"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/02/2022

Jurisprudência 2021 (130)


Penhorabilidade parcial;
pensão de reforma


I. O sumário de RL 17/6/2021 (6453/05.3YYLSB-A.L1-6) é o seguinte:

1. Na execução movida unicamente contra um dos cônjuges apenas devem ser penhorados, em princípio, os bens próprios do cônjuge executado;

2. Os limites de penhorabilidade parcial ou total da parte líquida dos salários e outras prestações periódicas legalmente devidas devem ser aferidos em função do respectivo valor anual global dividido pelos doze meses do ano dada a referência ao valor do salário mínimo nacional;

3. No regime de comunhão de bens as pensões de reforma auferidas por qualquer dos cônjuges são bens comuns;

4. Não constitui “outro rendimento” do executado, para efeito do disposto no artigo 738.º nº 3 do Código de Processo Civil, o valor recebido pelo cônjuge do executado relativo a uma pensão de reforma de que é beneficiária;

5. Sendo a pensão de reforma do cônjuge do executado um bem comum do casal ela poderá ser penhorada, respeitado o disposto no artigo 740.º n.º 1 do Código de Processo Civil, desde que em relação a tal prestação periódica por ela recebida, se não verifiquem os pressupostos de impenhorabilidade previstos no artigo 738.º n.º 1 (impenhorabilidade parcial) e n. 3 (impenhorabilidade total) do Código de Processo Civil.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"a)A execução de que estes autos são apenso foi instaurada contra Francisco, visando o cumprimento coercivo de obrigações de natureza patrimonial por ele assumidas.

b)A primeira nota que se nos impõe é a de que, em princípio, apenas os bens próprios do obrigado ao cumprimento da obrigação respondem perante o credor e podem ser objecto de execução – é essa a regra claramente enunciada no artigo 735.º do Código de Processo Civil:

1.- Estão sujeitos à execução os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda.
2.- Nos casos especialmente revistos na lei, podem ser penhorados bens de terceiros, desde que a execução tenha sido movida contra ele”.

c)E dizemos “em princípio” porque estão previstas no nosso ordenamento jurídico diversas situações em que os bens próprios do executado não podem ser sujeitos à execução.

Tal restrição resulta da ponderação assumida pelo legislador dos interesses relativos das partes em conflito, procurando salvaguardar, na medida da possível concretização de ambos, a realização do direito do credor à satisfação do seu crédito sobre o executado e a salvaguarda de limites mínimos de condições de sobrevivência e de sustentabilidade económica do executado de acordo com a dignidade inerente ao ser humano vivendo em sociedade.

Para tal o legislador utilizou como padrão referencial o valor do salário mínimo nacional, periodicamente actualizado, e que representa o valor tido por indispensável a garantir a manutenção de um nível de vida com um mínimo de dignidade. [...]

g)Nos presentes autos está em causa a impenhorabilidade do valor da pensão de reforma que o executado recebe através do Instituto de Segurança Social I.P. – Centro Nacional de Pensões.
 
Num primeiro momento o diferendo entre as partes centrava-se na divergência de entendimento acerca da impenhorabilidade do valor da pensão de reforma auferida nos “meses de subsídio”.

Defendia o executado que deveria ser tido em conta o valor anual global da sua pensão de reforma, com todas as prestações adicionais previstas na lei, dividido pelos doze meses do ano, donde resultaria um valor inferior ao valor do salário mínimo nacional, pelo que seria impenhorável nos termos do artigo 738.º n.º 3 do Código de Processo Civil;

Defendia o exequente que deveria ser tido em conta apenas o valor recebido pelo executado, a título de pensão de reforma, “nos meses de subsídio” e que por isso a penhora de um terço do valor recebido pelo executado nesses meses (de acordo com o artigo 738.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), não violaria o princípio da impenhorabilidade estabelecido no artigo 738.º n. 3 do Código de Processo Civil, por ser o valor a que o executado teria direito superior ao valor do salário mínimo nacional.

h)O Sr. Juiz de Direito a quo introduziu um elemento novo na fundamentação da decisão impugnada ao invocar a circunstância de o agregado familiar de que o executado faz parte auferir um rendimento mensal disponível de valor superior ao do salário mínimo nacional, concluindo da análise da declaração de rendimentos do executado do ano de 2019 que “não estão reunidos os requisitos para se declarar a impenhorabilidade da reforma do executado, em virtude de o seu cônjuge auferir igualmente uma pensão mensal que, em conjunto com o rendimento do executado, ultrapassa o referido limite mínimo do salário mínimo nacional”.

i)Vejamos então se, no caso presente, existe algum obstáculo à penhora da pensão de reforma do executado nos “meses de subsídio” e se deve ser ordenado o levantamento da penhora como pretende o executado ora apelante.

