"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/02/2022

Jurisprudência 2021 (128)


Declaração de nulidade; "interessado"
legitimidade processual; aferição


1. O sumário de RL 17/6/2021 (572/18.3T8OER.L1-2) é o seguinte:

I– Na aferição da legitimidade directa, urge ajuizar, na ponderação do concreto litígio, se a previsível procedência da acção, nos termos configurados pela demandante, é susceptível de lhe trazer, objectivamente, uma situação de vantagem ou utilidade, o que traduz a adopção do denominado critério da utilidade ou prejuízo, com enfoque no nº. 2 do artº. 30º, do Cód. de Processo Civil;

II– tal implica o reconhecimento de que a demandante Autora poderia dispor, através dos meios processuais, acerca da situação jurídica material em que se traduz o objecto processual, ou seja, a invocação da nulidade do contrato de doação, daí obtendo benefício jurídico directo, que não apenas reflexo, com o putativo juízo de procedência;

III– ainda no âmbito da legitimação directa, e na aplicação do denominado critério formal da titularidade, previsto no nº. 3 do mesmo normativo, impor-se-ia efectuar a correspondência entre a afirmada relação material (em controvérsia) e a legitimidade processual exercida, legitimando-se esta através daquela, de acordo com o quadro factual densificador da causa de pedir afirmado pela Autora;

IV– não se reconhecendo a atribuição de directa legitimação, urge conhecer acerca da eventual existência de legitimidade indirecta para a instauração da presente acção, ou seja, se nos termos da 1ª parte do nº 3, do transcrito artº. 30º, do Cód. de Processo Civil, não existirá normativo legal que faça estender tal legitimação;

V– nomeadamente o prescrito no artº. 286º, do Cód. Civil, no sentido de que sendo nulo o acto jurídico, é reconhecida legitimidade para a propositura da acção destinada à declaração da nulidade a qualquer terceiro interessado;

VI– ou seja, mesmo que estranho à relação material controvertida, pois a pretendida declaração de nulidade não tem por suporte o afirmar de um qualquer direito potestativo do demandante que a lei expressamente lhe reconheça, aquele normativo é susceptível de atribuir ao interessado tal faculdade ou poder geral (atribuição legal de legitimidade);

VII– a Autora, enquanto sucessível legitimária, não tem, em vida da sua mãe (ora 1ª Ré), um qualquer direito subjectivo à quota-parte daquilo que constituiria a sua porção legitimária – cf., artigos 2156º e 2157º, ambos do Cód. Civil -, ou, ainda menos, que possa arrogar-se como titular de um qualquer direito subjectivo sobre concretos bens constituintes do património hereditário, capazes de virem a inteirar a sua quota;

VIII– efectivamente, a Autora, enquanto putativa sucessível de sua mãe, e durante a vida desta, apenas se pode considerar como detentora de uma expectativa juridicamente titulada à sua porção legitimária, e não de um qualquer direito subjectivo à quota-parte em que se traduz a sua parcela ou porção legitimaria;

IX– com efeito, a Autora, enquanto designada sucessível legitimária de sua mãe, na vida desta, não possui qualquer mecanismo de tutela, de garantia ou de conservação daquela expectativa jurídica;

X– inexiste qualquer tutela legal geral relativamente à protecção dos sucessíveis legitimários, no sentido de conferir-lhes legitimidade para poderem agir, durante a vida do autor da sucessão, contra os actos por este praticados que de alguma forma afectem as suas expectativas futuras na sucessão dos bens da herança;

XI– excepção legalmente prevista a tal princípio é a que decorre da legitimidade outorgada aos herdeiros legitimários relativamente aos negócios simulados feitos pelo autor da sucessão, com o intuito de os prejudicar, conforme decorre do nº. 2, do artº. 242º, do Cód. Civil, podendo agir mesmo em vida daquele.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"IV) – Da concreta (i)legitimidade da Autora

Pretende a Autora a declaração de nulidade do contrato de doação celebrado entre a Ré mãe (entretanto falecida) e o Réu irmão, outorgado em 06 de Agosto de 2012, referente á nua propriedade da fracção autónoma F, correspondente ao 5º andar do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ……………………….., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº. 2..., e inscrito matricialmente sob o artigo 1....

Funda a sua pretensão na circunstância da escritura pública de doação ter sido outorgada em Cartório Notarial, perante Notária que se encontrava pessoalmente impedida de praticar actos de notariado, em virtude de ter sido condenada, por despacho ministerial, na pena de interdição definitiva do exercício de funções, ficando obrigada a cessar o exercício da actividade notarial.

Pelo que, rotulando tal acto como nulo, pretende que o Tribunal efective tal declaração.

