimento que explica e justifica a ausência de um dos advogados ao acto judicial para o qual foi convocado, não existe outra alternativa que não o adiamento a determinar pelo juiz que preside à audiência.

II– Não faz sentido aplicar indiferenciadamente o disposto no artigo 591º, nº 3, do Código de Processo Civil, que determina que “não constitui motivo de adiamento a falta das partes ou dos seus mandatários”, quer à situação de falta não justificada – na qual o ausente faltou sem motivo, violando desse modo o dever de comparência que lhe incumbia (inclusive em termos deontológicos), e arcando nessa medida com as consequências negativas associadas à não comparência que lhe é imputável -; quer à situação de falta devidamente justificada, na qual o ausente só não compareceu por motivos que não lhe são imputáveis e que ocorreram de forma inesperada, não sendo passíveis de superação, não lhe dando margem para a conduta alternativa que pretendia adoptar (a comparência ao acto).

III– Não tendo podido o advogado comparecer a uma audiência na qual lhe competia assegurar a defesa dos interesses do seu cliente, no cumprimento do mandato forense que lhe foi conferido, devendo-se a sua imprevista ausência a imponderáveis motivos de saúde, verificados na véspera e que aconselham, em termos médicos, repouso absoluto, a lei não estabelece um regime (insensato) de absoluta indiferença pela impossibilidade objectiva de comparência do ausente, uma vez que o que está em causa é o exercício do contraditório pelas partes, não cabendo ao juiz aquilitar da maior ou menor utilidade da presença dos ilustres mandatários judiciais convocados para a diligência.

IV– Não é ainda aceitável que o juiz considere implicitamente que, tratando-se da possibilidade de discutir de facto e de direito o objecto de acção, perante a posição já antes assumida pelo julgador, a presença ou ausência de um ou mais advogados não faça nenhuma diferença prática, como se aquilo que pelos mesmos viesse a ser referido na audiência prévia não fosse minimamente relevante ou devesse à partida ser encarado como inconclusivo, inócuo ou a desconsiderar absolutamente.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"É evidente que assiste inteira razão à Ré apelante.

O que está aqui verdadeiramente em causa é a verificação de uma situação de justo impedimento, genericamente prevista no artigo 140º do Código de Processo Civil, que obstou à comparência do advogado na diligência judicial para que tinha sido regulamente convocado, sendo que a respectiva data havia sido designada com prévio acordo de ambos os mandatários.

Ou seja, verificou-se um evento inesperado e imprevisto, de efeitos invencíveis ou insuperáveis, que impediu o mandatário judicial de comparecer ao acto processual ou de o praticar, diminuindo, comprimindo ou suprimindo substantivamente, por essa via, a plenitude do exercício das faculdades legais que assistiam à parte que representa, a qual, desse modo, se viu colocada numa situação de inegável e objectivo desfavorecimento em relação à contraparte.

Esta situação - que contende necessariamente com o estatuto de igualdade substancial entre as partes (que o juiz deverá, em qualquer circunstância, observar e fazer observar, em escrupuloso cumprimento do artigo 4º do Código de Processo Civil) – é extensível a todas as fases do processo em que a lei pressuponha a intervenção do mandatário judicial para exercer os direitos da parte em diligência judicial presidida pelo juiz.

Logo, haverá que aplicar ao regime próprio da audiência prévia a regra geral prevista para as audiências de julgamento e que está precisamente consignada no artigo 603º, nº 1, do Código de Processo Civil, enquadrada na figura, de cariz genérico e abrangente, do justo impedimento consagrado no artigo 140º do mesmo diploma legal.

O que significa que, existindo, comprovadamente, uma situação de justo impedimento que explica e justifica a ausência de um dos advogados ao acto judicial para o qual foi convocado, não existe outra alternativa que não o adiamento a determinar pelo juiz que preside à audiência.

É óbvio que não se aplica na situação sub judice o disposto no artigo 591º, nº 3, do Código de Processo Civil, na medida em que o preceituado nessa norma não afasta nem prejudica o efeito associado à prova do justo impedimento na comparência à audiência prévia.

Isto é, contrariamente ao que o juiz a quo sustentou, não tem cabimento nem é razoável aplicar indiferenciadamente o disposto no artigo 591º, nº 3, do Código de Processo Civil, que determina que “não constitui motivo de adiamento a falta das partes ou dos seus mandatários”, quer à situação de falta não justificada – na qual o ausente faltou sem motivo, violando desse modo o dever de comparência que lhe incumbia (inclusive em termos deontológicos), e arcando nessa medida com as consequências negativas associadas à não comparência que lhe é imputável -; quer à situação de falta devidamente justificada, na qual o ausente só não compareceu por motivos que não lhe são imputáveis e que ocorreram de forma inesperada, não sendo passíveis de superação, e não lhe dando margem para a conduta alternativa que pretendia adoptar (a comparência ao acto).

