"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/05/2020

Nova alteração à L 1-A/2020, de 19/3

I. A PL 30/XIV prevê uma nova alteração à L 1-A/2020, de 19/3 (aqui em anexo). No contexto deste apontamento, o mais significativo parece ser o seguinte:

-- A revogação do art. 7.º L 1-A/2020 (art. 6.º PL 30/XIV);

-- A "substituição" do art. 7.º L 1-A/2020 pelo novo art. 6.º-A (introduzido pelo art. 3.º PL 30/XIV).

II. A revogação do art. 7.º L 1-A/2020 implica a revogação do regime de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade que consta dos seus n.ºs 3 e 4. Lembre-se a redacção de cada um destes preceitos:

3 - A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.

4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional.

III. Um pouco estranhamente, a PL 30/XIV revoga estes preceitos, mas nada estabelece sobre a matéria da prescrição e da caducidade após essa revogação. No entanto, parece que seria avisado que o legislador, em vez de repor de forma tácita o decurso dos prazos de prescrição e de caducidade, tomasse algumas cautelas, essencialmente porque podem surgir dúvidas quanto ao regime desses prazos a seguir à revogação do art. 7.º L 1-A/2020:

1) a) Pode argumentar-se que, se o legislador revogou o art. 7.º, n.ºs 3 e 4, L 1-A/2020, é porque entendeu que o regime nele estabelecido devia ser substituído por um outro. Note-se que o art. 7.º, n.º 2, L 1-A/2020 estabelece que o regime previsto no próprio art. 7.º cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excepcional. Sendo assim, pode aduzir-se, com bastante razoabilidade, que:

-- O  art. 7.º, n.º 2, L 1-A/2020 impunha que o legislador produzisse legislação em conformidade com o que nele se dispõe;

-- O legislador, em vez de dar execução ao estabelecido nesse preceito, revogou o próprio preceito;

-- Logo, nada do que se estabelece no preceito é aplicável depois da sua revogação, nem sequer o alargamento dos prazos de prescrição e de caducidade estabelecido no art. 7.º, n.º 4, L 1-A/2020, tanto mais que a cessação da suspensão estava dependente do decretamento do termo da situação excepcional pelo diploma referido no art. 7.º, n.º 2, L 1-A/2020 e isso nunca foi declarado.

b) Mas também se pode argumentar que a revogação do art. 7.º L 1-A/2020 não apaga a sua (breve) vigência. Ora, o seu n.º 4 dispõe que os prazos de prescrição e de caducidade são “alargados” pelo período correspondente à situação de excepção. Assim, não está excluído que se possa defender que esse alargamento se encontra consolidado e que, por isso, todos os prazos de prescrição e de caducidade em curso em 10/3 (mesmo que terminem daqui a três ou cinco anos) são acrescidos do tempo entre esta data e a revogação daquele preceito.
 
2) Havendo dúvidas legitimas sobre o sentido da revogação do art. 7.º L 1-A/2020, pode procurar-se resolvê-las num outro plano.

Pode então argumentar-se que a interpretação favorável ao alargamento de qualquer prazo de prescrição e caducidade em curso em 10/3 é favorecida pela circunstância de o legislador nada estabelecer para a protecção daqueles que podem vir a ser afectados pelo fim da suspensão daqueles prazos.

Recorde-se que o levantamento da suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade implica que esses prazos voltam a correr logo que verifique esse levantamento. Assim, de acordo com as regras gerais, se em 10/3 faltavam 7 dias para o prazo se completar, são estes mesmos 7 dias que se cumprem depois da entrada em vigor (no dia seguinte ao da sua publicação: art. 7.º PL 30/XIV) da L que revoga o art. 7.º L 1-A/2020.

Pode então argumentar-se que este resultado indesejável (ou "efeito-surpresa") não se verifica, precisamente porque o prazo está alargado por força do entretanto revogado n.º 4 do art. 7.º L 1-A/2020. Quer dizer: a omissão de qualquer regulação sobre o regime aplicável depois da revogação do art. 7.º L 1-A/2020 favorece a interpretação de que todo e qualquer prazo de prescrição ou de caducidade que estivesse a correr no dia 10/3 está automaticamente "alargado" pelo correspondente período de vigência daquele preceito, pois que só isso protege os interessados que contavam com o alargamento do prazo estabelecido no art. 7.º, n.º 4, L 1-A/2020. Em especial, merecedores de protecção e de não frustração de expectativas são os interessados cujo prazo estava quase a terminar em 10/3. 

III. Em conclusão: não é nada seguro o regime que vai vigorar quanto aos prazos de prescrição e de caducidade depois da revogação do art. 7.º L 1-A/2020. O próprio legislador dá sinais contraditórios. Por um lado, parece querer afastar o regime dos n.ºs 3 e 4 do art. 7.º L 1-A/2020; mas, por outro, não dá nada em troca da desprotecção dos interessados que resulta da mera revogação do art. 7.º L 1-A/2020. 

IV. Melhor solução seria estabelecer, em consonância com o disposto no art. 321.º, n.º 1, CC, que o alargamento dos prazos de prescrição e caducidade só se verifica em relação aos prazos que, em 10/3, estivessem nos últimos três meses ou que os tivessem atingido durante a vigência do art. 7.º, n.º 4, L 1-A/2020. Para estes prazos, poder-se-ia estabelecer que eles só voltariam a correr depois de x tempo a partir da revogação do art. 7.º L 1-A/2020 (por exemplo, após 30 ou 45 dias). Isso protegeria quem pode ser afectado pela cessação da suspensão do prazo de prescrição ou de caducidade e impediria a interpretação de que todo e qualquer prazo que estivesse em curso no dia 10/3 está alargado até à sua definitiva consumação.

No fundo, em vez de uma reposição tácita e "desprotectora" do decurso dos prazos de prescrição e caducidade, haveria uma reposição expressa e "protectora" dessa reposição. Dado que esta reposição expressa seria acompanhada de uma medida de protecção do interessado que pode ser afectado pelo decurso do prazo, deixaria de haver qualquer justificação para se entender que esse interessado necessita do alargamento estabelecido no art. 7.º, n.º 4, L 1-A/2020.

V. A omissão de qualquer esclarecimento do legislador sobre as consequências da cessação da suspensão dos prazos de prescrição e caducidade pode originar uma situação de dúvida e de incerteza no ordenamento jurídico. Enfim, parafraseando, três palavras do legislador e muita discussão e litigância poderiam (ou poderão) ser evitadas.

MTS