"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/02/2022

Jurisprudência 2021 (124)


Embargos de executado; decisão; 
efeitos; não embargantes*


I. O sumário de RL 8/6/2021 (8309/16.5T8LRS-A.L1-7) é o seguinte:

1. Qualquer decisão judicial deve ser interpretada, ponderando o disposto nos arts. 236º nº 1, e 238º nº 1 do CC, por força do estatuído no art. 295º do mesmo diploma legal, não esquecendo a natureza própria do ato em questão, a determinar a sua interpretação de acordo com a lei, e tendo em conta o pedido e a causa de pedir.

2. O caso julgado da decisão proferida nos embargos apenas se produz entre executada/embargante e exequente, nos termos dos arts. 580º, nº 1, 581º, nºs 1 e 2, e 619º, nº 1 do CPC.

3. Havendo litisconsórcio voluntário passivo na execução, o caso julgado apenas tem efeitos para o executado/embargante, sem prejuízo de os outros executados se socorrerem dos arts. 531º, 538º, nº 2 e 635º do CC.

4. Não sendo a prescrição de conhecimento oficioso, e apenas aproveitando a quem a invoca (art. 303º do CC), não pode a decisão de extinção da execução com fundamento em prescrição da ação cartular aproveitar aos restantes executados que a não invocaram.

5. Tendo o executado/embargante apenas intervindo no contrato de mútuo celebrado entre o Banco e a sociedade executada na qualidade de avalista de uma livrança entregue para garantia das quantias entregues por força daquele contrato, apenas nessa qualidade se obrigou.

6. Através da subscrição da autorização de preenchimento, o embargante/avalista (que não foi parte no contrato de mútuo) vinculou-se perante o exequente a um acordo quanto à obrigação cartular em si mesma, e nada mais do que isso.

7. Extinta a obrigação cartular resultante do aval por efeito da prescrição, e não alegando o exequente factos concretos demonstrativos de que o avalista se assumiu como fiador pelo cumprimento das obrigações do avalizado, a livrança prescrita não se mostra suficiente para figurar como título executivo, nos termos do artigo 703º, nº1, alínea c) do Código de Processo Civil.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. Começa o apelante por se insurgir contra a sentença recorrida por ter decretado a extinção da execução, sem fundamentos para tal, uma vez que, tendo sido os embargos deduzidos pela executada C, apenas quanto a esta têm eficácia, devendo a execução continuar contra os restantes executados, tanto mais que a prescrição invocada pela executada C apenas a esta aproveita, atento o disposto no art. 303° do CC.

Vejamos.

A questão que o apelante coloca prende-se com a interpretação da decisão proferida, sendo entendimento jurisprudencial uniforme que a mesma deve ser feita ponderando o disposto nos arts. 236° n° 1, e 238° n° 1 do CC, por força do estatuído no art. 295° do mesmo diploma legal, ponderada a natureza própria do ato em questão, a determinar a sua interpretação de acordo com a lei, tendo em conta o pedido e a causa de pedir.

