Incidente de habilitação;
herdeiros; posição processual*
1 – Numa acção de reivindicação apesar do incidente de habilitação dos herdeiros do primitivo réu, não se verifica a transmissão das obrigações, rectius, das situações jurídicas passivas que os autores, na petição inicial, imputavam ao primitivo réu: a ocupação, por este, sem título e por isso ilícita do prédio e, a responsabilidade pelo prejuízo que lhes advém dessa ocupação ilícita do terreno.
2 – Se a acção não foi instaurada contra a “herança” do primitivo réu, com a morte deste, essa “herança” não é parte na acção e, por isso, nela não pode nessa ser condenada.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"3.3- A Pretendida Revogação da sentença.
Por uma questão de apreciação unitária de ambos os recursos, proceder-se-á a uma análise conjunta das posições de cada um dos apelantes, retirando-se, posteriormente, as respectivas consequências dessa análise.
Vejamos então.
Posição dos réus habilitados/apelantes.
Entendem os réus habilitados que a “herança” de JCF não podia ter sido condenada a reconhecer os autores como proprietários do prédio, porque a “herança” do JCF não é parte na acção e, se o tribunal absolveu os réus habilitados dos pedidos de condenação a restituírem o prédio e a indemnizarem os autores, por não se lhes ter transmitido a posição do primitivo réu, então deveria ter absolvido, igualmente, a “herança” do pedido de reconhecimento dos autores como proprietários do terreno.
Posição dos autores.
Já os autores, por sua vez, defendem que os réus habilitados deveriam ter sido condenados na totalidade dos pedidos porque não demonstraram possuir título válido que lhes legitime a utilização do terreno.
Pois bem, para perceber o problema em discussão coloca-se a questão de saber se a posição que os autores atribuíram no litígio ao primitivo réu, JCF, se transmitiu para os réus habilitados como sucessores daquele.
Com efeito, os autores desenharam o litígio afirmando ser o primitivo réu, JCF, quem explorava o terreno e se recusa a sair dele.
Porém, na contestação, o primitivo réu afirmou ter deixado de explorar o prédio em 1994, passando a ser o seu filho JVF a fazê-lo, por si próprio, pagando rendas.
Ou seja, na petição inicial, os autores imputavam ao primitivo réu, JCF, a ocupação sem título e ilícita do prédio e a responsabilidade pelo prejuízo que lhes advém dessa ocupação ilícita do terreno.
Com a morte do primitivo réu transmitiu-se aos seus herdeiros, os réus habilitados, a responsabilidade civil pela imputada exploração ilícita e danosa do prédio?
Na verdade, a habilitação é a prova da aquisição, por sucessão ou transmissão, da titularidade de um direito ou complexo de direitos, ou de uma situação jurídica, ou um complexo de situações jurídicas (Cf. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 11ª edição, 2020, pág. 190). Quer dizer, no caso de falecimento de uma parte no processo, a habilitação dos sucessores pressupõe que a situação jurídica em litígio seja transmissível aos sucessores do falecido. Ou dito de outro modo “O incidente de habilitação de sucessores constitui o meio processual de operar a modificação subjectiva da instância, através da substituição da parte primitiva pelos respectivos sucessores na relação substantiva em litígio (artigo 262.º do CPC).Trata-se, portanto, de uma excepção ao princípio da estabilidade da instância caracterizada pelo falecimento da parte e transmissão por via sucessória da posição que ela ocupava na relação substantiva. A habilitação de sucessores tem assim como requisitos o falecimento de uma parte na acção e que a relação substantiva de que ele era titular não se tenha extinto com o respectivo óbito. Os sucessores da parte falecida são chamados a substituir a parte falecida porque lhe sucederam na titularidade da relação substantiva em litígio e por isso têm interesse em ocupar a posição de parte.” (Ac. da Rel. do Porto, 10/07/2019, Aristides Rodrigues de Almeida,
www.dgsi.pt).