Ora, para além do consignado, nada mais aduziu a Autora em sede de articulado inicial e, independentemente da pertinência processual, também nada mais aduziu, em termos factuais, na resposta às excepções apresentada.

Ou seja, tal como referenciado na decisão apelada, não decorre do alegado que a Autora, não sendo parte na outorga daquele contrato de doação, e apenas se apresentando como filha e irmã dos Réus, tenha exposto ou esclarecido qual o interesse que tem nesta acção, nem qual o benefício/utilidade que obtém com a sua procedência, de forma a preencher o conceito de interessado legalmente equacionado no transcrito artº. 286º. Do Cód. Civil. Efectivamente, a mera alegação daquela relação familiar não permite, por si só, a percepção do interesse na demanda, nem a afirmação de um direito incompatível com o negócio jurídico realizado entre os Réus, alvo de impugnação.

Ora, na aferição da legitimidade directa, urge ajuizar, na ponderação do concreto litígio, se a previsível procedência da acção, nos termos configurados pela Autora, é susceptível de lhe trazer, objectivamente, uma situação de vantagem ou utilidade. No que se traduz a adopção do denominado critério da utilidade ou prejuízo, com enfoque no nº. 2 do artº. 30º, do Cód. de Processo Civil.

O que implicava, igualmente, o reconhecimento de que a Autora poderia dispor, através dos meios processuais, acerca da situação jurídica material em que se traduz o objecto processual, ou seja, a invocação da nulidade do enunciado contrato, daí obtendo benefício jurídico directo, que não apenas reflexo, com o putativo juízo de procedência.

Ainda no âmbito da legitimação directa, e na aplicação do denominado critério formal da titularidade, previsto no nº. 3 do mesmo normativo, impor-se-ia efectuar a correspondência entre a afirmada relação material (em controvérsia) e a legitimidade processual exercida, legitimando-se esta através daquela, de acordo com o quadro factual densificador da causa de pedir afirmado pela Autora.

Todavia, analisada aquela causa de pedir, não se descortina a existência de qualquer interesse directo em demandar, nem que da eventual procedência da demanda resultasse, directamente, uma qualquer situação de vantagem ou benefício para a Autora. E, não se olvide, tal interesse, conforme supra expusemos, para além da sua juridicidade, sempre teria que ser directo, e não meramente reflexo, mediato ou derivado.

Nem se evidencia, por outro lado, que a mesma Autora, na configuração pela mesma introduzida na exposta causa de pedir, se afirme com a exigível qualidade posicional de parte face à acção ou litígio em controvérsia, de modo a que tal lhe confira a legitimação processual de que se arroga.

Donde, resulta claro não possuir a Autora a exigível legitimidade ou legitimação directa para a instauração da presente acção.

Aqui chegados, urge apreciar se à mesma Autora, ora Apelante, não será possível reconhecer legitimidade indirecta para a instauração da presente acção, ou seja, se nos termos da 1ª parte do nº 3, do transcrito artº. 30º, do Cód. de Processo Civil, não existirá normativo legal que faça estender tal legitimação.

Concretizando, impõe-se apreciar se, apesar de não poder ser considerada como titular da afirmada situação jurídica individualizada controvertida (mas antes estranha), sendo nulo o acto jurídico equacionado, a lei reconhece-lhe legitimidade para instaurar procedimento judicial destinado à declaração de tal nulidade.

Ora, conforme supra referenciámos, sendo nulo o acto jurídico, é reconhecida legitimidade para a propositura da acção destinada à declaração da nulidade a qualquer terceiro interessado, nos termos equacionados no artº. 286º, do Cód. Civil.

Ou seja, mesmo que estranho à relação material controvertida, pois a pretendida declaração de nulidade não tem por suporte o afirmar de um qualquer direito potestativo do demandante que a lei expressamente lhe reconheça, aquele normativo atribui ao interessado tal faculdade ou poder geral (atribuição legal de legitimidade). 

Donde, urge deste modo atentar se a Autora pode ser considerada como interessada, nos termos ali equacionados, o que passa por aferir se a relação jurídica pela mesma invocada é afectada, na sua consistência jurídica ou prática, pelos efeitos que a doação pretendia produzir. E, o interesse que aquele normativo reconhece é um interesse de direito substantivo, devendo a Autora, como potencial legitimada, ter um interesse directo na nulidade, e não meramente um interesse vago, indirecto ou reflexo.

Todavia, a única relação jurídica equacionável, ainda que não expressamente afirmada, é a que resulta da qualidade de herdeira da 1ª Ré, e sua potencial herdeira legitimária (à data da propositura da acção). 