Abordaremos em primeiro lugar a questão que se prende com o cálculo do valor a considerar para efeito da decisão sobre a penhorabilidade da pensão de reforma em cotejo com o valor do salário mínimo nacional, sem levar em linha de conta o valor da pensão de reforma da esposa do executado.

j)O valor das pensões de reforma e o das prestações legais adicionais nos apelidados “meses de subsídio” correspondentes aos subsídios de férias e de Natal dos trabalhadores no activo, podem ser objecto de penhora porquanto traduzem um rendimento efectivamente auferido pelos executados.

A existência de limites a essa penhorabilidade é que tem suscitado a intervenção da doutrina e da jurisprudência no sentido da definição da forma como devem operar, em concreto, os critérios da isenção, total ou parcial, da penhora de bens do executado, sendo especialmente relevantes para essa definição a ponderação da natureza e características dos rendimentos auferidos.

k)O direito à pensão de reforma e às prestações legalmente devidas aos pensionistas em substituição da remuneração laboral, sejam elas pagas em meses previamente determinados sejam elas diluídas nos pagamentos feitos ao longo do ano, funda-se numa ideia de solidariedade social ínsita ao Estado de Direito e insere-se no programa de intervenção social do Estado destinado a garantir aos seus cidadãos a manutenção de um mínimo de sustentabilidade económica e da dignidade na sua sobrevivência.

A essa mesma luz se deverão analisar as condições em que é, em todo o caso, admissível a compressão desse direito considerando o valor dos rendimentos auferidos e as condições de vida que ele permite usufruir.

O valor do salário mínimo nacional é a referência do limite da impenhorabilidade dos bens, como claramente resulta do artigo 738.º n.º 3 do Código de Processo Civil, pelo que, nos “casos em que o executado aufere apenas rendimentos iguais ou inferiores ao salário mínimo, ou uma pensão de sobrevivência, ou ainda o rendimento de reinserção social, não podem estes ser penhorados de todo.” [Rui Pinto – Manual de Execução e Despejo” a página 510.]

l)Tal como decidido, entre outros, pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28 de junho de 2017, quando os subsídios de férias e de Natal auferidos por trabalhadores no activo ou pensionistas sejam, individualmente considerados, inferiores ao montante legalmente fixado para o salário mínimo nacional não pode o respectivo valor ser objecto de penhora por a tanto obstar o artigo 738.º n.º 3 do Código de Processo Civil. Neste sentido, entre outros o recente acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de fevereiro de 2021 (apelação 435/10.0TCFUN.L1-7), de que foi relatora Cristina Silva Maximiano, consultável em www.dgsi.pt onde se citam diversas decisões de idêntico teor.

Quando assim se não entenda, mas se perfilhe o entendimento de que o valor dessas prestações adicionais deve acrescer ao valor da pensão de reforma por se tratar de rendimentos efectivamente auferidos, há que apurar o valor global dos rendimentos auferidos pelo executado ao longo do ano e dividir esse valor por doze. Também neste sentido, entre outros, se pronunciam os acórdãos recentemente proferidos no Tribunal da Relação do Porto de 24 de setembro de 2020 – Processo 1571/17.8T8AGD-H-P1, de que foi relator Eduardo Rodrigues Pires, e de 26 de outubro de 2020 – Processo 2165/10.4TBGDM-B.L1, de que foi relator José Eusébio Almeida ou no Tribunal da Relação de Lisboa a 21 de maio de 2020 – Processo 41750/04.6YYLSB-A.L1, todos consultáveis em www.dgsi.pt.

m)Aqui chegados importa concluir que, fazendo fé na declaração de rendimentos do executado no ano de 2019 para efeito de IRS, mesmo sem considerar apenas a parte líquida (artigo 738.º n. 1 e 2 do CPC) o rendimento médio mensal por ele auferido – 478,98 euros – é inferior ao valor do salário mínimo nacional para o ano de 2020 – 665,00 euros.