Quer isto significar que a habilitação de herdeiros visa o prosseguimento da lide com os habilitados, e não a atribuição, àqueles, da titularidade da relação material controvertida em causa, ou seja, não determina o âmbito da responsabilidade dos herdeiros habilitados relativa ao objecto da acção. “Em suma, por via deste incidente promove-se a substituição de uma parte primitiva pelo seu sucessor na situação jurídica litigiosa em causa, mas sem implicar a transmissão de direitos ou obrigações que eram da titularidade da primeira.” (Salvador da Costa, Os Incidentes…, cit., pág. 191).
Por conseguinte, no caso dos autos, apesar do incidente de habilitação dos herdeiros do primitivo réu, não se verificou a transmissão das obrigações, rectius, das situações jurídicas passivas que os autores, na petição inicial, imputavam ao primitivo réu: a ocupação, sem título, e por isso ilícita do prédio e, a responsabilidade pelo prejuízo que lhes advém dessa ocupação ilícita do terreno.
Por outro lado, como mencionam os réus habilitados, a “herança” (jacente?) do primitivo réu, JCF, não é parte na acção.
Vejamos. [...]
[...] no caso dos autos, a acção não foi instaurada contra a “herança” de JCF, o mesmo é dizer que a “herança” não é parte na acção.
Além disso, como vimos, não se verificou a transmissão das obrigações, rectius, das situações jurídicas passivas que os autores, na petição inicial, imputavam ao primitivo réu.
De resto, provou-se que “Desde 1994 JVF, filho de JCF, passou, em nome próprio, a pastorear gado no prédio identificado em A) sem qualquer autorização para tanto.”. E essa factualidade foi invocada na contestação.
Pois bem, afigura-se-nos que os autores, perante aquela alegação do primitivo réu, poderiam ter lançado mão do incidente de intervenção principal provocada do JVF a fim de, perante a dúvida suscitada na contestação sobre quem ocupava o terreno, poderem obter uma decisão, ainda que subsidiária, de reconhecimento do direito de propriedade e de condenação na restituição do terreno e na indemnização dos prejuízos.
Vejamos.
Com efeito, de acordo com o (então) artº 31º-B do CPC/95 (actualmente, artº 39º do CPC/13) com epígrafe “Pluralidade subjectiva subsidiária”:
“É admitida a dedução subsidiária do mesmo pedido, ou a dedução de pedido subsidiário, por autor ou contra réu diverso do que demanda ou é demandado a título principal, no caso de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida.”
Consagra-se no preceito a possibilidade de, em caso de dúvida fundamentada e razoável, sobre a efectiva titularidade da relação material controvertida, nomeadamente quando a parte ignora, sem culpa, a que título ou em que qualidade terá o devedor intervindo no acto que serve de causa de pedir à acção, designadamente se o faz por si próprio, ou em nome de terceiro, ou se é um terceiro quem praticou os actos em causa na petição e que servem de fundamento à acção.
Faculta-se, pelo preceito, seja dada prevalência ao interesse do demandante em ver apreciada, unitariamente, a responsabilidade dos possíveis devedores “alternativos” (Cf. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 79).
A pluralidade subjectiva subsidiária prevista no preceito origina uma situação de pluralidade de partes principais, já que a parte que demanda ou é demandada a título subsidiário só vê a pretensão que contra ela é dirigida ser apreciada se improceder o pedido deduzido a título principal ou contra a parte passiva originária.
Ora, o artº 325º nº 2 do CPC/95, actualmente, artº 316º nº 2 do CPC/13, permitia que o autor lançasse mão do incidente de intervenção principal provocada do réu subsidiário em situações de surgimento de uma superveniente pluralidade subjectiva subsidiária passiva, consentindo que o autor pudesse chamar a intervir como réu o terceiro contra quem pretende formular pedido subsidiário: tal possibilidade justifica-se pelo facto de a “dúvida fundada” sobre a titularidade da relação material controvertida poder surgir como decorrência da contestação deduzida pelo primitivo réu (Cf. Lopes do Rego, Comentários…cit., pág. 71 e seg.)