Pelo que é mister aferir se tal posição é, por si só, suficiente e bastante para lhe conferir o estatuto de interessada para a invocação da nulidade da doação efectuada pela sua progenitora mãe ao seu irmão, ora Réus.

Com efeito, apenas em sede recursória, veio a Autora Apelante alegar que o seu interesse é jurídico, reportado a um momento futuro. E que a validade da doação, por conta da quota disponível, influenciaria a partilha dos bens da herança, pois a quota da herança do Réu irmão seria maior do que a sua.

Ora, parece evidente não poder concluir-se no sentido de que a Autora, enquanto sucessível legitimaria, tivesse, em vida da sua mãe (ora 1ª Ré), um qualquer direito subjectivo à quota-parte daquilo que constituiria a sua porção legitimária – cf., artigos 2156º e 2157º, ambos do Cód. Civil -, ou, ainda menos, que pudesse arrogar-se como titular de um qualquer direito subjectivo sobre concretos bens constituintes do património hereditário, capazes de virem a inteirar a sua quota.

Efectivamente, a Autora, enquanto putativa sucessível de sua mãe, e durante a vida desta, apenas se pode considerar como detentora de uma expectativa juridicamente titulada à sua porção legitimária, e não de um qualquer direito subjectivo à quota-parte em que se traduz a sua parcela ou porção legitimária.

Com efeito, conforme prescreve o nº. 1, do artº. 2050º, do Cód. Civil, o domínio e posse dos bens da herança só se adquirem pela aceitação desta, a qual só ocorre após a abertura da sucessão que, por sua vez, apenas ocorre com a morte do seu autor – cf., artigos 2032º, nº. 1 e 2031º, do mesmo diploma.

Donde, replicando o supra exposto, a ora Autora, enquanto designada sucessível legitimária de sua mãe, na vida desta, não possui “qualquer meio de tutela ou conservação do que seria a sua expectativa jurídica”.

Excepção legalmente prevista a tal princípio é a que decorre da legitimidade outorgada aos herdeiros legitimários relativamente aos negócios simulados feitos pelo autor da sucessão, com o intuito de os prejudicar, conforme decorre do nº. 2, do artº. 242º, do Cód. Civil, podendo agir mesmo em vida daquele.

Ora, apesar de tal legitimidade legalmente concedida aos herdeiros (sucessíveis) legitimários, da qual se poderia arrogar a ora Autora, o que é certo é que a mesma não fundamenta o seu pedido de nulidade em qualquer acordo ou conluio simulatório celebrado entre a Ré progenitora e o Réu irmão, no intuito de a enganar ou prejudicar num potencial futura partilha de bens, nem foi minimamente indicado que o meio utilizado para concretizar tal engano tenha sido a outorga da escritura pública de doação.

Por outro lado, também não está em equação no caso sub judice uma pretensa redução da questionada doação, por inoficiosidade, por afectação do princípio da intangibilidade da legítima, de forma a apelar-se à legitimidade concedida aos herdeiros legitimários, por força do prescrito no artº. 2169º, do Cód. Civil.

Efectivamente, nada nos autos nos permite concluir por tal pretensa afectação (nem tal seria possível de concluir à data da instauração da acção, estando ainda viva a autora da sucessão), sendo certo que a doação impugnada foi efectuada por conta da quota disponível, o que sempre implicaria aferir acerca da pretensa afectação dos dois terços da herança que constituíam a legítima dos filhos – cf., o nº. 2, do artº. 2159º, do Cód. Civil -, bem como acerca da eventual existência de outras liberalidades primeiramente afectadas pela potencial redução por inoficiosidade – cf., o artº. 2171º, do mesmo diploma.

Resulta, deste modo, inexistir qualquer tutela legal geral relativamente à protecção dos sucessíveis legitimários, no sentido de conferir-lhes legitimidade para poderem agir, durante a vida do autor da sucessão, contra os actos por este praticados que de alguma forma afectem as suas expectativas futuras na sucessão dos bens da herança.

Efectivamente, tal legitimidade é apenas reconhecida em situações legalmente definidas e tipificadas, supra mencionadas, a que não se reconduz o caso em apreciação.

Determinando-se, assim, que a Autora, enquanto sucessível legitimária não possui legitimidade, nomeadamente conferida pelo artº. 286º, do Cód. Civil (não preenchendo o conceito de interessada ali enunciado), para, durante a vida da 1ª Ré sua mãe, pedir a declaração de nulidade da doação por esta efectuada ao 2º Réu seu irmão.

Decaindo, assim, o eventual reconhecimento de legitimidade indirecta da Autora para a instauração da presente acção.

O que implica, consequentemente, juízo de total improcedência da presente apelação, mantendo-se, nos seus precisos termos, a decisão recorrida."

[MTS]