"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/05/2020

Jurisprudência 2019 (237)

 
Responsabilidades parentais;
competência internacional

 
I. O sumário de RL 19/12/2019 (2577/19.8T8CSC-A.L1-6) é o seguinte:

- O art. 9º, nº 1, do REGIME GERAL DO PROCESSO TUTELAR CÍVEL, quando estabelece o critério de determinação da competência territorial [remetendo para o tribunal da residência do menor no momento em que o processo foi instaurado], acaba também por [porque é-lhe reconhecida uma “dupla funcionalidade”, por força do artº 62º,alínea a), do CPC] actuar como regra de competência internacional dos Tribunais portugueses.

1- Em razão do referido em 5.1., cabe os tribunais do Estado da residência habitual do menor, no momento em que o processo é instaurado, a competência internacional para conhecer das questões atinentes à regulação das responsabilidades parentais.

2 - Ocorrendo uma deslocação dos menores de Moçambique – local onde à data tinham estabelecida a respectiva residência habitual - para Portugal, por iniciativa unilateral do progenitor e ao arrepio da vontade da progenitora que permanece em Moçambique, tal deslocação porque prima facie “ilícita”, não pode/deve funcionar para desencadear uma nova conexão transnacional a ponto de conferir aos tribunais português a competência internacional no âmbito de processo de regulação das responsabilidades parentais.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como vimos supra, e baseado no pressuposto fáctico [que pelo apelante não foi impugnado, nos termos do artº 640º, do CPC] de as menores …..residirem em Maputo, Moçambique, tendo vindo para Portugal recentemente apenas em gozo de férias], veio o tribunal a quo a julgar-se internacionalmente incompetente [ainda que para tanto não tenha especificado/identificado quais os fundamentos de direito que ancoram a sua decisão], para a acção de regulação das responsabilidades parentais pelo apelante proposta.

Discordando o apelante da aludida decisão, é seu entendimento que, em face do disposto no artigo 9.°, n.° 7 da Lei n.° 141/2015, de 8 de Setembro, do artigo 62.° do CPC e dos artigos 57.°, n.° 1, 31.° e 25.° do Código Civil, o correcto é considerar o Tribunal português como sendo o competente internacionalmente para a regulação das responsabilidades parentais no tocante as menores …...
 
Vejamos, portanto, de seguida, se na realidade [como o defende o recorrente] são os tribunais portugueses internacionalmente competentes para decidir da pretendida regulação das responsabilidades parentais relativamente às menores …., nascida em 22/03/2010, e …., nascida em 22/03/2010. [...]

[...] nos termos dos artigos 37º, nº2 e 38º, n.º 1, ambos da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto [LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO], importa não olvidar que é a lei do processo que fixa os factores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais, sendo que, “A competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram “.

Postas estas breves considerações iniciais, e começando precisamente pela Lei do processo, diz-nos o art.º 59º do C.P.C [precisamente com a epígrafe de “Competência internacional”, que “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”.

Os factores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses, tal como o dispõe o supra transcrito artº 59º, do CPC, encontram-se portanto mencionados nos artigos 62.º e 63.º , ambos do CPC, sem embargo claro está do que se mostrar estabelecido em normas de direito internacional, bem como nas convenções internacionais ratificadas pelo Estado Português – cfr. artigo 8.º da CRP
 
Assim, dispõe o artº Artigo 62.º, do CPC [Factores de atribuição da competência internacional], que Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;

b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;

c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real”. [...]

Regressando [...] aos factores de atribuição de competência internacional plasmados no artº 62º, do CPC, e começando pelo vertido na respectiva alínea a), forçados somos em atender ao que se mostra disposto no Regime Geral do Processo Tutelar Cível/RGPTC [aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08.9], em matéria de competência territorial, máxime ao que reza o respectivo art.º 9º, n.º1, sob a epígrafe precisamente de “Competência territorial”. [...]