Era o que poderia ter sucedido no caso dos autos: perante a dúvida surgida em consequência da contestação do primitivo réu sobre quem era o efectivo titular da relação material controvertida, rectius, o efectivo ocupante do terreno, poderiam os autores ter lançado mão do incidente de intervenção principal provocada do JVF a fim de verem apreciada, subsidiariamente, a responsabilidade deste.
Porém, não o fizeram e optaram por manter, apenas, o primitivo réu na acção, quando ele disse que quem usava o terreno desde 1994 era o JVF (o que, de resto, se veio a provar).
Temos assim as seguintes três conclusões:
- (i) os autores optaram por não chamar à demanda o JVF, a fim de verem apreciada a responsabilidade deste a título subsidiário pela ocupação do terreno e condenação na respectiva desocupação;
- (ii) apesar do incidente de habilitação de herdeiros, não se verificou a transmissão das obrigações, rectius, das situações jurídicas passivas que os autores, na petição inicial, imputavam ao primitivo réu;
- (iii) a acção não foi instaurada contra a “herança” de JCF, o mesmo é dizer que a “herança” não é parte na acção e, por isso, nela não pode ser condenada.
Ora, perante estas conclusões é fácil perceber que a apelação dos autores não pode proceder: nem os réus habilitados nem a “herança” respondem pelos pedidos deduzidos.
Assim, apenas se mantém a sentença na parte em que reconheceu os autores proprietários do terreno, improcedendo os demais pedidos.
Já quanto à apelação dos réus habilitados, temos de concluir que têm razão: a “herança” não pode ser condenada a reconhecer os autores como proprietários do terreno, mantendo-se, por isso, a sentença apenas na parte em que reconheceu os autores como proprietários do terreno, improcedendo os demais pedidos."
*III. [Comentário] a) O acórdão da RL recai sobre uma questão muito interessante. No fundo, o que está em causa é a posição processual do sucessores habilitados de uma parte falecida.
b) No acórdão afirma-se o seguinte:
"[...] no caso dos autos, apesar do incidente de habilitação dos herdeiros do primitivo réu, não se verificou a transmissão das obrigações, rectius, das situações jurídicas passivas que os autores, na petição inicial, imputavam ao primitivo réu: a ocupação, sem título, e por isso ilícita do prédio e, a responsabilidade pelo prejuízo que lhes advém dessa ocupação ilícita do terreno".
Esta afirmação não merece contestação, mas, salvo melhor opinião, dela não podem decorrer as consequências tiradas pela RL.
No seu acórdão, a RL entendeu que, na parte relativa aos pedidos que não respeitam ao reconhecimento da propriedade do prédio -- e que são os relativos à "ocupação, sem título, e por isso ilícita do prédio e, [à] responsabilidade pelo prejuízo que [...] advém dessa ocupação ilícita do terreno" --, a acção não pode proceder quanto aos herdeiros habilitados. Quer dizer: a RL entendeu que os herdeiros não podiam ser condenados quanto a esses pedidos, porque, como acima se transcreveu, não se verificou quanto a esses herdeiros a "transmissão das obrigações, rectius, das situações jurídicas passivas que os autores, na petição inicial, imputavam ao primitivo réu".
Com a devida consideração, há um equívoco neste modo de ver as coisas. O art. 351.º, n.º 1, CPC estabelece que a habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa se destina a que, para com, eles possam prosseguir os termos da demanda. Em parte alguma se estabelece que a habilitação pressupõe ou determina uma qualquer sucessão dos habilitados em qualquer titularidade do direito patrimonial em discussão na acção. Veja-se também o disposto no art. 353.º, n.º 1, CPC: o que conta é a "qualidade de herdeiro" da parte falecida, não a qualidade de herdeiro do objecto do processo.
