"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/05/2020

Jurisprudência 2019 (243)


Dupla conforme*

1. O sumário de STJ 17/12/2019 (796/14.2TBBRG.G1.S2) é o seguinte:

I Tem sido entendimento doutrinário e deste Supremo Tribunal de Justiça que se o Apelan
te que é beneficiado com o acórdão da Relação relativamente à decisão da 1.ª instância – isto é, o réu que é condenado em “menos” do que na decisão da 1.ª instância ou o autor que obtém “mais” do que conseguiu na 1.ª instância – nunca pode interpor recurso de Revista para o Supremo, porque ele também o não poderia fazer de um acórdão da Relação que tivesse mantido a – para ele menos favorável – decisão da 1.ª instância, aí se definindo os parâmetros da dupla conformidade decisória obstativa da impugnação recursória em sede de Revista

II Neste preciso particular, tem-se entendido também, que a dupla conformidade decisória impeditiva de sustentar um recurso principal, impedirá, logicamente, a interposição de recurso subordinado, nos termos do artigo 633º, nº1 e 5 do CPCivil.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II 1. Questão prévia do conhecimento do recurso subordinado do Autor.

A Relatora, no seu despacho preliminar, entendeu que se verificava uma dupla conformidade decisória em relação á impugnação encetada pelo Autora e por isso ordenou o cumprimento do disposto no artigo 655º do CPCivil, tendo na sequência produzido a seguinte decisão singular, no que à economia da questão aqui suscitada pelo Autor/Recorrente/Reclamante interessa:

«[A]nalisando:

Decorre dos segmentos dispositivos supra extractados que se verificou uma dupla conformidade decisória em ambas as instâncias, porquanto, sem embargo da diferente quantia em que veio a ser condenada a Ré/Recorrente, a mesma foi beneficiada em segundo grau, pelo que o Apelante que é beneficiado com o Acórdão da Relação relativamente à decisão da primeira instância nunca poderia interpor recurso de revista para o Supremo, porque ele também o não poderia fazer de um acórdão da Relação que tivesse mantido aquela sentença, que já lhe era desfavorável, sendo este um entendimento corrente neste Supremo Tribunal.

Como já afirmei no despacho preliminar produzido, tem sido entendimento doutrinário e deste Supremo Tribunal de Justiça que se o Apelante que é beneficiado com o acórdão da Relação relativamente à decisão da 1.ª instância – isto é, o réu que é condenado em “menos” do que na decisão da 1.ª instância ou o autor que obtém “mais” do que conseguiu na 1.ª instância – nunca pode interpor recurso de Revista para o Supremo, porque ele também o não poderia fazer de um acórdão da Relação que tivesse mantido a – para ele menos favorável – decisão da 1.ª instância, aí se definindo os parâmetros da dupla conformidade decisória obstativa da impugnação recursória em sede de Revista, cfr Miguel Teixeira de Sousa in Cadernos de Direito Privado, 21 Janeiro/Março 2008; inter alia Ac STJ de 29 de Janeiro de 2014 (Relator João Camilo), 7 de Maio de 2014 (Relator Moreira Alves), in SASTJ, site do STJ; Ac STJ de 12 de Março de 2019, da aqui Relatora, in www.dgsi.pt.

Ora, se o Autor em primeiro grau viu o seu pedido ser recusado e em segundo Acórdão produzido sobre a matéria, veio a obter um vencimento parcial com um ganho de 55.876,16€, é óbvio que este desfecho integra a noção de dupla conformidade decisória, sem embargo de as decisões serem manifestamente diversas, pois teve mais do que tinha tido antes onde não tinha tido nada.

Esta asserção decorre dos parâmetros da dupla conformidade nos termos em que a mesma tem sido delineada e acolhida neste Supremo Tribunal , «[O] apelante que é beneficiado com o acórdão da Relação relativamente à decisão da 1.ª instância – isto é, o réu que é condenado em “menos” do que na decisão da 1.ª instância ou o autor que obtém “mais” do que conseguiu na 1.ª instância – nunca pode interpor recurso de revista para o Supremo, porque ele também o não poderia fazer de um acórdão da Relação que tivesse mantido a – para ele menos favorável – decisão da 1.ª instância», apud Miguel Teixeira de Sousa, l.c.

Não tem a ver, portanto, com quaisquer razões ligadas à fundamentação encetada, pois é evidente que a argumentação que leva à absolvição de um Réu é diametralmente oposta a qualquer outra que enverede pela sua condenação, residindo o nó górdio da problemática em tela, apenas no ganho que se obteve, sendo apodítico que in casu o Autor/Recorrente, nunca poderia ter recorrido se o Acórdão da Relação tivesse absolvido a Ré do pedido contra ela formulado.

Questão outra, diversa, não aflorada pelo Recorrente, poderia ser a de considerar a sua impugnação recursiva como recurso subordinado, efectuando-se a devida adequação formal do recurso interposto, de harmonia com o preceituado nos artigos 6º, nº1 e 193º, nº 1 e 3 do CPCivil.

Contudo, neste preciso particular tem-se entendido que em caso de dupla conformidade decisória, impeditiva de sustentar um recurso principal, impedirá, logicamente, a interposição de recurso subordinado, nos termos do artigo 633º, nº1 e 5 do CPCivil, cfr inter alia o Ac STJ 13 de Novembro de 2018 (Relator Acácio das Neves), in www.dgsi.pt.