Como de forma clara e exaustiva se escreveu no Ac. da RL de 29.3.2011, P. 521-A/199.L1-1 (Pedro Brighton), em www.dgsi.pt, “..., constitui afirmação corrente na Jurisprudência e na Doutrina que a sentença proferida em processo judicial constitui um verdadeiro ato jurídico a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos, razão pela qual as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial são igualmente válidas para a interpretação de. Esta conclusão não pode, porém, olvidar a especificidade dos actos jurisdicionais relativamente aos negócios jurídicos (cf. Acórdão do S.T.J. de 22/3/2007 e de 3/2/2011, ambos consultados na “internet” em www.dgsi.pt). Os despachos judiciais, como as sentenças, constituem actos jurídicos a que se aplicam, por analogia, as normas que regem os negócios jurídicos (art. 295° do Código Civil). Significa isto que a decisão judicial há-de valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, ainda que menos perfeitamente (art°s. 236° n° 1 e 238° n° 1 do Código Civil). Não se tratando de um verdadeiro negócio jurídico, a decisão judicial não traduz uma declaração pessoal de vontade do julgador, antes exprimindo “uma injunção aplicativa do direito, a vontade da lei”, no caso concreto, correspondendo ao “resultado de uma operação intelectual que consiste no apuramento de uma situação de facto e na aplicação do direito objectivo a essa situação” (Acórdão do S.T.J. de 5/11/1998, consultado na “internet” em www.dgsi.pt). Importa, assim, ter em consideração, não só que o declarante se situa numa específica área técnico jurídica, investido na função de aplicador da lei, que, por sua vez, está obrigado a interpretar, em conformidade com as regras estabelecidas no art. 9° do Código Civil, dirigindo-se a outros técnicos de direito, como também a correlação lógica e teleológica entre a pretensão em apreciação, os fundamentos de facto e de direito em que assenta o dispositivo decisório e este, tudo à luz da sua estrita conexão, desenvolvimento e interdependência (cfr. Acórdão do S.T.J. de 28/1/1997, in Col. Acórdãos do S.T.J. 5/1997, pg. 83). Por outro lado, a interpretação da sentença não pode assentar exclusivamente na análise do sentido da parte decisória, tendo naturalmente que considerar os seus antecedentes lógicos, toda a fundamentação que a suporta, sem deixar de ter em conta outras circunstâncias relevantes, mesmo posteriores à respectiva elaboração (cf. Acórdão do S.T.J. de 8/6/2010, consultado na “internet” em www.dgsi.pt). E, nesta operação deve (como refere Castro Mendes in “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, pg. 255) atentar-se na regra importantíssima segundo a qual “o ato jurídico se presume regular”. E como factor da regularidade (em certa medida até da validade) da sentença é a adequação da sentença ao pedido e à causa de pedir, e a adequação da sentença aos seus próprios fundamentos, daqui resulta que pedido, causa de pedir e fundamentos são importantes elementos de interpretação da sentença. Finalmente, sendo as decisões judiciais actos formais, amplamente regulamentados pela lei de processo e implicando uma “objectivação” da composição de interesses nelas contida, tem de se lhe aplicar a regra fundamental segundo a qual não pode a sentença valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (princípio estabelecido para os negócios formais no art. 238o do Código Civil e que, valendo para a interpretação dos actos normativos nos termos do art. 9° n° 2 do Código Civil, tem identicamente, por razões de certeza e segurança jurídica, de valer igualmente para a fixação do sentido do comando jurídico concreto ínsito na decisão judicial)".

Nesta esteira, também Remédio Marques, in “Em torno da interpretação das decisões judiciais - O limite temporal final para a definição dos direitos conferidos ao trabalhador no quadro das remunerações intercalares por despedimento ilícito”. Lusíada, Direito, Porto N° 7 e 8 (2013), págs. 84/86, escreve que “Interpretar uma decisão judicial volve-se, desta maneira, no interpretar o objecto do processo, tal como ele tenha sido configurado pelo autor (ou pelo réu reconvinte) e haja sido apreciado e julgado pelo Tribunal. Assim, o problema da interpretação de uma decisão judicial não é autónomo do iter decisório cujo desfecho é a prolação da sentença ou do acórdão.” [No mesmo sentido, ver, entre outros, os Acs. da RC de 22.3.2011, P. 243/06.3TBFND-B.C1 (Teles Pereira), da RG de 27.6.2019, P. 606/06.4TBMNC-D.G1 (Cristina Cerdeira), da RE de 7.12.2012, P. 473/04.2TBLL.E (Paulo Amaral), todos em www.dgsi.pt.]

Por outro lado, “Importa assinalar, como critério interpretativo, a presunção de o julgador não ter decidido contra a lei. Busca-se, assim, na interpretação da decisão judicial, solução que esteja mais em harmonia com o direito vigente.”, e conclui que “Havendo dúvidas na interpretação do dispositivo da sentença, deve-se preferir a que seja mais conforme à fundamentação e aos limites da lide, em conformidade com o pedido formulado no processo. Não deve interpretar-se a decisão judicial, no sentido em que foi proferida sentença ultra ou extra petita, se é possível, sem desvirtuar seu conteúdo, interpretá-la em conformidade com os limites do pedido inicial. Isto porque sentença é uma resposta ao pedido, o que certamente facilita a compreensão da resposta o exame do que foi perguntado ou pretendido”.

