"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/02/2022

Jurisprudência 2021 (127)


Tribunal; actuação de boa fé;
venire contra factum proprium*


I. O sumário de RL 17/6/2021 (945/14.0T2SNT-J.L-2) é o seguinte:

1- Sendo admitido o reforço do arresto através da apreensão de bens em poder de terceiros, não por se estar perante o circunstancialismo a que alude o nº 2 do art.º 392º do Código de Processo Civil, mas porque se considera o disposto no art.º 747º do Código de Processo Civil, uma vez que se trata de bens integrantes do património da requerida (não sendo propriedade dos terceiros detentores dos mesmos), a defesa do direito de propriedade desses terceiros sobre os bens arrestados deverá ser exercitada pela via dos embargos de terceiro, e não pela via da oposição ao arresto a que respeita a al. b) do nº 1 do art.º 372º do Código de Processo Civil, já que tais terceiros não detêm a posição processual de requeridos no incidente de reforço do arresto.

2- Todavia, tendo tais terceiros sido considerados pelo tribunal recorrido como requeridos, designadamente assim tendo sido citados e assim tendo apresentado requerimento de oposição ao reforço do arresto, onde pretendem fazer valer o seu direito de propriedade sobre os bens apreendidos, o dever de gestão processual e o princípio da cooperação ditavam que o tribunal recorrido, ao invés de não admitir tal requerimento por ilegitimidade processual desses terceiros, tomasse as medidas adequadas à correcção daquela situação que gerou o erro na escolha do tipo de incidente que deviam utilizar (os embargos de terceiro), sob pena de se vedar o acesso dos mesmos à defesa dos seus direitos que terão sido atingidos pelo reforço do arresto que foi decretado e realizado, em violação do princípio constitucional da proibição da indefesa.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] os opoentes não podem ser considerados requeridos no procedimento cautelar de arresto, para efeitos de poderem deduzir oposição ao decretamento do reforço do arresto, nos termos da al. b) do nº 1 do art.º 372º do Código de Processo Civil, mas antes terceiros para os efeitos do disposto no art.º 747º do Código de Processo Civil e, designadamente, para poderem defender quaisquer direitos relativos às quantias arrestadas, através de embargos de terceiro.

Não obstante, o que de facto sucedeu no âmbito da tramitação dos autos de arresto foi a consideração dos opoentes como requeridos, desde logo sendo os mesmos considerados nessa qualidade pelo tribunal recorrido, como é evidente e decorre, não só da forma como foi feita a citação dos mesmos, mas igualmente dos despachos proferidos em 19/8/2020, 20/8/2020, 9/9/2020 e 19/11/2020.

Com efeito, desde logo no despacho de 9/9/2020 foi ordenada a notificação do agente de execução “para, em 10 dias, informar se procedeu à citação dos requeridos para o presente procedimento, comprovando-o documentalmente”. E tendo o opoente Afonso P. suscitado a invalidade da citação de todos os opoentes, pelo despacho de 19/11/2020 foi declarada a nulidade da citação dos mesmos, aí sendo os mesmos considerados como “requeridos” e ordenada a repetição das citações, sem que se fizesse qualquer menção de que as mesmas, destinando-se a dar conhecimento aos citandos dos arrestos concretizados, não se destinavam a conceder-lhes prazo para a dedução de oposição nos termos do art.º 372º do Código de Processo Civil.

Como resulta do art.º 6º do Código de Processo Civil, ao juiz assiste o dever de dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, designadamente adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável. [...]

Do mesmo modo, resulta do art.º 7º do Código de Processo Civil que na condução do processo o juiz da causa, os mandatários e as próprias partes devem cooperar entre si, tendo em vista a obtenção da justa composição do litígio, com brevidade e eficácia.