A cada uma destas duas situações, em si completamente diversas, tanto na sua natureza como quanto às suas características basilares, corresponderá necessariamente um regime desigual no tratamento que a lei lhe concede, não misturando nem confundindo comportamentos processuais absolutamente contrastantes.

Não tendo podido o advogado comparecer a uma audiência na qual lhe competia assegurar a defesa dos interesses do seu cliente, no cumprimento do mandato forense que lhe foi conferido, devendo-se a sua imprevista ausência a imponderáveis motivos de saúde verificados na véspera e que aconselham, em termos médicos, repouso absoluto, a lei não estabelece um regime (insensato) de inexplicável indiferença pela impossibilidade objectiva de comparência, como naturalmente se compreende.

Convirá, a este propósito, avocar o Assento (ora entendido como acórdão uniformizador de jurisprudência) de 3 de Abril de 1991 (secções criminais) segundo o qual “o atestado médico, para justificar a falta de comparência perante os serviços justiça de pessoa regularmente convocada ou notificada, referido no artigo 117º, nº 3, do CPP, não tem que indicar o motivo concreto que impossibilita essa comparência ou a torna gravemente inconveniente, mas apenas atestar que o faltoso se encontra doente e impossibilitado ou em situação de grave inconveniência, por doença, de comparecer”.

In casu, o atestado médico oportunamente apresentado revela a doença de que o mandatário judicial da Ré foi acometido – cólica renal – e o tempo durante o qual medicamente se aconselha repouso absoluto do paciente (três dias), o qual compreende a data da realização da audiência prévia nestes autos.

Por outro lado, tendo sido a procuração forense passada pela Ré exclusivamente em favor do Dr. José ….., conforme resulta da análise de fls. 73, não se compreende igualmente que impendesse sobre o ilustre causídico a obrigação de, numa situação de doença súbita e limitadora das suas capacidades físicas e intelectuais, diligenciar no sentido de substabelecer em qualquer outro colega, provavelmente distanciado da matéria que se discute nestes autos e apanhado de surpresa, para intervir num processo judicial cujos contornos desconheceria até aí.

Não colhe igualmente a justificação apresentada pelo juiz a quo no sentido de que “(...) compreende-se a diferença de regime aplicável atento o facto da audiência prévia poder ser dispensada nos casos legalmente previstos. Porém, tal não sucederá nos casos em que o princípio do contraditório seja gravemente posto em causa com a realização da audiência na ausência de mandatário de parte que esteja impedido de comparecer. No entanto, no presente caso, já foi disponibilizado às partes a realização do contraditório por escrito quanto ao conhecimento da totalidade do mérito da causa, destinando-se a presente audiência prévia a facultar às partes a discussão de facto e de direito no que respeita ao objecto da acção, tal como consta do despacho que procedeu à marcação desta audiência”.

Não podemos perfilhar tal entendimento e a lógica que lhe está subjacente.

O que está precisamente em causa é o exercício do contraditório pelas partes, não cabendo ao juiz aquilitar da maior ou menor utilidade da presença dos ilustres mandatários judiciais convocados para a diligência.

Não é ainda minimamente aceitável que o juiz considere implicitamente que, tratando-se apenas da possibilidade de discutir de facto e de direito o objecto de acção, e perante a posição já antes assumida pelo julgador, a presença ou ausência de um ou mais advogados não faça nenhuma diferença prática, como se aquilo que pelos mesmos viesse a ser referido na audiência prévia não fosse relevante (sob qualquer ponto de vista) ou devesse à partida ser encarado como inconclusivo, inócuo ou a desconsiderar absolutamente.

Se um deles – ou os dois – não podem comparecer por razões de doença incapacitante, antecipadamente comprovada, a sua falta é sempre relevante e obriga por si só ao adiamento da diligência face ao justo impedimento que configura.

A postura de absoluta e antecipada desconsideração pela posição que cada um dos mandatários entenda expressar no acto judicial para o qual é avocada a sua presença, eventualmente equiparando a sua tomada de posição sobre a questão jurídica em discussão a um exercício retórico dispensável e inútil, não faz de todo o menor sentido, como não pode deixar de ser.

Procede, portanto, a presente apelação, anulando-se as decisões proferidas na audiência prévia que teve lugar no dia 9 de Abril de 2019 e determinando a marcação de nova data para a sua realização."

*3. [Comentário] O acórdão da RL é o que, no jargão do meio judicial, se pode designar como um "bom acórdão". O CPC não pode ser utilizado para deixar a vida à porta dos tribunais, desde logo porque institutos como o justo impedimento (art. 140.º) e a sanação da revelia do réu (art. 696.º, e)) visam precisamente o contrário.

MTS