Ora, conjugando adequadamente o factor de conexão plasmado na alínea a), do artº 62º, do CPC, com a regra de competência territorial vertida no nº1, do artº 9º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível/RGPTC, e, caso se tenha em atenção a factualidade provada [pelo tribunal a quo fixada e não impugnada] vertida nos itens de facto do presente Acórdão e nºs 2.4., 2.5. e 2.6., forçoso é desde logo afastar o primeiro - factor de conexão - para efeitos de atribuição de competência aos tribunais portugueses , pois que, quando propõe o Apelante a presente acção, não têm as menores a sua residência em território nacional, antes residem em Moçambique. [...]

Porém, não escapando a conduta do apelante/progenitor a reparos e criticas quanto à respectiva licitude, desde logo porque o exercício do poder paternal das menores, na constância do matrimónio, pertence a ambos os pais [ cfr. artº 1901º, do CC ] e, como é pacifico, inquestionável é que é o local da respectiva residência de questão se trata que é de particular importância [cfr artº 1902º, do CC], logo, deve sempre ser decidida em comum por ambos os progenitores , que não por apenas um dos pais (In Teoria geral, 1967, 1º, pág. 228), não pode assim a permanência das menores em Portugal ser valorada como residência nos termos e para efeitos do artº 9º,nº1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível/RGPTC.

Acresce que, a assim não se entender, ou seja, atribuindo-se efeitos juridicamente relevantes ao facto imposto e consumado praticado unilateralmente pelo progenitor, e enquanto gerador/desencadeador da competência internacional da jurisdição portuguesa, tal equivaleria a contemporizar com uma actuação que não está longe de representar uma fraude à lei no Direito da competência internacional (Vide Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02-12-2014, proferido no processo nº 1045/12.3TBCLD-A.C1, sendo Relator TELES PEREIRA e in www.dgsi.pt), sendo que, como bem a propósito refere Luís de Lima Pinheiro (In Direito Internacional Privado, 2ª ed., Coimbra, 2012 ,Vol. III, pág. 51), “A sanção da fraude à lei em Direito da Competência Internacional decorre da irrelevância da manipulação do elemento de conexão ou da internacionalização fictícia da relação controvertida: A competência internacional dos tribunais portugueses será estabelecida com base nos elementos de conexão que existiriam se a manipulação ou a internacionalização fictícia não se tivessem verificado”.

Seguindo-se a análise do factor de conexão plasmado na alínea b), do artº 62º, do CPC [ “Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram “ ], temos também que a factualidade provada não se inclina para a competência internacional dos tribunais portugueses, e isto porque a separação do casal vem a ocorrer ainda em Moçambique, que não em Portugal [...].

Destarte, e em face da factualidade provada, pertinente é concluir que da mesma não brotam factos que confiram aos tribunais Portugueses a competência internacional , por virtude da aplicação, in casu, das als. a) e b) do artº 62º do CC.

Restando aferir da competência internacional dos tribunais portuguese em razão do factor de conexão da alínea c), do artº 62º, do CPC, constata-se que assenta ele no princípio da necessidade, a saber, que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique qualquer uma das seguintes situações:

- a primeira, quando a efectivação do direito invocado pelo demandante só seja possível por meio de acção proposta em território português (por nenhuma ordem jurídica tutelar a situação jurídica em causa) e a ordem jurídica portuguesa tenha com a acção algum elemento ponderoso de conexão pessoal ou real;

- a segunda, quando a ordem jurídica portuguesa tenha também com a acção algum elemento ponderoso de conexão pessoal ou real e não seja exigível ao autor a propositura da acção no estrangeiro. [...]

Em suma, como bem concluiu o Tribunal da Relação do Porto (Acórdão proferido em 11-11-2014, no processo nº 1628/12.1TMPRT-A.P1, sendo Relatora ANA LUCINDA CABRAL e in www.dgsi.pt), na alínea c), do artº 62º, do CPC, “ Abarca-se não só a impossibilidade jurídica, por inexistência de tribunal competente para dirimir o litígio em face das regras de competência internacional das diversas ordens jurídicas com as quais ele apresenta uma conexão relevante, mas também a impossibilidade prática, derivada de factos anómalos impeditivos do funcionamento da jurisdição competente: v.g. conflitos negativos; não reconhecimento, em abstracto, do direito pelo tribunal competente; Impossibilidade de facto: guerra; ausência de relações diplomáticas.