Analisada a sentença recorrida à luz dos referidos critérios, a única conclusão a tirar é que a decisão de declarar extinta a execução apenas respeita à executada/embargante C.

O n° 4 do art. 732° do CPC dispõe que “a procedência dos embargos extingue a execução, no todo ou em parte”.

Ao decidir julgar integralmente procedentes os embargos, o tribunal recorrido determinou a extinção da execução em obediência ao mencionado preceito legal.

Na fundamentação da sentença recorrida, o tribunal recorrido, apreciou a excepção de prescrição da acção cartular ao abrigo do disposto no art. 70° da LULL (aplicável por via do art. 77° da mesma lei) invocada pela embargante, analisando a sua intervenção na livrança dada à execução -

“Mostra-se comprovado que a livrança dada à execução foi entregue ao embargado para garantia do cumprimento de contrato de mútuo celebrado entre o BPN - Banco Português de Negócios, S.A. e a sociedade T, Lda. A livrança foi entregue em branco, tendo sido subscrita pela referida sociedade e avalizada pela embargante. Da factualidade comprovada, conclui-se que a embargante prestou validamente o seu aval e ficou obrigada, por via disso, ao pagamento da livrança.”, “A relação subjacente à emissão da livrança e invocada no requerimento executivo consiste no contrato de mútuo celebrado entre o BPN, S.A. e a sociedade T, Lda. Neste contrato, a embargante apenas interveio na qualidade de avalista (para além de representante legal da sociedade mutuária). A embargante não se obrigou ao pagamento da quantia peticionada nos autos de execução por outra via que não a do aval. Mostrando-se prescrita a obrigação cambiária, a obrigação decorrente do aval não subsiste. ”, “Em suma, uma vez que a embargante apenas se obrigou ao pagamento da obrigação decorrente do contrato de mútuo por via do aval que prestou e mostrando-se prescrita a obrigação cambiária, não é a embargante responsável pelo pagamento das quantias peticionadas nestes autos”, pelo que a decisão de extinção da execução só à mesma pode respeitar.

No RI de embargos, a executada/embargante formulou o pedido de “absolvição da executada do pedido formulado” .

O caso julgado da decisão proferida nos embargos apenas se produz entre executada/embargante e exequente, nos termos dos arts. 580°, n° 1, 581°, n°s 1 e 2, e 619°, n° 1 do CPC.

E embora seja controvertida a questão de saber se o caso julgado vincula os executados que não foram parte nos embargos, sufragamos o entendimento de que, havendo litisconsórcio voluntário passivo na execução, como é o caso, o caso julgado apenas tem efeitos para o executado/embargante, sem prejuízo de os outros executados se socorrerem dos arts. 531°, 538°, n° 2 e 635° do CC [...] [Ver Lebre de Freitas, A Ação Executiva à luz do CPC de 2013, 7a ed., págs. 224/225, e Rui Pinto, A Ação Executiva, 2019, reimpressão, pág. 441/442].

Em todo o caso, importa atentar, ainda, nos fundamentos dos embargos (e da decisão), mais concretamente, na invocação da prescrição da acção cartular.

Não sendo a prescrição de conhecimento oficioso, e apenas aproveitando a quem a invoca (art. 303° do CC), como salientou o apelante, não pode a decisão de extinção da execução com fundamento em prescrição da acção cartular aproveitar aos restantes executados que a não invocaram.

Não merece, pois, censura a decisão recorrida, sendo certo que, como pretende o apelante, a decisão não obsta ao prosseguimento dos autos executivos contra os restantes executados."

*III. [Comentário] O acórdão da RL apreciou uma questão interessante.

No fundo, a RL entendeu que que o regime substantivo da prescrição -- em particular, a necessidade da sua invocação pelo interessado (art. 303.º CC) -- deve prevalecer sobre a extensão dos efeitos da decisão de embargos a não embargantes que poderia resultar da aplicação analógica do disposto no art. 634.º, n.º 2, CPC. 

Atendendo ao carácter instrumental do direito processual civil e, por isso, à impossibilidade de as regras processuais alterarem regimes substantivos, a orientação da RL merece acolhimento.

MTS