Destarte, face à dupla conformidade ocorrida, julga-se findo o recurso do Autor, não se podendo conhecer do respectivo objecto nos termos do normativo inserto no artigo 652º, nº1, alínea h) do CPCivil, aplicável ex vi do artigo 679º do mesmo diploma.»

Indignado com este desfecho, reclama o Autor, pretendendo a revogação do despacho singular, fazendo alinhar as seguintes observações conclusivas:

- A decisão ora impugnada por meio de reclamação para a conferência enferma de nulidade: é contraditória com a fundamentação - não houve conformidade entre as decisões das instâncias, mas revogação parcial do julgado.

- A não se considerar tal nulidade, expressamente invocada para efeitos de sanação, a decisão enferma de error in decidendo, em violação flagrante violação do preceituado no artigo 671.º, n.3 º, do Código de Processo Civil, uma vez que a decisão condenatória da Relação não confirmou antes revogou a decisão absolutória da 1ª instância e os fundamentos de ambas as decisões, mais do que essencialmente diferentes, são contraditórios.

- A interpretação normativa do art 671, nº 3 do C P Civil no sentido de que uma decisão condenatória da Relação, revogando a decisão absolutória da 1ª instância "confirma" esta última, padeceria de inconstitucionalidade material por violação do disposto no artº 2 da C R Portuguesa e mais concretamente do princípio do Estado de Direito.

Como se vê do acervo conclusivo supra extractado, o Reclamante, «repete-se» na discordância anteriormente manifestada contra a decisão singular produzida, a qual, aqui se mantém.

Sempre se acrescenta, que não se vislumbra qualquer violação constitucional, nomeadamente a constante do artigo 2º da CRPortuguesa, na interpretação efectuada ao artigo 671º, nº3 do CPCivil, como atentatória ao princípio do estado de direito, consubstanciado, na espécie, na negação do acesso ao recurso, por via da interpretação efectuada da existência de uma dupla conformidade decisória, que no entender do Recorrente subordinado, inexiste.

No princípio do Estado de direito democrático está, entre o mais, postulada uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas, cfr Ac TC 303/90.

Nesta senda constitucional, chama-se igualmente à colação o entendimento que aí se tem esgrimido nesta temática de que «uma norma jurídica apenas violará o princípio da proteção da confiança do cidadão, ínsito no princípio do Estado de direito, se ela postergar de forma intolerável, arbitrária, opressiva ou demasiado acentuada aquelas exigências de confiança, certeza e segurança que são dimensões essenciais do princípio do Estado de direito'. Nesse aresto, afirmou-se ainda que o 'princípio do Estado de direito democrático [...] é um princípio cujos contornos são fluidos [...], pelo que tem um conteúdo relativamente indeterminado'. Em consequência, concluiu-se que tais características 'sempre inspirarão prudência ao intérprete e convidá-lo-ão a não multiplicar, com apoio nesse princípio, as ilações de inconstitucionalidade. […] o Tribunal Constitucional tem entendido que a tutela constitucional da confiança não abrange todo e qualquer juízo de previsibilidade que o sujeito possa fazer em face de determinado quadro normativo vigente. Com efeito, apenas colidirá com a tutela da confiança a afetação infundada e arbitrária de expectativas legítimas objetivamente consolidadas.», apud Ac TC 237/98.

Ora, como sobejamente se deixou explicado na decisão singular aqui posta em causa, o entendimento quanto á dupla conformidade decisória tem nuances «específicas», que ultrapassam a mera literalidade equivalente a uma condenação igual e/ou igual absolvição, porque poderá haver uma dupla conformidade decisória, como foi decidido se o Autor nada obteve em 1º grau e vem a obter € 55.000 em 2º grau, aliás em consonância com o post de Miguel Teixeira de Sousa, no blog do IPPC, judiciosamente citado pelo Recorrente/Recorrido/Reclamante, no ponto 31. da sua reclamação, subordinado ao título «Dupla conforme e recurso subordinado».

É uma entropia do sistema, justificado e admitido por ele próprio.

Não se conhece, pois, do recurso subordinado do Autor."


*3. [Comentário] O acórdão confronta-se com o recorrente tema da dupla conforme. Não parece, no entanto, que tenha seguido a orientação correcta.

Efectivamente, só pode falar-se de dupla conforme se ambas as decisões forem absolutórias ou condenatórias, não portanto, como sucedia no caso concreto, quando a decisão da 1.ª instância tiver sido absolutória e a da Relação tiver sido parcialmente condenatória. Aliás, a ser assim, poucos seriam os casos que chegariam ao STJ, dado que estariam excluídos:

-- Os casos de verdadeira dupla condenação e absolvição;

-- Os casos de condenação parcial na 1.ª instância e de condenação num plus na Relação (jurisprudência constante do STJ);

-- Por fim, segundo a orientação do acórdão, os casos de absolvição na 1.ª instância e de condenação na Relação.

Sem qualquer coerência, só chegariam ao STJ os casos de condenação na 1.ª instância e de absolvição na Relação.

MTS

Nota: a versão anteriormente publicitada estava amputada do comentário; corrige-se o lapso.