Ora a conjugação do referido dever de gestão processual com o referido princípio da cooperação, aplicada ao caso concreto dos autos, ditava que o tribunal recorrido clarificasse a posição processual dos opoentes, tendo presente que o reforço de arresto incidiu sobre os saldos das contas bancárias em nome dos mesmos e tendo igualmente presente que a decisão que ordenou tal reforço do arresto referiu expressamente que se tratava do “arresto de bens de terceiro”, quando ao mesmo tempo foi aí afirmado que estava em causa o “arresto de bens do devedor que se encontrem na posse de terceiros”.

E tal dever de gestão processual passava desde logo pela definição dos termos em que devia chegar ao conhecimento dos opoentes a apreensão das quantias existentes nas contas bancárias em seu nome, visando o exercício efectivo do seu direito de defesa contra tal apreensão, caso a mesma se apresentasse incompatível com qualquer direito dos mesmos sobre essas quantias.

Com efeito, e como ficou desde logo referido no acórdão de 18/6/2020, nessa circunstância os meios de defesa a utilizar passariam pelo recurso aos embargos de terceiro.

Ora, nos termos do disposto no art.º 344º do Código de Processo Civil, a oposição por embargos de terceiro é deduzida mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência ofensiva foi efectuada ou em que o embargante tomou conhecimento da ofensa. A referência aí feita à data em que o embargante tomou conhecimento da ofensa, em alternativa à data em que a diligência é efectuada, revela que o legislador prescinde da citação do detentor dos bens objecto de apreensão, no caso de se considerar o mesmo como terceiro em relação às partes na causa onde tal diligência de apreensão tem lugar. É que, a ocorrer tal citação, não faria sentido afirmar que tal prazo de caducidade de 30 dias se conta a partir da data de realização da diligência ou da data em que o terceiro tomou conhecimento da mesma, já que era através desse acto de citação que o mesmo prazo se devia contar, por ser aí que se dava conhecimento ao terceiro da prática do acto, tendo em vista a sua intervenção no processo, nos termos gerais previstos no art.º 219º, nº 1, do Código de Processo Civil. E, de todo o modo, sempre tal citação faria menção a essa sua qualidade de terceiro, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.º 342º e seguintes do Código de Processo Civil, e não de requerido na causa onde ocorreu a diligência.

Aliás, é por isso que a própria requerente afirma acertadamente, na sua alegação de resposta, que “não competia ao tribunal, maxime ao agente de execução citar os terceiros que tinham em seu poder os bens da requerida, já que aqueles, sentindo-se ofendidos nos seus direitos, deviam voluntariamente intervir nos autos, através dos embargos de terceiro”.

Ou seja, não podia o tribunal recorrido “deixar andar” os autos com esta errada consideração dos opoentes como requeridos, inclusivamente repetindo a (desnecessária) citação dos mesmos nessa qualidade, em suprimento da nulidade da mesma que foi verificada, sob pena de estar a violar o princípio da cooperação e o dever de gestão processual que o obrigava a tomar as medidas adequadas à correcção desse erro que, por não ter sido causado pelos opoentes, em nada os podia desfavorecer, como resulta claro do disposto no art.º 157º, nº 6, do Código de Processo Civil.

Tal dever de tomar as medidas adequadas à correcção desse erro de qualificação processual dos opoentes como requeridos é tanto mais relevante quanto, como já acima se disse, a sua qualidade de terceiros em relação às partes no procedimento cautelar de arresto apenas lhes permitia exercitar os seus direitos substantivos pela via adjectiva dos embargos de terceiro, e não pela via adjectiva a que alude a al. b) do nº 1 do art.º 372º do Código de Processo Civil. E é exactamente porque tais mecanismos processuais são meramente instrumentais do direito a exercer pelos opoentes que mais se impunha a clarificação e correcção daquela qualificação, para que o concreto e efectivo direito de defesa dos opoentes pudesse ser exercitado, pela correcta via dos embargos de terceiro.

Aqui chegados, constata-se já que o instrumento processual ao dispor do tribunal recorrido para alcançar esse fim último da gestão processual que se impunha se reconduzia à aplicação do disposto no nº 3 do art.º 193º do Código de Processo Civil.