A finalidade do regime é bem clara: na impossibilidade de a acção continuar com ou contra uma parte por falecimento desta, promove-se a intervenção dos herdeiros; mas isto destina-se a permitir que se continue a discutir o que estava em discussão na causa, não a impor que o que estava em discussão passe a ser discutido na óptica dos herdeiros habilitados e, muito menos ainda, a proibir que algo continue a ser discutido.
Para além da substituição da parte falecida, em tudo o mais a instância permanece inalterada. É isto que justifica que nada do que a parte entretanto falecida tenha praticado em processo se perde e que os herdeiros habilitados não possam voltar a praticar actos que a parte falecida tenha praticado. Há uma continuidade (para o futuro) da instância, agora com partes que substituem a parte falecida.
É, aliás, por isso que não pode deixar de se concordar com a afirmação que consta do acórdão de que a "habilitação de herdeiros visa o prosseguimento da lide com os habilitados, e não a atribuição, àqueles, da titularidade da relação material controvertida em causa, ou seja, não determina o âmbito da responsabilidade dos herdeiros habilitados relativa ao objecto da acção".
Só que, ao contrário do que se entende no acórdão, isto não constitui uma limitação à apreciação do tribunal (traduzida, nomeadamente, na impossibilidade da procedência de certos pedidos contra os herdeiros habilitados), mas antes um pressuposto da intervenção dos herdeiros como habilitados. É precisamente porque estes herdeiros não estão em juízo como titulares da relação material controvertida que é possível continuar a discutir em processo o que nele estava em discussão e que pode ser algo que nada tenha a ver com esses herdeiros, como, por exemplo, a conduta da parte falecida.
Quer dizer: a qualidade de herdeiro da parte falecida é o título que atribui legitimidade a esse herdeiro para intervir na acção em substituição daquela parte falecida. Efectivamente, a sucessão ocorre apenas quanto à posição processual da parte falecida e, portanto, num âmbito exclusivamente processual. A sucessão não ocorre, num plano substantivo, quanto ao objecto do processo, nem, muito menos, quanto a partes ou parcelas deste objecto. É precisamente por isso que tudo o que podia ser discutido e decidido antes da intervenção do herdeiro continua a poder ser discutido e decidido após essa habilitação.
Quanto a este aspecto não pode deixar de ser referido o disposto no art. 1785.º, n.º 3, CC quanto à continuação da acção de divórcio após a morte de um dos cônjuges. Este preceito permite que essa acção seja continuada, para efeitos patrimoniais (e, portanto, sucessórios), pelos herdeiros do autor ou contra os herdeiros do réu. Este regime (que, em última análise, permite que a acção possa vir a decorrer sem a presença de nenhum dos cônjuges) é muito significativo por dois aspectos:
-- Os herdeiros não fazem valer nenhuma posição sucessória já adquirida quanto a um património, antes procuram definir essa mesma posição;
-- Apesar de, como se diz no preceito, o direito ao divórcio ser intransmissível, a acção pode continuar pelos ou contra os herdeiros; isto só faz sentido se nessa acção puder continuar a ser discutido o que se podia discutir antes da morte do cônjuge.
c) Note-se que, no caso concreto, até poderia haver fundamento para não condenar os herdeiros habilitados, dado que, segundo parece, ficou provado na acção que não era o primitivo réu que explorava e ocupava o terreno. O que não havia era fundamento para julgar alguns pedidos improcedentes com a justificação de que, com a morte do primitivo réu, não se transmitiu aos seus herdeiros a responsabilidade civil pela imputada exploração ilícita e danosa do prédio.
d) Generalizando para além do caso concreto, cabe, aliás, perguntar: se, após a aceitação da herança, os herdeiros habilitados não podem ser condenados quanto a certos pedidos formulados na acção relativos a direitos que não se extinguem com a morte da parte demandada, quem é que poderá vir a ser condenado e como é que o autor pode ver tutelado o seu interesse em juízo?
MTS