Numa primeira apreciação se dirá que a penhora realizada de parte da sua pensão de reforma no mês de julho de 2020 ofende, pois, o limite mínimo de impenhorabilidade consignado na parte final do artigo 738.º n.º 1 do Código de Processo Civil.

n)À mesma conclusão liminar chegou o Sr. Juiz de Direito a quo ao reconhecer no despacho impugnado que, “não estando demonstrado que o executado possua outra fonte de rendimento para além da sua pensão de reforma no montante de 490,65 mensais, à primeira vista parecia ser de deferir a pretensão do executado”.

Atendendo, porém, ao valor da pensão de reforma da esposa do executado, que entendeu dever levar em consideração, concluiu, a final, que o agregado familiar do executado tinha um rendimento mensal disponível superior ao do salário mínimo nacional, pelo que o executado não podia beneficiar da isenção total da penhora da sua reforma.

Não acolhemos, porém, tal entendimento com base no qual foi declarada penhorável a pensão de reforma do executado, ainda que sem embargo da salvaguarda da manutenção de “um rendimento disponível pelo menos igual ao do salário mínimo nacional”.

o)-Já atrás se salientou que, em princípio, só estão sujeitos a execução e podem ser objecto de penhora os bens próprios do executado, ainda que, na sua ausência ou insuficiência, possam ser penhorados bens comuns do casal integrado pelo executado, se for o caso e não for requerida a separação de bens.

Ora, nos regimes matrimoniais de comunhão de bens como é, presumidamente, o que regula o casamento do executado no caso presente, as pensões de reforma auferidas por um dos cônjuges, como substitutivas que são do produto do seu trabalho, não são bens próprios mas bens comuns que integram o património comum do casal. Neste sentido ver o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de outubro de 2013 proferido na apelação 800/12.9TBCBR.C1 consultável em www.dgsi.pt.

De forma clara, e numa outra perspectiva, se dirá então que as pensões de reforma de que seja beneficiário um dos cônjuges, não sendo bens próprios seus, muito menos podem ser tidos como rendimentos auferidos pelo outro cônjuge.

p)-Vem isto, no caso dos autos, a propósito da ressalva constante da parte final do n.º 3 do artigo 738.º do Código de Processo Civil – “quando o executado não tenha outro rendimento”.
Apesar de resultar da declaração de rendimentos para efeitos de IRS junta aos autos que a esposa do executado é beneficiária de uma pensão de reforma, nem a letra nem o espírito da lei conduzem à interpretação da norma em causa segundo a qual, sendo o executado casado e não sendo o seu cônjuge demandado na execução, o rendimento a que se refere esta norma inclui os valores dos rendimentos auferidos pelos outros membros do agregado familiar do executado, integrantes ou não do património comum do casal.

q)-O que a norma prevê é que, auferindo o executado outro rendimento – valor recebido num determinado período em razão da prestação de serviços, retribuição por trabalho prestado ou em sua substituição, pensões, rendas relativas à cedência de instalações, juros relativos à cedência temporária de meios financeiros, dividendos pela cedência de capital produtivo ou outros semelhantes – passa a ser admissível a penhora de um terço do valor que exceda o salário mínimo nacional, na medida em que se presume ser então possível ao executado continuar a manter intocável a disponibilidade sobre o valor que o legislador entendeu assegurar minimamente a sua subsistência, isto é, o valor do salário mínimo nacional.

r)-Ora o executado não aufere outro rendimento que não a sua pensão de reforma de valor inferior ao do salário mínimo nacional.

Na vigência do casamento celebrado segundo o regime de comunhão de bens, o valor da pensão de reforma da sua esposa não constitui outro rendimento do executado que releve para efeito de o seu valor ser tido em conta na decisão sobre a penhorabilidade da pensão de reforma na parte excedente ao valor do salário mínimo nacional.

s)-É irrelevante para o efeito do disposto no artigo 738.º n.º 3 do Código de Processo Civil, o rendimento mensal do agregado familiar do executado, devendo apenas ser considerados os bens próprios e rendimentos por ele auferidos.

t)-Sendo a pensão de reforma da esposa do executado um bem comum do casal ela poderá ser penhorada, respeitado o disposto no artigo 740.º n.º 1 do Código de Processo Civil, e desde que, em relação a tal prestação periódica, se não verifiquem os pressupostos de impenhorabilidade previstos no artigo 738.º n.º 1 (impenhorabilidade parcial) e n. 3 (impenhorabilidade total) do Código de Processo Civil."

[MTS]