Ora, convenhamos, a verdade é que relativamente a tal matéria são os autos em absoluto destituídos de qualquer factualidade susceptível de integrar a previsão da alínea c), do artº 62º, do CPC.
 
Concluindo, é à luz dos elementos de conexão plasmados no artº 62º, do CPC, não se vê como considerar os tribunais Portugueses como internacionalmente competentes para a acção pelo apelante intentada.

Por último, porque como vimos supra, o art.º 59º do C.P.C , dispõe que “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando …. “ [ logo, para a resolução do thema decidendum, importa outrossim aferir se existem tratados, convenções, regulamentos comunitários ou leis especiais ratificadas ou aprovadas que, vinculando internacionalmente os tribunais portugueses – cfrº artigo 8.º, nº 4, da CRP – e prevalecendo sobre as normas processuais portuguesas ,confiram a competência internacional aos tribunais portugueses no caso sub judice], resta como derradeira hipótese para conferir razoabilidade/pertinência à pretensão do apelante a “descoberta” de um instrumento internacional que a suporte.

Neste âmbito, recorda-se que, através do Decreto n.º 52/2008, de 13 de Novembro e nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 197.º da Constituição, o Governo aprovou a Convenção relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças, adoptada em Haia em 19 de Outubro de 1996, e cujo artº 1º, alínea a), reza que a presente Convenção tem por objecto “Determinar qual o Estado cujas autoridades têm competência para tomar as medidas orientadas à protecção da pessoa ou bens da criança”.

Mais decorre da referida Convenção, que para os efeitos da mesma “ a expressão «responsabilidade parental» designa a autoridade parental ou qualquer outra relação análoga de autoridade que determine os direitos, poderes e responsabilidades dos pais, tutores ou outros representantes legais relativamente à pessoa ou bens da criança” [artº 1º, nº 2] , e que “ As medidas previstas no artigo 1.º poderão, nomeadamente, envolver a Atribuição, exercício, termo ou redução da responsabilidade parental, bem como a sua delegação” [artº 3º,alínea a)].

E, mais especificamente sob a epígrafe de “ Competência”, dizem-nos também os nºs 1 e 2, do artº 5º da Convenção, respectivamente, que “As autoridades jurídicas ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à protecção da pessoa ou bens da criança” e que “ Com ressalva do artigo 7.º, em caso de mudança da residência habitual da criança para outro Estado Contratante, as autoridades do Estado da nova residência habitual terão a competência”.

Alinhando pela mesma escolha do critério atendível em sede de competência internacional, temos ainda a considerar o Regulamento(CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000, e o qual, sendo aplicável, independentemente da natureza do tribunal, às matérias civis relativas à atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental [artº 1º,nº1, al b)], dispõe no seu artº 8º, nº1, que “ Os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.

Ora, se é verdade que para a determinação da competência internacional, só se aplicam os critérios de conexão a que se refere o artigo 62º do Código de Processo Civil se não existirem instrumentos internacionais que vinculem internacionalmente os tribunais portugueses [pois, existindo, prevalecem sobre os critérios plasmados na segunda parte do artº 59º do CPC], certo é que também em função da aplicação dos dois instrumentos internacionais acima mencionados, e para que os tribunais português se pudessem arrogar internacionalmente competentes para apreciar e julgar a acção pelo apelante intentada, forçoso é que apontasse a factualidade assente [o que vimos supra não acontece] para que as duas menores tivessem a sua residência habitual em Portugal à data em que o apelante instaurou processo no tribunal. [...]

Aqui chegados, porque quer à luz da primeiro parte do artº 59º, do CPC, quer por aplicação dos factores de conexão a que alude o artigo 62º do mesmo diploma (e para o qual remete a segunda parte do artº 59º ), não se descobre a competência internacional dos tribunais português para apreciar e julgar a acção pelo apelante intentada, só nos resta concluir como o fez a primeira instância, ou seja, “ Em face de tal residência [em Moçambique] efectiva das menores, carece este tribunal de competência internacional para a presente acção de regulação das responsabilidades parentais, competência essa que pertence aos tribunais de Moçambique dos quais aliás corre já acção com o mesmo objecto”.

[MTS]