Com efeito, aí se prescreve que o “erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados”.

Ou seja, se os opoentes, pretendendo defender o seu direito de propriedade sobre os saldos das contas bancárias em seu nome que foram arrestados (por se considerar serem da titularidade da requerida e estarem na mera detenção dos mesmos), utilizaram o meio processual da oposição a que alude a al. b) do nº 1 do art.º 372º do Código de Processo Civil, e não o meio processual adequado dos embargos de terceiro a que respeitam os art.º 342º e seguintes do Código de Processo Civil, mais não praticaram que um erro na qualificação do meio processual que deviam utilizar, e que não se deveu a qualquer violação “do princípio da auto-responsabilidade das partes” (na expressão utilizada na decisão recorrida), mas antes à violação do dever de gestão processual pelo tribunal recorrido, ao permitir a errada qualificação processual dos mesmos como requeridos, e assim os citando, quando a correcta qualificação processual dos mesmos como terceiros não impunha essa citação (e muito menos para intervirem nos autos nos termos do nº 1 do art.º 372º do Código de Processo Civil).

E ao afirmar que a partir do “lapso/erro de citação não pode ficcionar-se uma realidade processual inexistente”, mas omitindo que tal “ficção” tinha sido por si criada, e omitindo igualmente a necessidade do desaparecimento dessa “ficção” (e a recondução da defesa dos opoentes ao seu correcto e concreto meio adjectivo) com recurso ao mecanismo processual a que respeita o nº 3 do art.º 193º do Código de Processo Civil, o tribunal recorrido mais não praticou que uma violação do referido dever de gestão processual e do princípio da cooperação a que estava obrigado, e que lhe impunha a referida recondução, sob pena de vedar o acesso dos opoentes à defesa dos seus direitos que terão sido atingidos pelo reforço do arresto que foi decretado e realizado, em violação do disposto no nº 4 do art.º 20 da Constituição da República Portuguesa, de onde emana o princípio da proibição da indefesa.

Ou seja, nesta parte há que concordar com os opoentes, quando concluem que o erro no meio processual utilizado pelos mesmos decorre dos erros e omissões praticados pelo tribunal recorrido, e assim se justificando a sua correcção oficiosa, nos termos do referido nº 3 do art.º 193º do Código de Processo Civil, e desde logo porque a convolação a realizar não esbarra na existência de requisitos específicos para o acto convolado, que não estejam presentes no acto a convolar, mais podendo ser desconsiderado tudo o que vem alegado pelos opoentes e que ultrapassa os limites da oposição por embargos de terceiro (assim se revelando inútil para os fins deste incidente).

Do mesmo modo, a convolação em questão torna inútil apurar da nulidade da citação dos opoentes, desde logo porque, como acima se referiu, se a mesma serviu para dar conhecimento aos opoentes da existência do incidente de reforço do arresto e da diligência de apreensão dos saldos das contas bancárias, sempre servirá para aferir do termo inicial do prazo a que alude o art.º 344º, nº 2, do Código de Processo Civil, mas sem determinar qualquer limitação ao direito de defesa dos mesmos ou qualquer outro efeito violador desse direito.

Em suma, na procedência das conclusões do recurso dos opoentes importa revogar a decisão recorrida e determinar a sua substituição por outra que ordena a correcção da qualificação do meio de defesa apresentado pelos mesmos, no sentido de corresponder à apresentação de P.I. de embargos de terceiro, mais determinando que no tribunal recorrido sejam seguidos os termos processuais adequados à convolação operada."


*III. [Comentário] A RL decidiu bem.

Talvez se possa acrescentar que uma actuação de boa fé de qualquer tribunal impõe que este não possa fazer recair sobre as partes ou sobre terceiros as consequências de uma actuação menos diligente própria, mas que justifica que aqueles sujeitos possam justificadamente confiar que o tribunal os considera como partes ou como terceiros. Ou seja: também ao tribunal é proibido o venire contra factum proprium.

MTS